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Mitos sobre a ditadura

Por mais que alguns repitam, por má-fé, desinformação ou pura ingenuidade, que não havia corrupção durante a ditadura, a alegação é fantasiosa.


Foto: Amarildo

“Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira. Eu não disse? Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda.”

Parte da narração de um latrocínio praticado por dois assaltantes em plena noite de réveillon, o fragmento acima pertence ao conto que dá título ao livro “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca. A obra é de 1975, mas naquele ano quem a quisesse ler teria que procurar algum exemplar clandestino. E corria o risco de ser preso. “Feliz ano novo” foi censurado e apreendido pelo governo militar.

Hoje um clássico traduzido em três idiomas, o livro de Fonseca, um ex-comissário de polícia, traz um conjunto de relatos curtos, realistas e vigorosos, de casos brutais de violência urbana inspirados na realidade da época. Não por acaso, os generais então no poder não permitiram a circulação do livro. Na ditadura reinavam a ordem e a paz social. Ou pelo menos era o que se dizia. E o que muitos ainda preferem dizer hoje.

Pesquisa recém-divulgada pela ONG Latinobarômetro, sediada no Chile, revela que, em 2016, o apoio dos brasileiros à democracia caiu incríveis 22 pontos percentuais, de 54% para 32%, um dado sem dúvida alarmante. Ainda mais preocupante é o que o complementa: 55% dos brasileiros se dizem dispostos a aceitar um governo não democrático, “desde que os problemas sejam resolvidos”.

Quando se pensa em que “problemas” seriam esses, logo acorre à mente o binômio que tira o sono do brasileiro médio hoje em dia: violência urbana e corrupção política. Pela primeira vez desde 1995, o mesmo estudo mostra que a corrupção é a maior preocupação em um dos 18 países pesquisados, justamente o Brasil, onde 31% dos cidadãos a consideram o principal problema nacional.

Associando esses dois resultados, tem-se notado o ressurgimento de um discurso “nostálgico” a favor da ditadura militar. Para justificar sua adesão a soluções autoritárias para a crise política atravessada pelo país, adeptos do “militarismo”, da “intervenção militar” etc. usam argumentos como “ahhh, durante a ditadura não havia corrupção”, ou “ahhh, naquele tempo qualquer cidadão de bem podia andar pelas ruas sem medo”...

Isso não passa de mito.

Por mais que alguns repitam, por má-fé, desinformação ou pura ingenuidade, que não havia corrupção durante a ditadura, a alegação é fantasiosa.

O que não havia eram órgãos de controle externo e fiscalização nem das obras nem das contas públicas, tampouco imprensa livre. Os casos de corrupção no governo não vinham a público por um motivo óbvio: a censura que vigorava sobre jornalistas e escritores – a mesma que impediu a obra de Fonseca de ganhar as prateleiras. Publicar, por exemplo, uma denúncia contra qualquer agente do governo, prática tão comum hoje em dia, era algo absolutamente fora de cogitação.

O Ministério Público não existia. A Polícia Federal sim, mas como elo da repressão política. Não investigava agentes do Estado, pois existia precisamente para os proteger e servir. Havia, pois, corrupção, com a diferença essencial de que os esquemas, conquanto muito comentados, simplesmente não podiam ser investigados, que dirá noticiados.

Se posta em prática, a tal “imposição da lei e da ordem” só terá, como resultado certo, a cassação de direitos civis e políticos, bem como a supressão de garantias fundamentais do cidadão. E tome mordaça como a sofrida por Fonseca em 75. Quer dizer, além de não resolver “os problemas” do presente, pode-se ainda recriar alguns que haviam sido sepultados no passado e dos quais acreditávamos já termos nos livrado há décadas. Saudosos da ditadura, neste Dia de Finados, prestem-lhe suas homenagens, mas deixem-na descansar para sempre em seu túmulo no Cemitério da História.

Perguntem ao Emílio

O historiador da Ufes Pedro Ernesto Fagundes ressalta que, durante a ditadura, havia uma relação direta e promíscua entre empreiteiras e agentes do Estado (perguntem a Emílio Odebrecht), a qual deu origem a uma série de casos abafados à época, mas detalhadamente relatados, a posteriori, em livros-reportagem de fôlego como a coleção de Elio Gaspari sobre a ditadura – prêmio da Academia Brasileira de Letras em 2003 na categoria Ensaio – e “Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988”, de Pedro Henrique Pedreira Campos, prêmio Jabuti de 2015 na categoria Economia.

Perguntem a Zé Pequeno

Quanto à ilusão de que um governo ditatorial pode dar fim à violência urbana, como num passe de mágica, a partir da imposição da “lei e da ordem”, basta lembrar que foi exatamente nas décadas de 1970 e 1980 que o tráfico de drogas começou a dominar as comunidades de baixa renda do RJ e de outras metrópoles brasileiras – vide “Cidade de Deus”.

Perguntem a São Pedro

Antunes destaca, ainda, que foi durante essas décadas que se iniciou um processo de “favelização” das periferias das grandes cidades, em decorrência do surto de crescimento urbano sem planejamento nem suporte por parte do Estado. Atraída pelos grandes empreendimentos instalados pelos governos do período, uma massa de trabalhadores passa a se concentrar em regiões periféricas dos centros urbanos, mas os governos não proveem nem a infraestrutura nem os serviços básicos (saúde, saneamento, habitação etc.) necessários para absorver esse contingente populacional. No ES se deu o mesmo, com os grandes projetos industriais. Até hoje, bairros originados espontaneamente desse crescimento desordenado estão entre os mais violentos da Grande Vitória.

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