> >
'Fizeram apostas de que eu não duraria nem dois anos'

"Fizeram apostas de que eu não duraria nem dois anos"

Com 27 tatuagens, lutador de jiu-jítsu e apaixonado pelo carnaval, padre carioca transformou em fenômeno missa em devoção a São Miguel

Publicado em 8 de dezembro de 2018 às 00:00

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Livro conta a trajetória do padre João Claudio Nascimento, que tem mais de 20 tatuagens, È lutador de jiu-jÌtsu, apaixonado por carnaval e que transformou em fenômeno uma missa em devoção a São Miguel. (Divulgação)

Ele é forte, usa roupas grunge e cabelo no estilo moicano, tem mais de 20 tatuagens espalhadas pelo corpo, é campeão de jiu-jítsu e apaixonado pelo carnaval. Quem o vê com esse jeitão “bad boy” não imagina que ele é padre. “Para alguns sou um pouco exótico sim”, admite João Claudio Nascimento, 44 anos.

Embora concilie a vida no tatame com a do altar, é com a batina e não com o kimono que ele cumpre sua luta mais árdua. O padre chamou a atenção por causa das missas lotadas que comanda numa paróquia em Niterói, no Rio de Janeiro. Antes, a igreja estava vazia. Agora, atrai cada vez mais fiéis, de diversas religiões, a maioria devotos de São Miguel Arcanjo.

Esse fenômeno é contado no recém-lançado livro “Uma vida de luta: a incrível história do padre que resgatou a devoção a São Miguel” (Editora Máquina de Livros). A obra não fica só nisso. Narra a trajetória cheia de altos e baixos do padre João Cláudio, que teve que vencer uma sentença de morte após um diagnóstico falso de câncer terminal. Confira um pouco mais dessa figura curiosa.

O senhor é uma figura bem diferente, não é, padre?

É verdade (risos). Para alguns, sou um pouco exótico.

Sempre praticou jiu-jítsu?

Sempre. Eu sou a terceira geração da minha família dentro do jiu-jítsu. Praticamente, nasci dentro de um tatame. Meus tios e meu pai tinham academia lá na década de 1970. Com um ano de idade, eu colocava o kimono e ia para o tatame. E minha infância e adolescência passei dentro de tatame de jiu-jítsu e de judô também. Interrompi quando entrei no seminário e só fazia ocasionalmente, nas férias. Depois, quando me ordenei padre, em 2001, passei por um processo de depressão, síndrome do pânico, por uma estafa. Foi quando meu tio me levou para praticar jiu-jítsu de novo, para me ajudar no tratamento. Depois de recuperado, retomei minha vida sacerdotal.

O senhor participava de competições?

Sim. Até que uma vez competi, mas estava com 160 quilos. Perdi a luta para mim mesmo. E resolvi operar o estômago. O jiu-jítsu foi importante para mim quando recebi um diagnóstico errado de câncer terminal, em 2016. Me deram sete meses de vida, e resolvi encerrar meus últimos meses retomando atividades que eu fazia. O jiu-jítsu, por exemplo. Voltei a treinar sério, aproveitando o pouco tempo que achei que tinha. Cheguei a ser campeão na minha categoria numa copa aqui em São Gonçalo, e fui vice-campeão na liga de desportos e jiu-jítsu. Só fui vice porque lutei cansado. Havia celebrado duas missas e um batizado. Não estava preparado fisicamente. É difícil conciliar a vida de atleta com a de paróquia.

Como foi essa história de depressão?

Eu já era padre recém-ordenado. Tinha com 24 anos, era muito novo e fazia muitas atividades ao mesmo tempo. Fazia mestrado em Teologia na PUC, tinha os trabalhos na paróquia e outros trabalhos pastorais. Tive um cansaço mental muito forte que gerou depressão e síndrome de pânico. Foi por excesso de trabalho mesmo. Eu não tinha carro e passava muitas horas por dia dentro de ônibus.

Livro conta a trajetória do padre João Claudio Nascimento, que tem mais de 20 tatuagens, È lutador de jiu-jÌtsu, apaixonado por carnaval e que transformou em fenômeno uma missa em devoção a São Miguel. (Divulgação)

Ninguém pensa que um padre pode ter depressão...

Já ouviu falar na Síndrome de Burnout? É bem comum em padres. É considerada uma síndrome que ataca religiosos por causa da pressão grande, não poder errar. Não é falta de fé, desespero. Nós religiosos também somos suscetíveis a problemas físicos. O padre Fábio de Melo e o padre Marcelo Rossi já tiveram depressão. No ano passado, mais de 10 padres se suicidaram por causa disso. Tive uma prostração forte, e cansaço se transformou em tristeza, e a tristeza em medo. Eu não sabia muito bem explicar o que aconteceu. Fui me deixando levar.

