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Tristeza não tem fim: João Gilberto deixa apartamento

Tristeza não tem fim: João Gilberto deixa apartamento

Músico não era visto fora de casa há 10 anos e foi convencido a se mudar para não ser despejado

Publicado em 3 de maio de 2018 às 15:03

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João Gilberto, durante apresentação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2008. (Ari Versiani/AFP/24-08-2008)

Depois de dez anos sem ser visto fora de casa, João Gilberto teve de deixar à revelia o apartamento em que vivia, a 500 metros da praia do Leblon. O cantor, que enfrentava ameaça de despejo por conta de pagamentos atrasados, foi convencido a se mudar para não correr o risco de ser constrangido a sair à força. Uma amiga do meio artístico cedeu um outro imóvel na região para acomodá-lo.

A um mês dos 87 anos, o músico vive numa situação de fragilidade física e mental, agravada pela condição de miserabilidade financeira, segundo afirmou na quarta-feira, 2, à reportagem a advogada de sua filha Bebel Gilberto, Simone Kamenetz. A penúria vem comovendo admiradores de João do meio musical. Chico Buarque, que foi seu cunhado (ele foi casado com Miúcha, mãe de Bebel), e o casal Caetano Veloso e Paula Lavigne estão mobilizados para ajudá-lo.

Desde o fim do ano passado Bebel está na Justiça para interditar o pai. Foi a forma que a cantora encontrou de tentar cuidar de sua saúde, e resguardar suas finanças - pilar da música brasileira, criador da bossa nova e cultuado por fãs do mundo todo, e apesar de ter feito um acordo milionário com o banco Opportunity em 2013, como adiantamento do valor a ser ganho por uma ação contra a gravadora EMI dois anos depois, João não tem recursos sequer para arcar com um plano de saúde, algo bastante temerário a essa altura de sua vida.

O cantor tem uma hérnia não tratada e não se submete a exames. Foi esse problema que o impediu em 2011, segundo divulgado à época, de cumprir uma turnê por cidades como Rio, São Paulo, Porto Alegre, Salvador e Brasília, na esteira de seus 80 anos. As dores que já sentia então o impediam de tocar seu violão como exigia seu conhecido perfeccionismo.

Agora, Bebel, que mora em Nova York, conseguiu que duas médicas, uma geriatra e uma psiquiatra com experiência em idosos, fossem até ele, vencendo, aos poucos, sua resistência. "Ele está doente. Temos todo o cuidado no mundo para chegar ao João e tratá-lo. Bebel está tentando que ele faça exames. Não adianta pegar à força", ponderou a advogada da cantora. O caso corre em segredo na 5ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio. O Tribunal de Justiça não divulga informações sobre o assunto, por conta do sigilo.

As dificuldades para acessar João e de persuadi-lo a atentar para sua saúde se dão porque ele, como se sabe, não sai de casa. A última vez que foi visto em público foi nos shows de 2008 que fez pelos 50 anos da bossa nova. "Bebel não quer internar o pai, e sim ver o que pode ser feito em casa. Ele não pode ficar assustado, com medo. O juiz está muito cuidadoso, por se tratar de uma pessoa idosa. Está preocupado", afirmou Simone.

"O que antes era tido como uma excentricidade (não sair de casa) já se tornou uma condição mental. Piorou com a idade. A capacidade cognitiva dele está muito prejudicada. Ele não tem condições de administrar a própria vida", ela considera.

Há um mês, Miúcha contou à reportagem que João se recusava a se submeter a exames. "A situação é difícil, ele é muito fechado, tem 86 anos e algumas questões de saúde. Está muito magrinho. A Bebel está tentando de tudo por ele. Todos queremos que o João se trate. Ele foge de médico como o diabo da cruz. Se a gente marcar, ele desmarca trinta vezes."

De acordo com Miúcha, João segue morando sozinho e fazendo o que mais gosta - tocando seu violão e cantando. Para ela, sua situação não é tão dramática quanto a descrita nos jornais desde sua interdição por Bebel.

Faz um mês que a Justiça autorizou o arrombamento do apartamento no Leblon, para que João fosse citado quanto ao processo de interdição, e também para que seu estado fosse avaliado devidamente. Mas, ao entrar no imóvel, as oficiais constataram que sua condição mental o impedia de compreender o que se passava. Nesses casos, o procedimento é não realizar a citação.

Na ocasião, não houve necessidade de o apartamento ser arrombado de fato: para preservar João, uma data foi acertada previamente, e uma pessoa de sua confiança ficou no apartamento e abriu a porta para a entrada da equipe.

Há duas semanas, a advogada de Bebel leu no jornal "O Estado de S. Paulo"  a entrevista de João Marcelo Gilberto, primogênito de João, em que ele afirmou ter sido excluído das decisões sobre o pai. Simone negou que Bebel tenha alijado o irmão das decisões referentes ao processo de interdição. "O que João Marcelo disse não é verdade. Ele foi procurado, estivemos com o advogado dele. Ele não foi excluído, ele se excluiu. O processo tem custos que devem ser compartilhados entre os dois, e ele deu a entender que não teria interesse em patrocinar isso", contou ela.

Antes do início do processo de interdição, João Marcelo entrara com uma ação de alimentos tendo como beneficiária sua filha caçula, de dois anos. Conforme explicou à reportagem, o objetivo não era pleitear uma pensão de João Gilberto para a neta, e sim ter acesso aos números da vida financeira dele. Para o irmão, Bebel quer ter o controle desses dados sozinha, e lhe sonega informações.

Segundo Simone, a explicação de João Marcelo não faz sentido, uma vez que ele tem acesso à situação patrimonial do pai por estar citado na ação de interdição, como parte interessada. Como ele mora nos EUA, bastaria fazê-lo por meio de seu advogado, ela disse.

"Bebel não está fazendo nada por dinheiro. Não há espólio a ser dividido, o estado é de penúria financeira", disse Simone. "João Gilberto recebeu R$ 5 milhões do Opportunity em 2013, não poderia estar na situação que está hoje, sofrendo despejo, sem seguro saúde. Ainda mais se você pensar que ele não tem luxo algum, não viaja, não compra apartamento. Se há um patrimônio oculto, Bebel não o conhece. A preocupação do João Marcelo é injustificada. Ele tem todo o direito de conhecer o patrimônio do pai, basta entrar no processo".

A reportagem procurou João Marcelo Gilberto nesta quarta para que ele comentasse a situação, mas não conseguiu contato. Na entrevista que deu ao jornal, ele se disse triste e preocupado com o pai. "Gostaria que ele tivesse um final de vida feliz e tranquilo, e sei que posso contribuir muito nesse sentido, desde que pessoas agora próximas a ele não façam esforço em me afastar", declarou.

REPERCUSSÃO

Amigos falam com abatimento ao ver o pai agonizando na praça. "Eu sinto uma consternação enorme, porque sei da verdade que é essa dimensão reclusa do João, o quanto isso faz parte de uma escolha, de um modo de vida. Ele está lá para se preservar e preservar o mundo ao seu redor. João não quer atrapalhar o mundo", disse Gilberto Gil ao jornal "O Estado de São Paulo" há uma semana.

Um show para João? Uma voz amiga diz: "Seria preciso um Rock in Rio inteiro para pagar suas de dívidas". E por que não? "Porque a Justiça bloquearia o repasse do dinheiro para pagar credores." O pesquisador Zuza Homem de Mello reconhece a missão intrincada: "Imagino que deva existir uma espécie de gestor para encaminhar tal quantia ao destino certo e ajudar João a sair da embrulhada em que, é forçoso reconhecer, ele teve sua parcela de culpa por cancelar shows contratados."

O escritor Ruy Castro, que costurou "Chega de Saudade" com a vida de João Gilberto, preocupa-se com a superpopulação, para os padrões gilbertianos, que pode estar a seu redor nesse momento. "Deus livre João Gilberto de ver estranhos batendo à sua porta tentando ajudá-lo. E entre os estranhos, incluo todo mundo." Dentre os cuidadores possíveis, o escritor só confia na filha, Bebel Gilberto. "O problema de João compete exclusivamente à Bebel, a única pessoa lógica e confiável em toda essa história, e aos médicos a que ela entregar seu pai." Mais do que um caso de saúde pública, João, para Ruy, seria vítima de um caso de polícia: "Quanto ao dinheiro que ele tinha e sumiu, quem deve cuidar disso é a polícia. Se o dinheiro aparecer, todas as suas dívidas serão saldadas e ainda lhe sobrará troco."

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Tom Zé, outro joãoniano de criação, lembra que não se trata do primeiro derretimento de João Gilberto. Em 1999, ao inaugurar com Caetano Veloso o Credicard Hall, "a maior casa de espetáculos da América Latina", João não se intimidou com o tilintar das joias da primeira fila e, mesmo recebendo R$ 60 mil de cachê e pisando em tapetes reais, resolveu ser fiel apenas ao seu violão. "Nunca mais piso aqui", disse, ao ouvir o eco que não deixava suas pausas em paz. E então, quando a vaia da plateia parecia enterrá-lo, devolveu com um gesto desconcertante: "Vaia de bêbado não vale", cantarolou, mostrando a língua. Em Juazeiro da Bahia, há 70 anos, João se emocionava ao ver os caminhões chegando pela estrada de terra sob as aroeiras: "Olha só como as árvores acariciam a cabeça daqueles caminhões", dizia aos amigos. Gil está certo. Era delicadeza demais para o mundo que está fora de seu apartamento.

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