Acessibilidade

Jovens e adultos com Síndrome de Down rompem barreiras na sociedade

Eles rompem as barreiras do mercado de trabalho e da universidade e combatem o maior obstáculo para se desenvolverem: o preconceito

Guilherme Sillva

Publicado em 12/05/2019 às 13h17

Ele já quis ser estilista. Aos dois anos escutava Bach, Tchaikovsky e Vivaldi. Aos quatro, já falava. Filho do meio de um empresário e de uma médica, Marcio Motta Assad tem síndrome de Down e não tem a menor vergonha de expor sua condição. Há cerca de 15 anos ele se realiza trabalhando como vendedor de uma loja de roupas masculina, em Vitória. “Faço de tudo. Coloco etiquetas, dobro camisas, fico no caixa. Às vezes também vou trabalhar na loja do shopping, lá o movimento é mais intenso”, conta.

Como muitos bebês de sua geração, ele recebeu uma sentença de desengano no momento em que nasceu. “Foi um baque, mas superamos rápido. Na década de 80 não existiam exames que identificavam a síndrome antes do nascimento. Quando ele nasceu achávamos que o mundo tinha acabado, mas descobrimos que, muito pelo contrário, ganhamos um presente”, conta o pai dele, Rachid Assad, dono da loja.

A mãe, Mara Lúcia, acabou afastando-se do consultório médico para se dedicar totalmente a ele. Uma vez por mês iam para o Rio de Janeiro, onde faziam acompanhamento numa clínica especializada. Foi lá que Marcio aprendeu a se arrastar, engatinhar, caminhar e correr. “Todo o mérito pelo êxito da estimulação e independência do Marcio foi da mãe. Anos depois, quando ele já estava na escola, ela voltou a atuar como médica pediatra”, conta Assad.

O menino frequentou escola normal – a mesma dos irmãos – até o ensino médio. E foi nesse ambiente, que deveria agregar, que ele sofreu o preconceito mais marcante. “Para ingressar no primeiro ano do primário, era necessário fazer uma prova. Depois do exame, quando comunicamos que ele tinha síndrome de Down, a escola disse que ele não poderia estudar lá. Foi decepcionante e acabei tirando os outros filhos também”, lembra Rachid.

Hoje, aos 32 anos, Marcio faz tudo o que qualquer outro homem faz. Frequenta academia diariamente, faz pilates e dança. “Adoro axé e funk. Sou totalmente independente, só não vou sozinho para a academia. Minha mãe fica preocupada”, diz ele, rindo.

Autonomia

A síndrome de Down é uma alteração genética causada por um erro na divisão celular. Em vez de dois cromossomos 21, os Downs possuem três. Isso resulta em olhos amendoados, baixo tônus muscular e deficiência intelectual – além de maior probabilidade de complicações, como cardiopatia, problemas auditivos e hipotireoidismo. Só que com o avanço das pesquisas e da medicina, as intervenções passaram a ser feitas cada vez mais cedo e a expectativa de vida cresceu de 25 anos (até os anos 70) para mais de 60 anos, nas últimas três décadas.

Apesar do aumento da expectativa de vida, e de vários jovens estarem rompendo com os prognósticos, Adriana Müller, psicóloga e comentarista da CBN Vitória, explica que a sociedade ainda está no processo de superação do preconceito. “É a questão do respeito as diferenças, de aceitar e saber lidar com o conceito de inclusão. Antes, o padrão de comportamento era muito baseado no preconceito, a gente excluía e não dava visibilidade para quem era diferente. Achávamos que eram incapazes, que não conseguiam autonomia, fazer escolhas e ter uma vida independente, com uma carreira profissional. Havia uma ideia de infantilizar o portador de síndrome de Down”, comenta.

Porém, com o padrão de comportamento atual, a sociedade passou a entender que é preciso respeitar as diferenças. “A sociedade tem trabalhado com o respeito as diferenças. No sentido de que todos possam ter qualidade de vida, que se sintam incluídos e pertencentes. Que haja possibilidade de interação social, evitando o isolamento”, explica Adriana. Ela ressalta ainda que o papel da família é fundamental, principalmente de não infantilizar o portador de síndrome de Down. “É preciso promover a autonomia, a possibilidade de torná-lo independente e desenvolver a estratégia de superação”.

