Entrevista

'Quis tirar a cara de toalha de mesa e sofisticar a renda brasileira'

A estilista alagoana, primeira brasileira a ter suas criações vendidas na conceituada loja Bergdorf Goodman, vai criar uma escola de rendas para artesãos no sertão de Alagoas

A estilista Martha Medeiros
A estilista Martha Medeiros
Divulgação

A alagoana Martha Medeiros é, antes de tudo, uma sonhadora. Pioneira no trabalho de sofisticar a renda nordestina – como a renascença, o filé, o richelieu e a de bilro – e transformá-la em vestidos monumentais, a estilista coleciona uma série de conquistas ao longo da carreira.

Deixou para trás, há alguns anos, o emprego estabilizado num banco e foi estudar moda na primeira turma do Senac. “Queria vender uma peça que eu não achava. Algo que, na verdade, seria o vestido mais lindo da vida daquela pessoa”, conta. Com um pequeno detalhe: ela nunca soube desenhar.

Conquistou Maceió, depois a elite de São Paulo, o Brasil e as estrangeiras. Martha quer conquistar o mundo. Foi a primeira brasileira a ter suas criações vendidas na loja de departamentos mais sofisticada de Nova York, a Bergdorf Goodman. Ano passado inaugurou sua primeira loja em Los Angeles, com convidadas como Sofia Vergara, Camilla Belle, Luciana Gimenez e Xuxa. Sua clientela paga o preço da exclusividade: um vestido pode chegar à casa dos cinco dígitos.

Mas é em Piranhas, no sertão de Alagoas, que ela se sente em casa. É lá que vivem as rendeiras, que tanto ajudam no seu trabalho de divulgação do produto nacional. Agora, Martha se prepara para montar uma escola de rendas na região. Notícia que ela nos contou com exclusividade. “Não é uma escola para aprender a fazer renda. Os alunos poderão levar qualquer artesanato e a gente vai agregar design, arranjar mercado consumidor para ele, e gerar renda para família”, adiantou ela que esteve em Vitória recentemente e conversou com A Gazeta.

Como é o processo de construção de um vestido seu?

Eles são feitos à mão. Mas eu preciso te contar que, eu morria de vergonha, porque não sei desenhar nada. Até uns quatro anos atrás, quando os jornalistas pediam para eu mostrar o croqui, eu inventava uma desculpa e pedia para alguém da minha equipe desenhar. Até que há quatro anos eu contratei uma professora de História da Moda e fui fazer um curso de três dias em Paris. Fomos na casa Coco Chanel, que é em cima da loja da professora. Conversando, eu falei: “Nunca vi um croqui da Chanel”. Ela me contou que ela também não sabia desenhar. Eu fiquei em êxtase. Só aquela frase valeu pelo curso. Desde então, sempre que perguntam pelo croqui eu falo: “Meu amor, eu e Chanel não desenhamos” (risos).

E os vestidos são desenhados no corpo?

O vestido da Ivete Sangalo (que a cantora usou no encerramento da Copa de 2014) foi feito no corpo dela, na casa dela, em Sauípe. Ele foi fenomenal, abriu muitas portas, inclusive fora do Brasil. Aquela renda eu não consigo fazer em menos de três anos. Se eu pudesse fazia os vestidos, um por um, no corpo da cliente. Cada vestido é único. Não interessa se ela tem dez e aquele é mais um, ou se ela comprou uma peça divida em 10 vezes. É o mesmo respeito que tenho. A renda que uso é feita artesanalmente e, com ela, faço cerca de 20 modelos para o Brasil, que são exclusivos. Hoje também trabalho muito com a renda da França, de uma companhia comprada por Chanel, porque a nossa técnica é muito demorada.

Qual é o seu objetivo ao usar renda?

Renda tem a ver com cultura. Na Europa do século 17, as rendas eram feitas pelas freiras. E as meninas da corte, além de aprenderem línguas também aprendiam a bordar e fazer renda. Quando essas freiras vieram colonizar o sertão do Brasil, elas começaram a ensinar renda para as pessoas de baixa renda, para ser um ganho a mais para essas famílias. Quando Marques de Pombal chegou no Rio de Janeiro e viu as pessoas que não eram da corte usando renda feita à mão, ele baixou um decreto proibindo o uso. A renda foi criada para vestir nobres. Então, sempre quis tirar a cara de toalha de mesa e sofisticar a renda brasileira. Ninguém quer sair como a tia-avó solteirona. A mulher quer estar antenada. O que eu fiz foi colocar a palavra moda na renda brasileira.

Fale um pouco do trabalho realizado com as bordadeiras de Piranhas, no sertão de Alagoas, conhecido por abrigar dezenas de mulheres que confeccionam renda artesanalmente às margens do Rio São Francisco.

