Zezé Motta é a homenageada no 24º Festival de Cinema de Vitória

Aos 50 anos de carreira, atriz fala sobre o sucesso de Xica da Silva, sobre suas preferências profissionais e sobre racismo

Publicado em 23/08/2017 às 06h41

Atualizado em 24/08/2017 às 09h45

Foto: Paula Klien/Divulgação
Com 50 anos de carreira, Zezé diz ainda aprender com os novos atores com quem contracena

No currículo, são mais de 40 filmes. “Só” esse dado já justificaria a escolha de Zezé Motta para ser homenageada no 24º Festival de Cinema de Vitória, realizado entre os dias 11 e 16 de setembro. Como se não bastasse, a atriz, que completou recentemente 50 anos de carreira, mostra que é uma mulher à frente de seu tempo.

Embora tenha dado vida a vários outros papéis de destaque, Zezé é a eterna Xica da Silva. Nascida em Campos, mudou-se ainda pequena para o Rio, onde frequentou a tradicional escola de teatro Tablado.

A veterana não esconde: sua relação com o cinema é especial. Em entrevista ao C2, a atriz conta por que prefere a sétima arte e a música, fala sobre o sucesso do papel de Xica e sobre racismo. 

Você completou 50 anos de carreira, e dedicou-se muito ao cinema durante esse tempo. Tem uma relação especial com a arte?

Com certeza, eu adoro! As pessoas sempre me perguntam sobre isso, é inevitável. Eu comecei no teatro, foi o que fiz durante muitos anos. Depois, veio a TV e o cinema em seguida. Por último, veio a música. Mas se tivesse que escolher, ficaria com a música e com o cinema.

Por quê?

A televisão prende muito tempo da gente. É uma vitrine que não dá para dispensar. Mas a música me dá liberdade de escolha, de repertório e de direção. E o cinema é o meu fascínio. Para ser sincera, eu gosto mesmo é de estar em cena, não tem jeito. Eu tenho a absoluta certeza que é uma questão de dom e de missão.

Ainda hoje você colhe os louros de Xica da Silva, um papel divisor de águas em sua carreira...

(interrompe) Ah, sem dúvidas! Chego nos lugares e as pessoas falam que o papel marcou uma fase da vida delas. Foi um marco, eu não era conhecida pelo grande público, tinha feito muito mais cinema e pouca coisa na TV. E também abriu as portas para a minha carreira como cantora. Eu dava muitas entrevistas e as pessoas perguntavam “E agora, Zezé, vai fazer o quê?”, e eu passava a falar da carreira na música.

Eu achava que tinha algo errado comigo e queria ser aceita. Pensei em operar o nariz e passei a alisar o cabelo
Zezé Motta

E daí em diante?

Eu já tinha sido crooner em São Paulo, na época do teatro. Cantei nas boates Balacobaco e Telecoteco e tinha esperança de que me descobrissem como cantora lá. Mas desisti para fazer teatro. Quando dei certo com o papel da Xica, respondia que ia passar a cantar, e aí choveu de gravadora atrás de mim. Digo até hoje que Xica foi minha madrinha (risos).

Depois de todo esse tempo, ainda faz planos para a carreira ou acha que o dever já foi cumprido?

Eu estou sempre aprendendo. Nos últimos meses, fiz quatro trabalhos: dois seriados e dois filmes. E ainda assim acho que nunca estou pronta. Trabalhei recentemente com várias jovens, uma delas era Bianca Comparato. Geralmente elas me respeitam muito, até me reverenciam, mas eu presto muita atenção nelas e aprendo muito. É uma troca de saberes. Se a gente achar que sabe de tudo, tá ferrado (risos).

E como fez para dividir as atenções entre o cinema, a TV, a música e os outros trabalhos ao longo desse tempo?

A gente é bem orientado quando faz o curso de arte dramática. Eu tive a sorte de ter Marília Pêra como amiga, irmã e comadre. Foi uma das atrizes mais disciplinadas que conheci na vida. Cantava, dançava, sapateava, se aperfeiçoava e era atenta a horários, a tudo. Sempre me dizia para eu não considerar que já estava pronta, que deveria buscar mais e mais. Esse convívio foi importante. Quando mudei para São Paulo, tive dificuldade de pagar aluguel e morei com ela e foi uma escola. Então tive disciplina para separar tudo, mas também temos equipes para nos ajudar.

 

Você acredita no cinema como uma ferramenta política?

Sem dúvida alguma! O ideal é que o ator não seja apolítico, porque nós temos muito espaço na mídia e as pessoas nos ouvem. Acho que as pessoas nos têm como espelho, como exemplo. Acho que o ator tem que se envolver com seu país, porque ele tem voz. Realmente me preocupo, me envolvo e faço a minha parte, na medida do possível.

Como enxerga esse momento em que mais artistas negros têm se pronunciado em relação ao racismo?

Eu fico feliz em ver que as coisas estão caminhando. Eu sempre fiz questão de dizer que fazia parte do movimento negro, contra a discriminação racial, para preparar o mundo para receber melhor os meus filhos, netros... Eu vejo isso com muita emoção, porque ainda estou viva para presenciar alguma coisa nesse sentido. Ainda temos muita luta pela frente, o racismo ainda é muito presente, mas se começar a falar disso, perco a tarde inteira no telefone, infelizmente.

Você já falou que passou por um processo de “embranquecimento” quando era jovem. Como foi isso?

Eu morava na Zona Sul (do Rio) e tinha colegas do prédio que diziam que meu nariz era grande e chato, que meu cabelo era duro, que minha bunda era grande. E criança, adolescente fala de uma maneira dura, pejorativa mesmo. Eu achava que tinha algo errado comigo e queria ser aceita. Pensei em operar o nariz e passei a alisar o cabelo. Ainda vi um filme do (Federico) Fellini, que tinha uma negra dos olhos verdes e eu achava que ela tinha conseguido o papel por conta daqueles olhos verdes. Até que alguém me contou que eram lentes de contato e eu pensei em comprar. No Brasil nem tinha lente colorida na época. Eu pensei em ver cirurgia que afinasse o nariz, queria diminuir o meu bumbum, usar lente verde e alisar o cabelo.

Mas em 1969 fui aos Estados Unidos e, quando cheguei lá, percebi que os negros andavam muito de cabeça erguida, com cada black power lindo! Exibiam seus bundões, narigões, lábios grossos... e eu achei todos lindos. Parei e pensei “ué, por que a gente não se acha bonito no Brasil?”, e percebi que nosso modelo de beleza era europeu. Então lá mesmo, durante a viagem, eu mudei. Além de alisar o cabelo, eu usava uma peruca chanel.

Tinha ido com Augusto Boal (diretor e dramaturgo carioca, falecido em 2009) para o “Arena Conta Zumbi”. Olha que contradição, uma atriz negra de peruca chanel que contava a história de Zumbi dos Palmares! Me criticaram para o Boal, que me defendeu, mas conversou comigo. Eu tirei a peruca na mesma hora, entrei debaixo do chuveiro e desfiz o alisamento, que na época saía com qualquer água. Considero aquilo ali o meu batismo. Já tive que alisar o cabelo para outros papéis, mas aí é outra história. Veja bem, não tenho nada contra quem alisa o cabelo, acho que as pessoas têm que usar o cabelo como preferirem. Mas quando a intenção é o “embranquecimento”, existe um problema. Eu me libertei.

24º Festival de Cinema de Vitória

Quando: 11 a 16 de setembro.

Homenagem: 14 de setembro.

Onde: Teatro Carlos Gomes. Praça Costa Pereira, s/n, Centro, Vitória.

Entrada franca.

Informações: (27) 3327-2751.

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