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'Ainda falta tudo aos negros no Brasil: respeito, credibilidade, oportunidades...'

"Ainda falta tudo aos negros no Brasil: respeito, credibilidade, oportunidades..."

A advogada Eliane Dias coordena há quase quatro anos a carreira do grupo de rap Racionais MCs, liderado por seu companheiro, Mano Brown. Militante do movimento negro, ela fala sobre o combate ao racismo e ao machismo

Publicado em 27 de junho de 2016 às 17:27

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“Os nego quer algo mais do que um barraco pra dormir/Os nego quer não só viver de aparência/Quer ter roupa, quer ter joia e se incluir/Quer ter euro, quer ter dólar e usufruir”. Os versos de “Eu Compro”, do disco “Cores & Valores”, lançado em 2014 pelo Racionais MC’s, traduzem bem o discurso de Eliane Dias, hoje produtora da banda.

Advogada e coordenadora do SOS Racismo, serviço da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, Eliane é companheira de Mano Brown, líder do Racionais, fundado em 1989 e considerado o mais importante no cenário do hip hop brasileiro. Há quase quatro anos, assumiu a gestão da Boogie Naipe, produtora que mantém em sociedade com o marido e que administra a carreira do grupo.

Antes disso, Eliane ralou: foi doméstica, babá, pagou os próprios estudos na adolescência e concluiu a faculdade de Direito quando já tinha os dois filhos com Brown, Jorge e Domenica, e foi assessora parlamentar de Leci Brandão (deputada por São Paulo). À frente da Boogie Naipe, a advogada não esquece a militância – ela chegou a colocar artistas mulheres para abrir os shows da mais recente turnê do Racionais, como forma de dá-las a devida visibilidade.

Abaixo, Eliane Dias fala sobre sua militância, sobre o combate ao racismo, e sua ascensão profissional.

Qual é a sua atuação no SOS Racismo hoje?

Sou coordenadora e atuo na unidade administrativa. Lá dentro nós temos um trabalho de combate ao racismo e de enfrentamento às questões de preconceito com as religiões de matrizes africanas, ciganas...Temos até diálogos com as questões indígenas. Fazemos eventos de promoção da igualdade racial. Todos os dias ouvimos denúncias de casos de racismo, de perseguição, de assédio moral dentro de empresas – ocasionado pelo racismo.

E qual a sua percepção? Temos progredido?

Bem, o racismo está mais acirrado. Agora, temos um pouco mais de oportunidade e acabamos frequentando os mesmos lugares. Você pega avião, estuda, entra na universidade, é inserido no mercado de trabalho. Ainda é muito pouco, mas acontece mais do que antigamente. Com isso, parece que as pessoas ficaram mais agressivas. Está incutido na cabeça das pessoas que, para defender o capitalismo, o espaço de poder, um povo tem que se submeter a outro. Os racistas acham que têm direito a isso. Vivemos quase 400 anos de escravidão e tem muita gente que acha que a coisa deve continuar assim, numa condição inferior, apenas para tirar direitos de outros.

O que é ser mulher e negra no Brasil nos dias atuais?

É uma luta diária. São 24 horas de luta por dia. Temos que sair de casa de cabeça erguida, armadas psicologicamente. Todo santo dia assim. Sai de casa, entra no elevador e já está propensa a encontrar uma pessoa que vai te olhar e não vai querer você por perto. Mais do que não querer por perto, é alguém que não te entende.

Vou te contar uma coisa. Hoje mesmo eu cheguei no Aeroporto de Congonhas, aqui em São Paulo, e meu voo já estava quase para sair. Uma moça da companhia aérea apontou uma fila e pediu para eu esperar ali, ao lado de outras quatro pessoas que pegariam o mesmo voo que eu. De repente, um cara se achou no direito de chamar outra moça, apontar para mim e dizer que eu estava furando fila. Me colocou em situação vexatória mesmo. Outras quatro pessoas estavam na mesma posição que eu, ao meu lado, três mulheres e um homem, todos brancos, mas ele quis perseguir a mim. Você acha que eu fiz o que? Fui para cima dele, é claro. Perguntei com quem ele achava que estava falando, disse que ele era racista, machista e misógino e que não me submeteria àquela situação. Ele insinuou que chamaria a polícia, eu disse que poderia chamar a polícia, o pai, a mãe, quem fosse. Falei de nariz a nariz com ele. Quando ele viu que eu não voltaria atrás, desistiu. Quando chamei de misógino, ele pareceu não ter entendido. Isso não é à toa. Uma vez ou outra, nós relevávamos, porque não parecia tão grave e escrachado.

O Ministério Público de São Paulo denunciou nesta semana os quatro investigados pelo crime de racismo contra a jornalista Maria Júlia Coutinho, da TV Globo. É essa a resposta necessária?

Sim. Não é o suficiente, mas é necessário, infelizmente. Não que eles não saibam que isso é crime, eles sabem. A pessoa racista sabe que é racista, sabe que está fazendo aquilo porque acha que pode, porque o outro não vai ter reação, eles sabem o que estão fazendo. Essa punição tem que existir, tem que ser mostrada. Pena que não consigamos fazer com todos. É necessário para que as pessoas repensem. Tem que processar, tem que limar esse padrão de gente honesta que nos foi colocado. Acham que gente honesta é só o homem branco no alto de seus 40 anos? Vai se f..., não dá!

E quando foi que você começou a militar?

