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Problemas no paraíso

Até pouco mais de uma semana, o "milagre fiscal do Espírito Santo" frequentava as páginas dos mais influentes jornais e revistas do Brasil. Hoje, só se fala da falta de PM


É só comparar as manchetes:

. “Uma rara notícia boa” (Blog Lauro Jardim - O Globo – 03 de janeiro de 2017): “O Espírito Santo fechou o 2016 com a menor taxa de homicídios dos últimos 28 anos – 29,7 mortes por cem mil habitantes. A taxa de homicídios caiu pela metade entre 2009 e 2016”

. “Reviravolta põe Espírito Santo como modelo contra violência em prisões” (Folha de S. Paulo – 10 de janeiro de 2017)

. “Brazil’s little that State that could” (“O pequeno Estado brasileiro que conseguiu” – Bloomberg Latin America – 25 de janeiro de 2017)

. “Paulo Hartung: estamos fazendo ajuste fiscal duríssimo no Espírito Santo” (Istoé/Terra – 01 de fevereiro de 2017)

. “O caso capixaba” (Estadão – 02 de fevereiro de 2017): “O governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, foi o único governador que se rebelou e rejeitou o socorro financeiro do governo federal”

E de repente a onda de notícias positivas foi tragada por um tsunami de péssimas manchetes:

. “Sem polícia, Espírito Santo vive onda de violência” (Deutsche Welle Brasil – 06 de fevereiro de 2017)

. “Como protesto iniciado por oito mulheres paralisa a PM do Espírito Santo” (BBC Brasil – 06 de fevereiro de 2017)

. “Chaos swells amid police strike in Brazil” (“Caos aumenta em meio a greve policial em Estado brasileiro” – The Wall Street Journal – 08 de fevereiro de 2017)

. “Brazil army takes over state’s security as 100 killed amid police strike” (“Exército brasileiro assume segurança de Estado enquanto cem são assassinados em meio a greve policial” – The Guardian – 09 de fevereiro de 2017)

. “Paratroopers join patrols in Brazil city as violence claims over 100; Rio may need army next” (Aeronáutica reforça patrulhamento em cidade brasileira enquanto violência toma a vida de mais de 100” – The Japan Times – 09 de fevereiro de 2017)

Até pouco mais de uma semana, o “milagre fiscal do Espírito Santo” frequentava as páginas dos mais influentes jornais e revistas do Brasil e até publicações internacionais. Turbinado pela propaganda do governo, o nosso humilde Estado vinha sendo cantado em prosa e verso, como espécie de paraíso de prosperidade, responsabilidade fiscal, ordem social e qualidade na prestação dos serviços públicos. Bem, o castelo desmoronou, a ilusão se desfez, e essa crise sem precedentes na segurança pública estadual desvelou, de uma maneira brutal, o que esse discurso propagandeado aos quatro cantos tinha de fantasioso e artificial. A realidade é bem mais dura.

O Espírito Santo, embora fisicamente pequeno, tem a sua grandeza, seus atrativos, suas virtudes, seu povo que trabalha e confia. Mas ainda é um Estado pequeno em importância política e econômica na federação, com muito a crescer, evoluir e se organizar. O governo Paulo Hartung tem seus méritos e, de fato, comparada à de outros entes federados, a situação econômica do Estado parece bem menos grave e desesperadora que a dos nossos “vizinhos”. Mas nem por isso deixa de ser um governo real, com seus erros e acertos, dificuldades e limitações, como qualquer outro governo. E é preciso reconhecer isso.

Alguns desses óbvios problemas foram descortinados da pior e mais traumática forma por essa onda de violência:

. Uma insatisfação latente do funcionalismo público estadual, que se sente sacrificado pelo arrocho fiscal implementado (panela de pressão que estava a ponto de explodir a qualquer momento);

. A fragilidade e a suscetibilidade de instituições fundamentais à ordem pública, como a PMES; o sucateamento e a precarização de serviços públicos essenciais (hoje o grito foi dos servidores da Segurança, amanhã poderá ser os da Saúde e os da Educação, se não se prestar atenção);

. A dificuldade, a letargia e a demora da equipe de governo em reagir a uma crise de tal gravidade, que pôs a população de joelhos e entregue a um estado de calamidade pública;

. A fragmentação e a rebeldia de uma base de apoio na Assembleia que, até outro dia, era considerada sólida, mas que durante a crise bateu cabeça com o Executivo estadual (isso poucos dias após o governo ter conseguido eleger uma Mesa Diretora sob medida para os seus interesses);

. Disputas e desentendimentos políticos reprimidos e mal disfarçados entre atores do alto escalão do próprio Palácio Anchieta, os quais se fizeram evidentes no ápice da crise;

. A vulnerabilidade, enfim, desse pacto social tão frágil sobre o qual se sustenta a nossa vida cotidiana, em qualquer parte do mundo.