Secretária

Incentivo. É o que Patrícia Nogueira Pereira mais tem dentro de casa. Há 10 anos, ela é a secretária do consultório da mãe, a ginecologista Jussanã. “Atendo o telefone, faço a agendamento de consultas e passo a carteirinha dos planos de saúde. Também aprendi a mexer no computador”, conta ela, que não gosta de revelar a idade.

A mãe diz que também descobriu que a filha tinha síndrome de Down ao nascer. “A primeira reação foi de luto. Mas durou pouco tempo, porque comecei a ter que resolver as coisas. Eu preferi ir à luta e fui abrindo as portas para outras pessoas. Muitas vezes me expus”, lembra. A filha sempre estudou em escola normal, porque ela não concordava com o isolamento que os espaços especiais de educação faziam. “Fiz a minha trajetória e a trouxe para o meu mundo profissional. Várias vezes ela vestiu o terninho e foi para os congressos comigo”.

A rotina no consultório faz muito bem à Patrícia. “Conheço várias pessoas”, diz ela. Mas a mãe lembra que algumas pessoas não aceitam a recepcionista. “O preconceito acontece todos os dias, a gente tem que se colocar”, diz Jussanã. Pesquisadora assídua da rede social Pinterest, apaixonada por gastronomia, Patrícia já fez balé, natação e atualmente adora andar de bicicleta. “Quero ir para o Estados Unidos montar uma empresa de festa. Festa é comigo mesma”, revela seu sonho.

Inclusão

A psicopedagoga Márcia Emília Eloi, do Núcleo de Acessibilidade da UVV, explica que existem as escolas regulares de ensino que podem promover a inclusão das crianças com deficiências. “Nos espaços educacionais de inclusão todos podem ser beneficiados no acesso à informação, quebra de paradigmas e preconceitos, desenvolvimento de empatia e pertencimento social. O percurso para que a inclusão seja cada vez mais realidade na educação brasileira perpassa por vários encalços como, por exemplo, recursos físicos e humanos, como a formação inicial e continuada dos professores que assistirão as crianças com deficiência, e políticas públicas que viabilizem essas formações”.

Rodolfo Pinheiro conquistou algo até então inédito. Aos 25 anos ele é o primeiro aluno portador de síndrome de Down da Ufes. “Foi a irmã que o inscreveu no Enem. Quando o resultado saiu foi inacreditável, custei acreditar. A gente nunca imaginou que ele passaria na instituição federal”, conta a mãe Jussara Pinheiro.

O jovem fez o ensino médio em escola pública de Vitória. Conciliava as aulas assistindo as videoaulas disponibilizadas na internet por cursinhos online. Como todo jovem da sua idade, ele também adora computador.

Cursando gemologia, Rodolfo sabe o nome de diversas pedras. “As pessoas falavam que seria muito difícil, mas estar na faculdade não é o fim do mundo. Gosto de mexer com pedras e rochas. É com isso que quero trabalhar”, conta. As aulas são sempre no período da tarde - e é a mãe que o leva e busca religiosamente. Também assiste futebol, tênis e frequenta a academia. Além das aulas de matemática duas vezes por semana. “De matemática não gosto muito”, diz o jovem cheio de personalidade.

Mercado de trabalho

A presença de pessoas portadoras de síndrome de Down no mercado de trabalho ainda é pequena, apesar de a lei de cotas para pessoas com deficiência ter quase três décadas de existência. A regra exige que empresas a partir de 100 funcionários tenham um percentual de pessoas com deficiência em seus quadros. A porcentagem varia de acordo com o tamanho das companhias, e o assunto ainda gera discussão, pois muitas vezes os profissionais deficientes são contratados apenas para cumprir tabela, não sendo desenvolvidos como deveriam. Por isso, um dos maiores desafios das organizações é entender que pessoas com síndrome de Down possuem habilidades positivas para as companhias.

Giselia Freitas, psicóloga especialista em pessoas e carreiras, explica que o processo de inclusão das pessoas com deficiências no mercado de trabalho tem acontecido efetivamente há cerca de cinco anos. “As empresas não estão prontas, mas aquém de receber esses profissionais. É preciso que estejam maduras para inserí-los não apenas por modismo. Reconhecer o sujeito como membro da equipe que merece respeito é a humanização do processo. Entres os ganhos para a companhia está o processo de inovação e aceitação social”.

