#Nãotenhomedo: mulheres lutam para vencer padrões e preconceitos


Não tenho medo de ser mulher, negra e enfrentar o preconceito racial

Todas elas têm plena consciência do caminho que trilharam até aqui e desafiam, cada uma a seu modo, os rótulos estabelecidos pela sociedade. Numa edição-manifesto, a Revista.ag exalta a coragem das mulheres que lutaram bravamente pelos seus direitos, mesmo que em silêncio e na individualidade

Ricardo Medeiros

Mulher, negra, nascida e criada no morro, Iamara Nascimento rouba a cena ao bater de frente com os padrões de beleza. Aos 50 anos, a funcionária pública fala com orgulho de sua história. Uma dos nove filhos de um casal que sempre viveu no morro do Forte São João, em Vitória, Iamara descobriu cedo que precisaria aprender a se defender. “Meus pais sempre exigiram que a gente estudasse para se defender da sociedade, que até hoje é racista”.

Um dos episódios mais marcantes de preconceito que viveu aconteceu quando ela estava ao lado de uma de suas irmãs. “Foi nos anos 80, numa excursão de classe média. Durante as refeições as pessoas ficavam olhando pra gente até que, em certo momento, uma integrante chegou e falou: ‘Nossa, está todo mundo admirado com vocês duas. Como se comportam bem e usam os talheres’. Na hora respondi: ‘Vocês acharam que fossem encontrar duas macaquinhas pulando nas mesas?’. Foi uma cena de preconceito explícita, porque se eu fosse branca ela teria achado o meu comportamento normal”.

Sambista, defensora das artes e mãe, Iamara não tem medo de enfrentar o preconceito racial, ainda presente em pleno 2018. “O preconceito existe e a gente o enfrenta mostrando a nossa capacidade”.

Com quem aprendeu a ser forte?

Com os meus pais, que sempre exigiram de mim e dos meus irmãos o estudo. Talvez eles já soubessem que precisaríamos nos defender da sociedade. Aprendi, ao londo da vida, a enfrentar o preconceito por ser mulher e negra. O Brasil e o Espírito Santo são preconceituosos. Entrar numa faculdade foi um ato de resistência, sim. Mas foi dentro de casa, com os meus pais, que aprendi todos os meus direitos e a ter autoestima. Gosto de gente sem distinção de gênero ou cor de pele.

Qual o pior tipo de preconceito?

O pior de todos é quando as pessoas acham que eu não tenho capacidade de exercer algum cargo, simplesmente por conta da cor da minha pele. Ou por vir de uma classe menos favorecida. Nunca acham que estamos ali por mérito. Isso ainda hoje me choca, mas o enfrentamento é importante, e acontece quando mostramos nossa capacidade.

Então, em Vitória, ainda existe preconceito por você ser mulher e negra...

Adoro Vitória, mas preciso dizer que chique, aqui, ainda é ser doutor. É uma cidade onde o preconceito acontece de forma velada, mas muito forte. Se você é negro e chega em determinadas festas ou locais, as pessoas te olham desconfiadas. Isso realmente acontece.

Manter o cabelo afro é um ato de resistência?

Manter o meu cabelo do jeito que ele é, sim, um outro ato de resistência, assim como foi entrar numa faculdade. Trabalho na área de saúde e tem gente que olha para o meu cabelo (que hoje está com dreads) como se ele não fosse adequado para estar naquele ambiente. Sempre fui assim, quando nem era modinha, eu já usava estilo nagô. Também já alisei, mas porque quis, e não por uma pressão da sociedade. Os turbantes são uma marca registrada.

Quando você teve medo na vida?

Umas das poucas vezes que tive medo foi quando me separei, em 2007. Saí de casa e fui morar com o meu filho. Era o medo, tão impregnado na sociedade, de como recomeçar a vida. Acham que a gente ainda precisa de um homem para nos sustentar. Naquele ano eu quebrei mais um paradigma.

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Não tenho medo de assumir o cabelo branco e as rugas

Helaine Bretas, 58 anos, aprendeu que cada fase da vida tem sua beleza. E numa sociedade que hipervaloriza a juventude, ela não teve medo de assumir os cabelos brancos e as rugas. “Me sinto bonita e feliz assim”, diz. Como qualquer pessoa, ela também teve suas dores - como a perda de três filhos durante a gestação. Casada, conta que se reinventou depois dos 50 anos, já que acaba de virar modelo de comercial para TV. “Nunca imaginei, mas é mais uma prova de que beleza não tem idade”.

