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Cinema no Brasil: desconfiança toma conta de realizadores

Cinema no Brasil: desconfiança toma conta de realizadores

Decisão do presidente Jair Bolsonaro visa a controlar e "filtrar" o que chama de ativismo

Publicado em 19 de julho de 2019 às 20:58

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Cena do filme "Cidade de Deus". (Divulgação/Imagem Filmes)

Lançados no mesmo ano de 2002, "Madame Satã" e "Cidade de Deus" foram aplaudidos mundo afora pela criatividade e potência. O segundo, assinado por Fernando Meirelles e Katia Lund, recebeu cinco indicações ao Oscar, o maior prêmio da indústria de Hollywood. Na mesma época, conhecemos a ousadia e o talento de Cláudio Assis, em projetos como "Amarelo Manga" (2002) e "Baixio das Bestas" (2006).

O que os títulos têm em comum, além do sucesso internacional e dos vários prêmios? Quebraram paradigmas e apostaram na liberdade de expressão, que hoje soa saudosa. Também investiram em assuntos complexos e ao mesmo tempo delicados, como homossexualidade e a violência urbana que vem a reboque do narcotráfico.

Neste 2019, tais temas correm o risco de sumir das telas de cinema por um suposto "ativismo" dos realizadores. É o que se supõe, após uma série de declarações do presidente Jair Bolsonaro (PSL), ao assinar, na quinta-feira (19), um decreto que reduziu pela metade a participação de representantes da indústria cinematográfica no Conselho Superior do Cinema (CSC), responsável por elaborar as políticas públicas para o setor.

Com a mesma caneta Bic, transferiu o conselho do Ministério da Cidadania, que engloba a antiga pasta da Cultura, para a Casa Civil da Presidência da República, e anunciou os planos de transferir a Agência Nacional do Cinema (Ancine) do Rio de Janeiro para Brasília. O objetivo é aumentar o controle sobre a aprovação de produções audiovisuais.

"Não somos contra essa ou aquela opção, mas o ativismo não podemos permitir, em respeito às famílias, uma coisa que mudou com a chegada do governo", disse o presidente, em evento no Palácio do Planalto, alusivo aos 200 dias de gestão.

As mudanças vieram após Bolsonaro se irritar com projetos aprovados recentemente pela Ancine, que abordam temas como transexualidade. Nesta sexta-feira, diante da repercussão negativa, o presidente reforçou a decisão de aplicar um filtro ideológico à agência reguladora. "Vai ter um filtro sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, passarei ou extinguiremos", afirmou, após participar de uma solenidade em comemoração ao Dia Nacional do Futebol.

DEBATE

Cena do filme "Bruna Surfistinha". (Divulgação/Imagem Filmes)

Embarcando na polêmica, o Gazeta Online conversou com produtores, diretores, jornalistas e dirigentes do setor audiovisual para medir o impacto das mudanças propostas pelo presidente. Todos foram unânimes em dizer que, diante do novo cenário, o Brasil corre o sério risco de encarar uma nova censura ao setor audiovisual, vista apenas na época da ditadura militar.

O cineasta Gustavo Moraes (sucesso em vários festivais com o curta "+1 Brasileiro", de 2016) vê a diminuição de membros da sociedade civil entre os conselheiros do CSC como sendo "negativa". "Há também pouco entendimento do funcionamento da indústria audiovisual e sua função econômica e cultural, nesta ordem, por parte do governo atual", pontua.

O realizador e produtor Thiago Moulin, sócio da Pai Grande Filmes e diretor do premiado curta "Labor" (2017), também critica as mudanças relacionadas ao Conselho Superior do Cinema, especialmente sobre os critérios que serão usados para avaliar os projetos a serem aprovados no futuro.

"É um governo avesso ao diálogo e que se contradiz. Quando o presidente diz que não vai mais apoiar filmes que ele chama de pornográficos, como 'Bruna Surfistinha', não está endossando a fala de Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil e que vai presidir o CSC. Onyx diz que a ideia é incentivar produções que sejam sucesso de bilheteria. 'Bruna' levou mais de 2 milhões de pessoas ao cinema e rendeu uma série de sucesso para a TV. Portanto, está dentro desse radar proposto pelo governo", ironiza, adicionando que Bolsonaro não preserva valores técnicos, apostando somente em ideologias para compor suas convicções.

MERCADO

O novo governo parece não se ater a dados do mercado, desconhecendo a realidade do audiovisual do país. A Agência Nacional do Cinema (Ancine), por exemplo, fez um estudo em 2013 e constatou que o setor gerou cerca de R$ 22,2 bilhões em receita, com um impacto no PIB de quase 0,5%, números bem mais expressivos do que os das indústrias têxtil, farmacêutica e de celulose, por exemplo.

Presidente da ABD Capixaba, a associação de realizadores do audiovisual do Estado, Leandra Moreira também critica a postura do novo governo em relação às mudanças no Conselho Superior do Cinema

"Não cabe ao setor publico definir o que vai ser exibido. A eles cabe o fomento. Quem define o mercado é o público, que decide o que quer assistir”, relembra, afirmando que a Ancine já tem um setor específico para avaliar o desempenho de mercado do cinema. Além disso, o setor no Brasil normalmente não depende de dinheiro dos cofres públicos para se manter.

"Temos a verba do Fundo Setorial do Audiovisual para as nossas produções. Ela é mantida pela Condecine, uma espécie de imposto recolhido junto às operadoras por conta da exibição dos produtos em VOD, Streaming e TVS, por exemplo".

Dados atuais divulgados pela Ancine, garantem que, de 2012 a 2018, a agência reguladora arrecadou cerca de R$ 7,4 bilhões com a Condecine, sendo R$ 6,6 bilhões recolhidos pelas empresas de telecomunicações.

"Esse apoio que o governo quer retirar do cinema é terrorismo ideológico. Um protecionismo para um segmento único, principalmente ao dizer que está criando leis para proteger a família. Isso não funciona para o século 21, em que as pessoas estão defendendo o seu direito de ser visível e apoiado na diversidade", acrescenta Leandra.

ANCINE

O cineasta Gustavo Moraes afirma que a o discurso do presidente sobre a possível extinção da Ancine aumenta a incerteza sobre o futuro do audiovisual no país. "Entendo a importância em rever procedimentos, como o órgão está fazendo. Isto é válido e deve ser apoiado. A Ancine, porém, deve ser apoiada e não extinta", acredita.

O jornalista Luiz Tadeu Teixeira é outro que vê com desconfiança as mudanças propostas pelo governo. "Mudanças na estrutura da Ancine precisam passar pelo congresso, pois ela foi criada por lei. Não vejo problema em mudar o órgão para Brasília, pois o cinema brasileiro não está centralizado no Rio de Janeiro, mas espalhado pelo país", acredita. O problema, de acordo com Teixeira, é o interesse do governo em controlar o conteúdo dos projetos audiovisuais. "Acho que o presidente, com esse discurso de preservar a moral e os bons costumes, pretende restaurar a censura", polemiza.

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