Já a psicóloga Lara de Moysés Moura diz que é importante exaltar a capacidade de serem produtivos, independentes e ativos socialmente.

“É necessário ter conhecimento de que eles podem e devem ser produtivos, ter autonomia e serem ativos socialmente. Mas é necessário investimentos e apostas, principalmente das famílias, por serem o primeiro núcleo de inclusão. A autonomia da pessoa com deficiência deve começar na infância e é necessário que seja incentivada até a idade adulta, para poderem assim entrar no mercado de trabalho e em tantos outros espaços”.

 

 

Trajetória

Aos 36 anos, Andréia Cunha Lemos tem uma trajetória no mercado de trabalho excepcional. Já trabalhou numa escola infantil, foi vendedora em loja, recepcionista no Hospital Santa Rita e, há dois anos e meio, é recepcionista e secretária da área administrativa numa multinacional. “No começo foi um pouco difícil, mas hoje já estou adaptada no meu serviço”, conta.

Ela sempre se destacou nos seus empregos. Quando trabalhava num shopping em Vitória, foi escolhida pelos clientes como uma das melhores vendedoras do empreendimento. “Teve uma pequisa de opinião com os clientes e eles me escolheram como melhor vendedora. Na loja cheguei a ser subgerente”, lembra.

Até os cinco anos ela estudou numa instituição voltada para pessoas com deficiências. Depois começou a frequentar escola normal. “Em todas fui bem aceita, apenas em uma que não deu muito certa. Aí saí”, conta sobre preconceito. A mãe, Edelvira sempre fez questão de estimular a filha mais nova. “Sempre falo para ela que a gente tem que se sentir e se fazer incluída. Não pode se fazer de vítima”.

Um dos programas favoritos de Andréia são as aulas de fit dance. Fã de música e da cantora Cláudia Leitte, ela diz que sonha em trabalhar com música. “Planejo essas coisas para mim e torço para colocar em prática. Gosto de música eletrônica e quero ser DJ”, diz ela, superdescolada.

Amor Down

Com tantas potencialidades, é preciso entender que a superproteção não contribui com a autonomia e com o desenvolvimento das pessoas com deficiência. “Superproteger retira toda a possibilidade de que a pessoa com deficiência possa errar antes de acertar, é necessário acreditar que são capazes, que por vezes vão se desiludir e sofrer, mas isso é inerente a vida, não é necessário poupá-los de algo que podem muito bem dar conta de enfrentar. Todos possuem o direito de namorar, casar, trabalhar, fazer escolhas, desejar e sonhar”, explica a psicóloga da Vitória Down, Lara de Moysés.

Maria Clara Carvalho e Felipe Ribeiro escolheram viver um grande amor. Eles são o primeiro casal com síndrome de Down a se casar no Espírito Santo.

 

 

A dupla é exemplo de determinação e autonomia. Ele é tão animado que escolheu ser DJ profissional. Já ela tem tanta habilidade na cozinha que se tornou a primeira mulher com Down do Estado a ser chef de confeitaria. “Fazemos aula de dança, namoramos e gostamos de sair”, conta Felipe.

Eles estão juntos há cinco anos. Gostam de ir a restaurantes, eventos, frequentam grupo de jovens e fazem de aulas de dança. Foi de Felipe a iniciativa do pedido de casamento. “Me ajoelhei, peguei a aliança e fiz o pedido de casamento”, conta. “Eu não resisti e falei: ‘aceito’”, lembra ela, orgulhosa do marido.

Tudo teve apoio de ambas as famílias. Foi um momento com tudo o que eles tinham direito, como dia da noiva e do noivo, festa e, claro, lua de mel. Viajaram sozinhos por uma semana”, conta Monica Carvalho, mãe de Maria Clara, acrescentando que nunca ficou insegura, pois a filha já tinha avisado que queria casar. “Só conversamos que ela precisava ter uma profissão e um trabalho. Assim que se formou e começou a trabalhar, nos pediu para casar. Eles têm uma vida como qualquer outro casal, saem juntos, namoram, fazem planos para o futuro, trabalham, e tem as obrigações”, conta Mônica.

Atualmente eles se revezem na moradia. Cada mês é na casa dos pais de um. Mas, em breve, eles querem estar em um apartamento só dos dois, onde viverão novos desafios, mas terão mais privacidade.

(*Colaboração Luanna Esteves)