Quando você assume os cabelos brancos?

Tenho cabelos brancos desde os 18 anos. Mas nessa época eu ainda disfarçava. Aos 30 já tinha bastante e comecei a pintar. Mas a escravidão da tinta era uma coisa terrível. Como era muito branco, tinha que pintar a cada 10 dias. Já fiz de tudo, descolori e até usei fios vermelhos. Depois de tanto tempo, cansei e decidi assumir os cabelos brancos. Aconteceu em 2015, e foi uma libertação.

Você sofreu preconceito?

De muita gente, que falava que eu ficaria velha. Estou com 58 anos e tenho que entender a fase correspondente a minha idade. Cada fase da vida tem a sua beleza. Envelhecer e ter rugas é normal, a ordem natural das coisas.

Como é a vida depois dos 50?

Depois dos 50 anos você se liberta de muitas coisas, como das rugas por exemplo. Gosto de assumi-las. Nunca fiz e nem pretendo fazer plástica. Acho que as pessoas estão querendo ser sempre jovens, vivemos na geração da plástica. Envelhecer naturalmente é o caminho que eu escolhi. A beleza vem de dentro.

Você tem filhos?

Eu e meu marido tivemos quatro filhos, mas perdemos três. Só fiquei com a Aline Bretas, que é maquiadora. Na primeira gravidez eram gêmeos e eu perdi os bebês. Logo depois tive a Aline. Em seguido fiquei grávida novamente, só que não soube, e acabei perdendo. Depois disso decidi fazer a ligadura de trompas.

Como é viver o luto?

Todas as vezes foram muito difíceis. Sempre entendi que era da vontade de Deus. É muito difícil lidar com a dor da perda. Quando perdi os gêmeos, eu sofri muito, só com a chegada da Aline que recomecei. Falo que foi ela foi o bebê arco-íris, aquele que trouxe cores para minha vida. Ali tive o desejo de ser mãe concretizado.

Qual o seu sinônimo de beleza?

Beleza não tem idade. Recentemente minha filha precisou de uma modelo madura para maquiar e eu fui. Depois disso apareceram outros trabalhos de modelo em comerciais que nunca imaginei. Tudo por causa dos meus cabelos brancos.

#Nãotenhomedo: mulheres lutam para vencer padrões e preconceitos


Não tenho medo de ser mulher e enfrentar a sociedade de frente

Todas elas têm plena consciência do caminho que trilharam até aqui e desafiam, cada uma a seu modo, os rótulos estabelecidos pela sociedade. Numa edição-manifesto, a Revista.ag exalta a coragem das mulheres que lutaram bravamente pelos seus direitos, mesmo que em silêncio e na individualidade

Edson Chagas

Viviana Corrêa descobriu cedo que tinha nascido no corpo errado. Mas só depois de adulta teve coragem para se assumir mulher. Viviana nunca teve dúvidas de quem era. O problema foi convencer o resto do mundo disso.

Mas mesmo tendo feito a transição tarde, não foi fácil passar pelo que ela passou. Principalmente durante a adolescência quando seu corpo de homem começou a surgir. “Me olhava no espelho e via uma inquietação, não reconhecia aquele novo corpo, não aceitava sua nova forma. Sofri sozinha”, lembra.

A metamorfose pela qual seu corpo passou mexeu ainda mais com ela, mas não a ponto de vencer o medo. Decidiu, então, apostar nos estudos e se tornar independente para um dia ser quem sempre foi de verdade.

Filha de um motorista e de uma servente, formou-se em Letras, se tornou professora, passou num concurso público e viveu durante três anos na Alemanha. Só depois, de volta ao Estado, fez a transição. “Comigo aconteceu tudo muito devagar”, conta. Hoje ela se sente realizada e orgulhosa de sua trajetória.

A partir de que momento você descobre sua transexualidade?

Bem cedo, ainda na infância. Com dois anos eu já usava as roupas das minhas irmã e saía na rua. Acredito que era a minha maneira de mostrar quem eu era e mostrar pra minha família que estavam me tratando de forma errada. Imagina isso há 30 anos, quando as pessoas estavam começando a falar sobre homossexualidade e a palavra transexualidade não era nem citada.

Como foi a adolescência?

Me olhava no espelho e tinha um inquietação, já que não reconhecia a maneira que aquele corpo estava ficando. Mas eu não comentava com ninguém e sofria comigo mesma, sem saber do que se tratava. Porque no início você não entende direito, acha que tem relação com a sexualidade, e não tem.

Quando acontece a transição?