Então, eu moro na periferia. Eu nasci na periferia. A mulher aprende a se defender, tem que aprender. A autodefesa é quase automática. Ela vem quando você anda a pé, quando você entra no ônibus, quando está na escola, quando procura um emprego. Eu tive que me defender o tempo todo. A gente vai respirando e tendo medo de várias coisas. Eu tinha medo e pensava “opa, vou pisar devagar”. Mas quando o medo vai indo, a gente se enche e fala “agora eu vou para cima”. Quando tive filho, por exemplo, tirei coragem não sei de onde. Cada situação é diferente. Hoje no aeroporto, por exemplo, eu já nem senti medo. Fui lá e falei “você é um folgado”. A gente simplesmente vai lá e resolve. Com uns 12 anos eu já tinha esse senso de defesa. Com 14, eu pagava meu curso, trabalhava. Eu decidi viver e vencer, então o medo tinha que ficar lá atrás. Quando a gente decide o que quer fazer, vai lá e faz. E te digo que isso não é característica minha. Tem muita mulher, muito homem que vem da periferia e é toda assim. Observo isso quando paro para ver o pessoal da minha infância. São pessoas corajosas.

Como foi essa ascensão, de doméstica a advogada?

Eu quis ser advogada desde os 9 anos. Fui cuidando da minha vida. Sobrevivendo e trabalhando, estudando. Sobrevivendo e acompanhando o meu tempo. Segui a minha vida, mas não deixei meu sonho de lado. Quando tive a oportunidade, a agarrei.

E de advogada a produtora da Boogie Naipe?

Esse foi o projeto mais difícil da minha vida, o mais audacioso. Aliás, não. O mais audacioso foi ter filho. Depois vem essa questão. Para ser advogada foi mais fácil do que para me tornar produtora. É difícil ter que lutar e defender outras pessoas, assim como ficar atenta ao mercado, ficar atenta à mídia, que é voraz, ficar atenta ao que o povo quer, ao que as pessoas esperam de você.

Você já disse algumas vezes que negociar com homens é difícil, principalmente porque a maioria não leva a mulher a sério. Com o tempo, aprendeu a lidar?

Olha, eu tenho percepção, tenho feeling, penso de forma comercial. Já sei lidar com a questão e com os quatro (Brown, Blue, Edi Rock e KL Jay). Sei até aonde posso avançar com um e com outra. Eles não são burros. Com a minha questão de negócios, eu me resolvo e faço, eles não vão rejeitar.

Você está sempre de olho nas mulheres que estão fazendo acontecer, conseguiu colocar muitas delas para abrir os shows do grupo. Quem tem inspirado seus trabalhos hoje em dia?

Olha, é até difícil citar. As mulheres estão tão engajadas, tão combativas, tão perceptivas ao que está acontecendo ao seu redor... Todas têm feito algo diferente, têm seguido em frente. Ou porque estão acompanhando uma amiga em um projeto, ou por estarem saindo de uma relação doentia, cada uma dá sua volta por cima. As jornalistas estão mais ativas, mais decididas, pautando mais os fatos relevantes. Tudo o que tenho visto é muito satisfatório. Desde a mais humilde, que sai de uma relação problemática e consegue se reerguer até a própria presidente dizendo “não vou desistir, não vou arregar”, mesmo com tanto ataque. As meninas estão chegando empoderadas, cheias de querer. É fantástico, porque uma vez que levantamos a cabeça, não daremos um passo atrás. Eu ansiava muito por um momento como este.

O que falta ao povo negro hoje?

Ainda falta tudo aos negros no Brasil hoje. Falta credibilidade, faltam oportunidades, respeito. Sobra o que? Desconfiança. A nós, resta o genocídio, principalmente do jovem negro. Quando as pessoas veem as mortes dos negros, e não fazem nada para impedir, nós vemos uma troca de valores. Acham que não vai acontecer com eles, só com o outro. É mais fácil matar do que ajudar, matar do que corrigir, matar do que dar oportunidade. É mais cômodo. Quando chegar neles, eles vão sentir.

Tivemos muitas conquistas, mas ainda está tudo muito aquém. Estamos longe dessa equiparação. Temos que correr no nosso processo de empoderamento, temos que disputar cada vez mais os espaços de poder, nos apoiar, nos estruturar, para conseguir mudar esse processo. Se somos a maioria da população, se somos mais de 50%, não podemos entrar em uma sala de aula e ver um estudante negro apenas. Se você for em uma pós-graduação e achar um negro na turma, é muito. Tem gente que acha normal. Eu não acho.

Vemos uma crescente onda conservadora no Brasil nos últimos anos. Como você encara esse processo?

É a pior coisa que a gente podia receber, a pior coisa. Principalmente para o povo pobre e negro. Cortam ministérios primordiais, proíbem professores de discutir gênero. Pensa: o professor tem dificuldade de cumprir seu plano de ensino. Como faz? Já não discute raça, não discute gênero, não discute as causas LGBT. O que nós vamos formar? Estamos vendo ir embora todos os avanços culturais da última década. Não consigo conceber. É uma falta de compreensão com o outro, é o medo de que o outro tenha direitos?

Você diz que nunca gostou de aparecer, de dar entrevistas, mas têm sido muito procurada de uns tempos para cá...

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É. Quando estamos quietos, podemos fazer mais coisa, temos mais atuação. Não gosto dessa visibilidade, mas meu lugar de fala é o de uma mulher negra. O espaço é pouco e eu tenho a oportunidade de falar. Então passei a falar. Tenho que ajudar.

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