Como saiu dessa?

Foi uma das coisas que me levaram a voltar para o esporte. Meus paroquianos e as autoridades da igreja me apoiaram. Porque a gente precisa ter qualidade de vida para servir. Além do jiu-jítsu, que me ajudou muito, me ajudou muito, tive grande surpresa com a Canção Nova. Um dos meus trabalhos além da paróquia era contato com Canção Nova de São Paulo. Um dia, o fundador, padre Jonas Abib, me ligou. Até pensei que fosse trote! Ele disse: “pode me encontrar amanhã às 10 horas em São Paulo?”. Eu fui. Ele me fez o convite para ficar na Canção Nova fazendo tratamento de saúde com médicos. Era para ficar pouco tempo, mas fiquei quatro meses e fiz minha recuperação lá.

Como foi o tratamento, com medicamento?

Era uma terapia alternativa, com oração com médicos, terapia e trabalho. Não tinha remédio algum. Eu escrevia. Era a única coisa manual que fiz, foi escrever e atender confissões. À noite, os médicos me rezavam. Nosso corpo tem limite. Temos que cuidar da alma, da mente e do corpo. O equilíbrio dos três é muito importante. Hoje prezo pelas minhas férias, pelas folgas que tenho, para descansar meu corpo. No esporte, a gente aprende e ter disciplina nesse sentido. E a oração para mim é fundamental, junto com o treino de jiu-jítsu, que faço diariamente.

Depois veio outro baque, a notícia do câncer.

Em 2007, fiz a bariátrica. Depois de uma cirurgia dessa, a gente tem que ficar em acompanhamento. Em 2009, repeti os exames. E em 2014 também. Na época, chegou a acusar algo, fiz biópsia, mas não deu nada. Em 2016, procurei meu médico e fui a uma clínica, onde fiz todos os exames. Quando fui buscar, o diretor me chamou e deu a notícia assim na lata. Ele achava que eu era mais preparado para isso, por ser padre. Disse que não adiantava fazer cirurgia. Era um câncer no pâncreas que havia se espalhado para o estômago. Fiquei atônito. Não quis nem contar para minha mãe, que morava comigo e era idosa. Fui a um morro atrás da igreja lá no bairro e queimei todos os exames. Pensei: vou morrer. E comecei a me preparar para a morte.

Só que não era verdade...

O exame não era meu. Estava em meu nome, mas não era meu. Nunca pensei na vida que médico errasse. Até que eu descobrisse isso, emagreci 15 quilos. Vivi todo um processo emocional. Fui para a terapia. Eu só “confessei” isso para uma psicóloga, que me ajudou muito na época. Dentro da minha espiritualidade, estava consciente. Deus é muito sábio de não nos dizer quando vamos morrer. Mas pensei: não vou me entregar, não! Comecei a fazer jiu-jítsu, mudei minha alimentação. Esse período de incerteza durou quase cinco meses. De julho de 2016 ao início de dezembro. Nesse período, surgiu a oportunidade de viajar com o cardeal, de quem eu era assessor, para Roma. Fui nem tanto para trabalhar, mas para rezar, me despedir, onde tive o privilégio, numa das maiores providências de vida, de dar um abraço no papa Francisco. Era meu sonho!

Como foi isso?

Um padre me deu um convite para encerramento do ano da misericórdia, uma missa com o papa. Lá, meu amigo, que conhecia um dos guardas, foi distraí-lo. Nesse momento, me meti no meio dos padres que iam falar com o papa. Cheguei perto dele e disse: “O senhor salvou minha fé”. E o papa respondeu: “Obrigado. Eu precisava ouvir isso hoje”. Nós nos abraçamos por uns dois minutos. E eu chorei. Passei a mão no rosto dele, no anel. A gente não queria se largar. Rolou uma conexão muito forte. Até que o guarda percebeu, e meu amigo gritou “João, larga ele!” (risos). Os guardas vieram para cima de mim! O papa disse: “Reza por mim”. Foi o maior presente da minha vida.

Mas como descobriu que não iria morrer?

Quando eu voltei, o cardeal me chamou, disse que me achava triste, que via que eu não comia direito. Contei para ele do câncer. E ele falou: “Mas João, você não parece estar morrendo. Será que não houve um erro?”. Nisso, fui até a casa de uma jovem que frequentava a missa e estava no terceiro câncer dela. Perguntei da doença, queria ver os exames... Ela foi me mostrando documentos. Até que mostrou um que disse ter sido trocado na clínica. Por coincidência, era a mesma clínica que a minha, o mesmo médico, que ela estava até processando. Decidi ir até duas clínicas diferentes e refiz todos os exames em cada uma delas. Ambos deram o mesmo diagnóstico. Acho que alguém que devia achar que estava ótimo deve ter morrido, porque o exame veio para mim.