Ela começou a acontecer em 2013. Foram dois anos de planejamento do que iria fazer da vida, porque achava que não conseguiria aguentar a pressão de simplesmente estar numa sala de aula como professora. Sabia que o julgamento seria grande e não estava empoderada suficientemente para lidar com essa pressão.

Professora, curso superior, mestrado. Infelizmente você é uma exceção no universo trans. Você acha que conseguiu chegar onde chegou porque fez a transição depois de ter estudado?

Entendo que se tivesse transicionado no começo da juventude, talvez eu não tivesse tido todas as oportunidades que tive. Tenho privilégios que 90% da população trans não tem, e isso facilita muito para que eu transite em muitos espaços onde essas pessoas não transitam, inclusive dentro da universidade. Mas fiz um caminho solitário a vida inteira. Tenho uma angústia muito grande por não ter vivido fases da vida como o início da adolescência e o primeiro amor, de forma despreocupada.

Você sofre preconceito?

Ele existe de uma maneira velada. Transito por vários espaços e, às vezes, percebo um olhar de reprovação. Ou existem comentários que são pejorativos quando viro as costas. Nunca fui humilhada publicamente, até porque as pessoas já prestam atenção no que vão dizer, e sabem que vou retrucar.

O que sentiu a primeira vez que se viu mulher?

Foi uma grande satisfação. Me vejo olhando as fotos de quando transicionei e percebo que estou cada vez melhor. Me sinto completa.

#Nãotenhomedo: mulheres lutam para vencer padrões e preconceitos


Não tenho medo de exibir o meu corpo do jeito que ele é

Todas elas têm plena consciência do caminho que trilharam até aqui e desafiam, cada uma a seu modo, os rótulos estabelecidos pela sociedade. Numa edição-manifesto, a Revista.ag exalta a coragem das mulheres que lutaram bravamente pelos seus direitos, mesmo que em silêncio e na individualidade

Vitor Jubini

A universitária Brenda Patrício, de 23 anos, percebeu desde muito cedo que não tinha o corpo considerado ideal. E sentiu a realidade na pele. “Fui uma criança gordinha, uma pré-adolescente gorda e uma adolescente obesa”, conta.

E foi durante a adolescência que ela mais sofreu, ao desafiar os padrões de beleza de um país em que só mulheres brancas e magras são consideradas belas. “A sociedade sempre reforçou a teoria de que eu não podia me sentir bonita, simplesmente por não ser magra. Aliás, como tenho 1,80 metro e 100 quilos, sempre fui a diferente: alta e gorda”.

Foi na universidade que aprendeu a ter autoestima. Aqui, revela o caminho doloroso de uma jovem que até pouco tempo atrás não fazia coisas comuns a qualquer menina de sua idade, como usar biquíni.

Como foi crescer com a sensação de não pertencimento?

Cheguei a ter depressão porque não conseguia me enxergar do jeito que deveria, só me via com os olhos dos outros, no padrão que as pessoas me colocavam. Até dentro de casa eu sofri, porque minha família sempre ouviu que era feio ser gorda. Não posso julgá-los, é um conceito impregnado na sociedade. Fiz dietas mirabolantes, tomei diversos tipos de remédios, tentei ter um tipo de corpo que nunca seria possível. Tudo, claro, sem sucesso.

Quando essa situação muda?

A minha vida só foi transformada quando entrei na universidade. Naquele ambiente encontrei pessoas com uma perspectiva diferente daquela que eu vivia. Ali aprendi que não é problema ser gorda. Não sou feia porque sou gorda. Ser gorda é apenas o contrário de ser magra. Tenho coxa grossa, celulite e estrias. Assim como a maioria das mulheres.

Você não usava short e nem biquíni...

Ano passado, no provador de uma loja, experimentei um short jeans pela primeira vez. Ali eu chorei de emoção. Era algo impensável alguns anos atrás. Também passei a usar biquíni na praia. E, posso falar? É uma sensação de libertação. A gente tem mania de achar que estamos sendo observadas o tempo inteiro. É preciso se desprender.

O que você aprendeu ao longo desses anos?

Que o padrão estético é muito relacionado às mulheres. A mulher gorda é repulsiva, não se cuida, não pode namorar, não pode ser desejada, ser gostosa. As pessoas julgam de forma indiscriminada. Hoje eu ignoro muita coisa, aprendi a lidar com o preconceito. Exibo a minha barriga. Gorda para mim não é mais xingamento. Aprendi que não tenho que ter medo de mostrar meu corpo do jeito que ele é. Me libertei.