Livro reúne entrevistas com personagens da contracultura
Conversas conduzidas pelo jornalista V. Vale traçam panorama das culturas alternativas
Alguém aí come centopeias gigantes? É o que entrevistador quer saber. Seu nome é V. Vale e ele está sentado na sala de William S. Burroughs, escritor-mentor da geração beat. A conversa já passou por alguns tópicos insólitos, de Idade Média a gases hipnóticos, e agora se aproxima do fim. "William, sou tão feliz por poder lhe ver", diz Vale, seguido por Burroughs: "Nos veremos de novo." O autor de "Junky" morreria dali a quatro meses, em 2 de agosto de 1997, sem rever Vale; mas não sem deixar gravada a antológica entrevista, mais tarde publicada na revista "RE/Search". E, já em 2015...
"É simplesmente impossível evitar que uma frase dessas, tirada de um papo com o Burroughs, não se transforme em título de livro!", diz o "Reverendo" Fabio Massari ao C2. Referência em jornalismo cultural e música alternativa, Massari não resistiu à pergunta de V. Vale, e nem a tantas outras entrevistas conduzidas pelo norte-americano. "Alguém Come Centopeias Gigantes?", reunião de uma série de diálogos de V. Vale com personagens da cultura alternativa, acaba de sair pela Edições Ideal.
A coletânea é o terceiro lançamento da Coleção Mondo Massari, inaugurada com a HQ "Malcolm", de Massari e Luciano Thomé; a série também teve "Nós Somos a Tempestade", de Luiz Mazetto, sobre metal alternativo nos Estados Unidos. Por enquanto, a editora não sabe qual será o próximo título.
As entrevistas foram originalmente publicadas no fanzine "Search & Destroy", fundado por Vale em 1977 com ajuda financeira dos poetas Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti – US$ 100 cada –, e da revista e editora "RE/Search", cujos alicerces também foram levantados pelo norte-americano. Ambas as publicações formavam um manual básico para os guerrilheiros das contraculturas.
Pudera: nas páginas escritas por Vale, e transpostas para o livro, estão Jello Biafra, Devo, The Clash, Patti Smith, J.G. Ballard, The Cramps, Timothy Leary, Paul Krassner, John Waters, Henry Rollins, Lydia Lunch, Lawrence Ferlinghetti, Throbbing Gristle, Diane di Prima e William S. Burroughs.
Fabio Massari conta que o norte-americano topou a empreitada de primeira, quando os dois se encontraram em 2014. "Conheci o fanzine 'Search & Destroy' através das pesquisas sobre o punk rock californiano. Na sequência, segui como leitor das publicações da 'RE/Search'. Sou leitor da produção do Vale há umas boas decadas", diz.
Hoje, V. Vale continua na ativa, publicando livros de entrevistas e comandando o programa de TV "Counterculture Hour". Segue, então, servindo de mediador para a cultura rebelde, ainda que os tempos sejam outros. Nos dias de ouro da "S&D", o punk rock estourava nos Estados Unidos e na Inglaterra, e começava a espraiar seus filhos pelo mundo. Massari, um adolescente nos anos 1970, conseguia os discos com certo atraso.
"Mas era assim que se vivia e as articulações existenciais-intelectuais surgiam a partir do que se conseguia. Acho que sempre me interessei pelos 'alternativos', no sentido de perceber desde cedo que existiam muitas opções ao que o 'mercado' nos entregava. E estou falando de discos e também de informação!", lembra.
Além do conteúdo grandioso e das personagens em questão, as entrevistas de V. Vale impressionam pelo traquejo do entrevistador. Todos os entrevistados, dos mansos aos mais nervosos, parecem muito à vontade ainda que interpelados. Massari desvendou o "segredo": "Interesse genuíno pelas pessoas e pelo que elas tem a dizer", diz. "E altíssimas doses de humor 'zenpunkista'."
Confira:
Alguém Come Centopeias Gigantes?
V. Vale
Organização: Fabio Massari. Edições Ideal, 304 páginas. R$ 49,90.