Esse trabalho é um sonho. O trabalho que começa em Piranhas vai para o mundo. Piranhas é um lugar mágico, onde tem o Rio São Francisco, e canyons enormes. Tem algumas ilhas onde as mulheres vivem de renda e os homens vivem de fazer artesanato com madeira. Lá foi onde tudo começou, na nossa casa de bordado. São 400 mulheres, divididas em grupo de 10. A gente capacita, mas faz muito mais que isso. Queremos mostrar que o mundo é maior que o sertão. Queremos empoderar essas mulheres, que seus filhos frequentem as melhores faculdades, mostrar que ter água dentro de casa é um direito delas e que isto está garantido na constituição. A gente quer muito para aquele lugar e para aquele povo.

Muito mais do que moda, você também pensa no social do seu povo. Ano passado você realizou a campanha Primavera no Sertão, para promover financiamento coletivo em prol de projeto de abastecimento de água...

Junto com a Perrier-Jouët (marca de champanhe) fundamos três poços. Além do apoio financeiro, cada postagem no Instagram foi correspondida pela entrega de um buquê a mulheres que nunca receberam flores como presente, em zonas rurais próximas às cidades de Camalaú e Monteiro, na Paraíba. Também fizemos um papel de parede em Nova York e, com esse dinheiro, completamos 10 poços. Vamos acabar esse ano com mais de 1500 pessoas que nunca tiveram água em casa, tendo acesso a água. Os beneficiários moram sertão adentro. Quero fazer dessa região o sul da França, enchendo de fontes, colocando escolas. Eu acredito que a região vai mostrar ao mundo que o luxo do Brasil vem do sertão.

Você também vai inaugurar uma escola de rendas, em Piranhas...

Vamos montar nossa escola de rendas em Piranhas. Não é para aprender a fazer renda. Os alunos poderão levar qualquer artesanato e a gente vai agregar design, arranjar mercado consumidor para ele e gerar renda para a família.

Esse feito você já tem conseguido. A inauguração da sua loja em Los Angeles foi um acontecimento. Como é para uma nordestina conquistar Hollywood?

Ainda tô chegando. Porém é muito bom ver isso acontecendo. Sei que aqui as pessoas me conhecem, mas nos Estados Unidos a gente não é conhecida como uma grande marca. Então esse sucesso me deixa muito feliz, porque as pessoas enlouquecem pelo trabalho. Elas não estão comprando a marca e sim as peças, e isso me encanta. Vai chegar a hora que a marca será extremamente conhecida. Hoje elas desejam a peça. Eu não acredito que vendo todos os dias fora do Brasil.

Você fez um dos vestidos do casamento da atriz Sofía Vergara. Como surgiu o convite?

Eu estava na minha loja em São Paulo quando o telefone tocou. Eu não conhecia ninguém com esse nome e, antes de desligar, fizemos uma rápida consulta. Quando digitamos o nome dela no Google apareceu a capa da revista Forbes, dizendo ser a atriz mais bem paga da TV americana. Achei que fosse uma secretária, mas era a própria. Ela me disse que me seguia no Instagram há três anos e estava esperando uma ocasião especial para usar um vestido meu. E queria que fosse um dos vestidos de casamento - ela usou três. Depois disso criamos uma amizade. Passou um ano e quatro meses do dia que a atendi até abrir a loja em Los Angeles. Ela sempre dizia: “Você tem que abrir uma loja aqui. Você não faz roupa, faz arte”.

Em 2010, você expôs no museu dedicado à renda, na França, ao lado de criações de Chanel, Valentino e Prada. Como surgiu esse convite?

O convite surgiu da Sasha, que é diretora de moda do museu. Eu não a conhecia e ela soube do nosso trabalho através da internet, e me convidou para conhecer o museu. Fui e fiquei enlouquecida, porque é o único museu dedicado exclusivamente à renda. Ele junta os melhores criadores. Passei três dias dentro do cofre do museu, queria ver pontos antigos que não existem mais nas rendas. E também pude estar com um vestido inteiro de renda renascença, representando o sertão brasileiro e as rendeiras que tanto me ajudam.

Você cursou Direito e trabalhou como bancária antes de se tornar estilista?

Eu sou da época que, com 18 anos, tinha que casar, ter um emprego público federal e comprar uma casa do Banco Nacional da Habitação (BNH). Então, quando fiz 18 anos eu passei num concurso do Banco do Brasil e comprei a minha casa. Mas não adiantava, eu gostava mesmo de fazer e vender roupa. Trabalhar no banco não era o meu sonho. Chegava cedo e ia para o banheiro com as sacolas de roupas. Eu revendia as peças, mas customizava muito. Adorava comprar um camiseta branca e trabalhar em cima dela. Eu vendia muito no banco, para os funcionários e clientes.

Você é queridinha das famosas, vende para 35 países, largou uma carreira estabilizada para realizar o sonho de ser estilista. O que falta acontecer na sua vida?

Desfilar na semana de alta costura de Paris. E falta pouco pra isso acontecer.

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