E as tatuagens vieram nessa época?

Sim. Comecei a fazer as tatuagens e gostei. Era coisa característica familiar. Mas as minhas têm motivos religiosos e familiares. Tenho São Miguel no braço esquerdo. Uma medalha de São Bento no peito esquerdo. Um terço, uma outra dedicada à Nossa Senhora do Sagrado Coração de Jesus, que é uma devoção particular minha. No lado direito, tenho umas em homenagem à minha família. Por exemplo, ao meu pai, que era policial militar e foi assassinado em serviço quando eu tinha 9 anos. Fiz um buraco de bala para lembrar a violência, uma caveira, que representa a morte, entre outras.

As tatuagens não causaram problemas na igreja?

Antes de fazê-las, consultei o Código de Direito Canônico, onde não havia nenhuma restrição a tatuagem. Sou mestre em Direito Canônico pela Universidade Gregoriana de Roma e em Teoria Dogmática pela PUC. Mas claro que todo mundo me olhou estranho. Achavam um absurdo, ainda mais para um padre que trabalhava diretamente com o cardeal. Sofri muito bullying, sobretudo nas redes sociais, que são a forma mais covarde que as pessoas têm de atacar umas às outras. Muitos padres têm tatuagem, mas ficam no anonimato. Não mostram. Têm medo. Acho que fui o primeiro a mostrar. Não levanto bandeira. Graças a Deus o Papa Francisco fez um discurso falando de tatuagem, dizendo que é um costume cristão antigo, que não há mal algum, desde que não seja contra a fé. Hoje tenho 27 tatuagens, mas pode ser que faça mais.

Os fiéis procuram o senhor para abençoar as tatuagens?

Tem dez anos que faço isso, principalmente tatuagens de São Miguel. Recebo pessoas que não entravam na igreja havia 30 anos, que são tatuadas, são de outras religiões, são umbandistas, kardecistas. Faço um trabalho de evangelização diferente. Tive uma experiência com a Igreja Católica e resolvi ser católico. Mas os colegas de seminário faziam apostas. Me achavam diferente mesmo, autêntico. Eu sempre fui muito eu. Me enquadrava nas normas, mas tinha meu jeito de ser. Quando me ordenei, também fizeram apostas, diziam de que eu não iria durar dois anos no sacerdócio. Vou fazer 20 anos como padre e estou muito feliz. Amo o que faço, amo rezar missa, receber as pessoas.

E o amor pelo samba, como surgiu?

Um dia tive um sonho em que São Miguel me dizia que a Viradouro só iria ganhar o carnaval no dia em que ele entrasse na avenida. Contei para um pessoal da escola, que me levou para fazer uma missa, para dar uma bênção lá na quadra, no barracão. Quando cheguei lá, me surpreendi com a quantidade de católicos que frequentavam minha missa. Me senti em casa e se criou um laço afetivo. Por coincidência ou não, naquele ano, em 2014, entrei na avenida segurando o santo, e a escola ganhou. Tem quatro anos que desfilo. Vou na ala da velha guarda.

Como surgiu a ideia do livro?

Este vídeo pode te interessar

Faço essa missa para São Miguel há dez anos. Antes não tinha tanta devoção. E virou coqueluche. Vem gente de outros Estados até para a missa. Gente de São Paulo, de Minas, de Fortaleza e Espírito Santo também. São Miguel é o arcanjo mensageiro de Deus. Ele tem devotos não só no catolicismo, mas também entre judeus, evangélicos e até muçulmanos. Começamos a missa por causa da Campanha da Fraternidade, em 2008, cujo tema era segurança pública. Quem no céu era o general? São Miguel. Então, bora nos apegarmos a ele, pedir proteção! E a devoção começou a crescer! A missa trouxe à comunidade coragem para enfrentar o medo, a insegurança. Temos muitos testemunhos de livramento de assalto, de tiro, de sequestro. Fazemos a missa de dia porque as pessoas não querem sair de casa à noite. E ainda é transmitida pela Internet, até para o exterior. A missa do dia 29 de setembro foi acompanhada por 200 mil pessoas pela Internet. Daí veio a história do livro, onde resolvemos contar sobre a missa a partir da minha vida. Tem 10 anos que escuto testemunhos, mas não havia dado o meu ainda.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais