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Documento americano muda imagem de Geisel

Documento americano muda imagem de Geisel

Cientista político da USP avalia impacto das revelações da CIA

Publicado em 13 de maio de 2018 às 00:23

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Atos como a revogação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1978, e a decisão de afastar o general responsável pelo DOI-Codi de São Paulo após o jornalista Vladimir Herzog e o metalúrgico Manoel Fiel Filho serem assassinados no local fizeram com que a história reservasse ao general Ernesto Geisel a imagem de militar “moderado”. Não será mais assim, na visão do respeitado cientista político e professor da USP José Álvaro Moisés.

Para o estudioso da USP, o documento que veio a público na última semana exige outra interpretação das ações de Geisel.

Como a sociedade brasileira deveria encarar essa revelação que surge no memorando da CIA?

Na minha opinião, deveria ter uma grande publicidade, um grande debate. É preciso discutir abertamente para que a sociedade, de alguma maneira, entenda o significado da experiência da ditadura militar e da intervenção de militares na política, quando não é essa a função que lhes cabe.

Sabia-se que a execução era uma política de Estado. O que choca agora é exatamente o fato de o presidente estar envolvido pessoalmente?

Muitas coisas chocam. Por mais que se soubesse que era política de Estado, a versão oficial não era essa. O Ernesto Geisel foi apresentado como o militar que fez a abertura democrática. Era considerado da chamada linha branda, moderado, que se contrapôs quando houve as mortes de Herzog e Manoel Fiel Filho. Mas o que esse memorando está mostrando é que não era nada disso. Ele não apenas tomou conhecimento de execuções como não se insurgiu nas reuniões, pediu para pensar no assunto no fim de semana e autorizou a continuidade das execuções.

A reação de muitas pessoas tem sido a de minimizar o fato de um presidente permitir que pessoas sejam assassinadas dizendo, por exemplo, que o número de mortes citadas a Geisel, 104, é baixo. Como conversar com essas pessoas?

Em certo sentido, é compreensível que pessoas que estejam distantes não tenham clareza do horror que foi a ditadura, a perda de liberdade, a impossibilidade de escolher os governantes e de se posicionar com clareza. Não basta apenas ler, quando é o caso de lerem os livros de História. Em certo sentido, uma consequência grave da experiência autoritária, como tivemos, é que não há apenas ausência de informação pelos mais jovens. Mas também perda do significado da dignidade humana. Quando dizem que foram só 104, estão dizendo que deveriam ter sido 500, 1000, 20 mil? É uma perda de humanidade que ocorre em função da ditadura.

O senhor se preocupa com o fato de, aparentemente, ganhar força um saudosismo da ditadura, muito em função da crise institucional brasileira?

É muito preocupante. Pensam que um regime militar seria melhor que o nosso regime democrático. Como disse Winston Churchill, a democracia tem falhas, mas é o menos pior dos regimes. Acho que a preocupação tem que se concentrar em um ponto importante. Precisamos que os líderes democráticos, que se definem assim, abertamente falem ao público e defendam os valores da democracia, da tolerância política, que impeçam que a violência predomine sobre a vida política. Tivemos a execução da vereadora Marielle Franco, o ataque à caravana do Lula, ameaças a ministro do STF e, em 2016, candidatos foram assassinados. Os líderes democráticos têm papel importante. Têm que restabelecer a confiança das pessoas.

Às vezes, parece não surtir efeito combater essa onda intolerante com informação. Deve ser combatida com o quê?

É importante que as pessoas entendam que a sociedade, assim como a política, o bom desenvolvimento da economia, a renda e a estabilidade econômica, nada disso é coisa que acontece por acaso ou espontaneamente. São fenômenos que têm que ser construídos. E essa construção passa pelo diálogo. Devem entender que para além do interesse individual, existe o interesse da coletividade. A democracia, para que ela exista, para que mantenha o clima de liberdade, o direito de escolher, é também responsabilidade dos cidadãos e dos eleitores, além dos líderes.

O interesse pelo que é coletivo e pelo combate à corrupção é bom para a democracia.

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Eleitores têm que construir a democracia. Não aceitar intolerância, não aceitar fraude, não vender o voto, não cair no erro de escolher políticos corruptos. Estamos acostumados a cobrar quem está lá em cima, mas há uma série de responsabilidades que, ao lado da crítica aos partidos e aos políticos, são prioritárias. Quando as instituições funcionam mal e começam a deteriorar o sentido da vida comunitária, as pessoas começam a pensar em alternativas diferentes da democrática e começam a apoiar aventuras antidemocráticas.

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