Inclusive, no Espírito Santo.

Ah, tá...

Alguém aí ainda crê em alguma ata?

Garcia e o pós-crise

Suponhamos, na hipótese mais otimista, que as partes cheguem rapidamente a um entendimento e a polícia espontaneamente retorne às ruas. Como ficará a interlocução do secretário de Estado de Segurança, André Garcia, com os homens dali para a frente, depois de a relação ter chegado a tal grau de esgarçamento?

Jogo de palavras

Recifense e torcedor do Sport Recife (tem até bandeirinha sobre a mesa do seu gabinete na Sesp), cujo símbolo é o Leão da Ilha do Retiro, Garcia não quer bater em retirada da nossa ilha.

De García para Garcia

“O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida”, escreveu o xará de sobrenome do secretário, o poeta espanhol García Lorca, autor de “Bodas de Sangue”. O Espírito Santo já teve o seu batismo de sangue. Espera não precisar da extrema-unção.

García Lorca

Grande poeta e dramaturgo espanhol, Federico García Lorca foi assassinado em 1936, em plena Guerra Civil, pela Falange Espanhola, partido fascista do “Generalíssimo” Francisco Franco (chefe de Estado da ditadura espanhola de 1938 até sua morte, em 1975). Outros de seus escritos também cabem perfeitamente ao momento.

Intramuros

“Há coisas encerradas dentro dos muros que, se saíssem de repente para a rua e gritassem, encheriam o mundo.” O poeta certamente referia-se a algo mais sentimental, mas, no caso concreto, temos que se os PMs aquartelados saíssem de repente para a rua e gritassem, encheriam todo o mundo de alívio. Da mesma forma se sentiriam os cidadãos encerrados dentro de seus muros particulares, se pudessem voltar a sair para a rua e gritar. De alegria, é lógico.

Bons sonhos

“Não gosto de andar de noite. A noite foi feita para dormir.” Bem, ninguém aí está mesmo podendo andar à noite. Mas alguém está conseguindo dormir? Desculpa aí, poeta...

Ex-paraíso

“A Terra é o provável paraíso perdido.” Aqui na nossa terra, a coisa está mais ou menos nesse pé.

Aos escribas

Esta é para aqueles que, como o colunista, não largam a pena em casa ou no trabalho, mesmo quando o momento é difícl (ou exatamente por isso): “Escrevo porque, se não, apodreço por dentro”. Homenagem da coluna aos colegas de profissão que, mesmo injustamente criticados, atacados e perseguidos, não largam a pena e o bloquinho de anotações para manter você, leitor, bem informado.

Guerra de versões

Esta crise em nosso sistema de segurança pública e a disputa política que se desenrolou por trás de tudo foram marcadas por uma assombrosa rede de boataria e de contraboataria, difundida pelas redes sociais. Uma guerra de versões e de narrativas! Está mais que evidenciado: na sociedade midiática, o verdadeiro combate se trava sobretudo no campo de batalha virtual, com as armas da informação e da contrainformação, pela “conquista” do imaginário popular.

Personalização

Desde a última terça-feira, e cada vez com maior intensidade desde então, o governo parece ter adotado a estratégia de guerra de delimitar e determinar bem claramente quem é “o inimigo” e apresentá-lo para a população. Assim desviam o foco dos atores governamentais e canalizam a ira popular para outro personagem. Algum dos lados está coberto de razão? Não parece ser o caso. Certo é que a personalização da questão a simplifica e não a resolve em nada.

Alguém concorda?

A “Canção do Soldado Capixaba”, hino da PMES, contém os seguintes versos: “Sou herói destemido e valente/ Sei amar com fervor minha terra/ Vivo sempre feliz e contente/ Quer me encontre na paz ou na guerra”. Sério, nesse cenário de caos social e de guerra urbana, quem aí está feliz e contente? Difícil crer.

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