> >
Elza Soares traz nova militância em 'Deus é Mulher'

Elza Soares traz nova militância em "Deus é Mulher"

"Quis um trabalho que fosse sobre mulheres, sobre negros, sobre o mundo gay", diz a cantora. Novo disco chega após o premiado álbum "A Mulher do Fim do Mundo"

Publicado em 6 de junho de 2018 às 17:54

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Elza Soares dá um passo adiante na estética libertária com "Deus é Mulher". (DARYAN DORNELES/Divulgação)

Prestes a deixar a turnê de "A Mulher do Fim do Mundo", criada a partir do disco homônimo lançado em 2015 e responsável por colocá-la, definitiva e tardiamente, como uma das principais vozes do País, Elza Soares despediu-se do álbum. Conta ela, ao telefone, recém-chegada a São Paulo, que conversou com o trabalho, como se fosse uma entidade com vida própria. "Pedi permissão a ele", explica a cantora de 87 anos. "Foi algo muito importante na minha vida, então, precisava fazer isso. Agradeci, disse que ele havia sido incrível. Falei que iria encostá-lo ali um pouquinho. Foi bonito."

O álbum, vencedor do Grammy Latino de melhor disco de MPB em 2016, foi o primeiro trabalho de Elza Soares com músicas inéditas. "Foi um presente", ela lembra, ao ser apresentada ao material reunido pelo produtor Guilherme Kastrup, parceiro mantido por perto nesse novo momento.

ABERTURA DA TURNÊ FOI UM SUCESSO

E Elza, agora, segue em frente. Caminha em direção à luz, depois de um álbum denso, de introspecção e um discurso bastante assertivo. No início deste mês, ela lançou "Deus É Mulher", novamente com músicas inéditas. Na escolha estética do álbum, Elza explica que buscou por mais claridade. O álbum teve seus shows iniciados na última quinta-feira, 31, em São Paulo. A minitemporada em São Paulo terminou, no último domingo (3), com ingressos esgotados. .

O sucessor de "A Mulher do Fim do Mundo" também marca a chegada de Elza ao elenco de artistas da gravadora Deck e foi a partir do convite deles que Elza passou a matutar sobre qual seria o próximo passo após o tal "apocalipse" retratado no disco. Procurou por Kastrup e passaram a trabalhar, novamente, com o que foi chamado de "núcleo criativo" de A Mulher..., formado por jovens atuantes e bastante prolíferos da cena de música paulistana, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Romulo Fróes.

PRODUÇÃO DO DISCO

No início deste ano, em janeiro, em contato com a reportagem, Kastrup explicava que o repertório inicial de 60 canções já havia sido cortado para 20 e, depois, para as 11 definitivas. Na época, eles trabalhavam no que chamavam de cobertura das músicas em São Paulo, no Red Bull Studios, localizado no centro da cidade, e, por fim, em fevereiro, seria a vez de Elza gravar as vozes finais no Estúdio Tambor, no Rio de Janeiro. A mixagem ficou por conta do norte-americano Scotty Hard, que recentemente trabalhou com Tulipa Ruiz no disco mais recente dela, o Tu (2017), e a masterização é assinada por Felipe Tichauer, o mesmo de A Mulher..., em Miami.

Kastrup dizia, ali no início do ano, que "Deus É Mulher" seria um passo adiante na estética libertária, perturbadora e impiedosa do álbum anterior. Nele, a voz de Elza se esparramava áspera, como uma faca propositalmente mal afiada para rasgar em vez de cortar. Encontrava as feridas de uma sociedade tão frágil e defeituosa. Falava, ali, de violência doméstica ao racismo. A história de Elza, ao longo dos seus 87, é de tombos e reerguimentos. Com "A Mulher...", ela diz, encontrou seu propósito musical.

OUÇA O DISCO

"Foi quando percebi o que eu deveria fazer. Entendi que esse seria o caminho", explica. "Mudou tudo. Encontrei uma brecha para dizer aquilo que eu sentia. Coisas que vinham desde a minha infância. Era uma menina pobre e negra. Foi muito difícil chegar até aqui. Mas Deus estava sempre presente na minha vida. E está até hoje. Quando veio 'A Mulher do Fim do Mundo', eu entendi como se Ele dissesse: 'É por aqui'."

Elza segue: "Então (para 'Deus É Mulher'), busquei um trabalho que acessasse cada um. Que fosse sobre mulheres, sobre negros, sobre o mundo gay. São os temas que precisam ser falados. Não queria perder qualquer um desses discursos. Meu medo, na verdade, de deixar algo escapar. Mas acho que demos sorte de seguir com essas mesmas palavras".

CONTINUAÇÃO DO DISCURSO

"Deus É Mulher" segue com um discurso semelhante ao antecessor, justamente por isso. Novamente, Elza e Kastrup reúnem um time de compositores de peso para esse trabalho. A começar pelo paulistano Douglas Germano, que assinou "Maria da Vila Matilde" (Porque Se a da Penha é Brava, Imagine a da Vila Matilde), a premiada faixa de "A Mulher..".

No novo trabalho, tem "O Que Se Cala e Credo". A primeira delas, escolhida para abrir o disco, tem no seu discurso, a força dessa Elza Soares reerguida, forte, incisiva. Diz o refrão, que soa como uma espécie de retrato da artista: "Mil nações moldaram minha cara / Minha voz uso pra dizer o que se cala / Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala / O meu país é meu lugar de fala".

Enquanto Elza canta, as guitarras de Dinucci e Campos, principalmente, fazem a ponte estética entre "A Mulher do Fim do Mundo" e "Deus É Mulher", dançando nervosas, enquanto abrem caminho para a chegada das percussões do grupo Os Capoeiras e do quarteto de sopros integrante do Bixiga 70.

Com isso, a transição, de um álbum para o outro, é leve. É uma sensação diferente daquela sentida ao dar o play em "A Mulher do Fim do Mundo" pela primeira vez. A primeira música do disco, "Coração do Mar", um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik, era uma pancada só com a voz da Elza.

COMPARAÇÃO ENTRE DISCOS

Em um exercício de entendimento, ao se ouvir os dois álbuns em sequência, "A Mulher..." soa como estar, à noite, diante de uma janela, a testemunhar o mundo em ruínas e caos. Já a chegada de "Deus É Mulher" é o sol nascente, a iluminar o que restou, ruínas ou não. Como o nascer de um dia claro, o álbum sugere o renascimento a partir dessa figura divina e feminina.

"O mundo está precisando de colo de mãe", explica Elza. "É muito egoísmo... Aqui eu quero falar de amor, de sexo." Alinhada a isso, a artista segue com suas lutas em forma de canções. Fala sobre sexo e tesão sem medo (como em "Eu Quero Comer Você"), debate a ancestralidade ("Exu nas Escolas"). "Mas queria também ter mais mulheres neste disco", ela explica. O time inclui composições de Alice Coutinho (que teve duas músicas dela, em parceria com Fróes selecionadas), Tulipa Ruiz (a faixa "Banho") e Mariá Portugal ("Um Olho Aberto").

Ao final da entrevista, Elza faz uma despedida carinhosa, mas que também poderia ser confundida como a síntese do seu novo trabalho. "Muito obrigada. Muito respeito. Deus é mais. Deus é mulher. Um beijão."

SERVIÇO

Elza Soares - Deus é Mulher

Este vídeo pode te interessar

Deck; R$ 24,90 (CD), R$ 109,90 (vinil)

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais