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Pesquisadores capixabas lamentam incêndio do Museu Nacional

Pesquisadores capixabas lamentam incêndio do Museu Nacional

Local abrigava cerca de 20 milhões de itens, dentre os quais estavam alguns que contavam um pouco da história do Espírito Santo

Publicado em 3 de setembro de 2018 às 19:32

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Incêndio de grandes proporções atingiu o Museu Nacional na noite deste domingo (2). (Erick Dau/A7 Press)

O Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, há 200 anos é casa de pesquisadores e historiadores que armazenaram bilhões de anos da história personificados em, aproximadamente, 20 milhões de itens que ficavam no local. Na noite deste domingo (2), um incêndio de grandes proporções atingiu o prédio principal e destruiu praticamente todos os objetos abrigados no edifício que, por si só, já é uma obra de arte: o museu ocupava o que, em 1808, era o palácio em que morava Dom João VI, logo que chegou ao Brasil.

Há algum tempo, o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Athelson Stefanon Bittencourt, tinha falado com seus filhos, de seis e nove anos, que os levaria até o museu e que lá estava um dinossauro em tamanho real, que eles poderiam observar, além do crânio de Luzia - fóssil humano mais antigo já encontrado no Brasil, que habitou o País há cerca de 11 mil anos. "Mas, agora, eu não vou poder fazer isso por eles e nenhum outro brasileiro terá o prazer de ver aquelas obras de arte com os próprios olhos. Agora, só por fotos e graças à tecnologia", lamenta.

Para o professor, o que foi perdido ali foi a construção de um conteúdo que levou 200 anos para ser organizado. "Não é só uma peça que tem milhares de anos, não é só um móvel que era o palácio em que morava Dom João VI. Cada peça foi coletada em um local diferente, com uma história diferente e por uma pessoa que carrega uma bagagem diferente. O visitante mergulhava nesse espaço e penso que o que tinha lá nunca mais será recuperado", pondera.

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O desinteresse do brasileiro por cultura influencia os museus a estarem nessa decadência

Athelson Stefanon Bittencourt, professor da Ufes
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Athelson frisa que a tragédia é retrato da situação atual política e econômica do País: "Esse cenário de falta de recurso se repete em várias outras instituições públicas do Brasil. Nesse ano, o Museu Nacional tinha recebido apenas R$ 54 mil para manutenção", completa. De acordo com ele, o segmento está sendo massacrado. "A gente pensa que não tem mais onde cortar. Mas quando a verba não vem, até o telefone acaba deixando de ser prioridade", exemplifica.

DESINTERESSE DO BRASILEIRO GERA DESCASO COM MUSEUS

Assim é também como pensa o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha, Manoel Goes. De acordo com ele, desde 2003, esse setor cultural vem tendo severos cortes nas verbas e que essa falta de manutenção resultará nesse tipo de desastre. "Aconteceu realmente por uma falta de cuidado que o País tem com a cultura, que não é levada a sério pelos brasileiros", afirma, culpando, também, a população: "Quando você tem um povo que não se interessa por um assunto, ele não tem como cobrar por qualidade nessa mesma categoria".

O professor Athelson faz esse mesmo alerta, ainda trazendo o dado de que, na Europa, os museus são 25 vezes mais visitados do que no Brasil. "Isso mostra o quanto a gente, o brasileiro, não enxerga o museu da forma como deveria. É um lugar que tem que atrair de crianças, de 2 anos, até senhores, de 80. Muito brasileiro nunca nem visitou um lugar desses e esse desinteresse influencia, sim, os museus a estarem nessa decadência", pontua.

Os próprios funcionários do museu tentavam salvar o acervo de mais de 20 milhões de itens. (Fernando Sousa/Reprodução/Facebook)

Por outro lado, ele também entende que essa cultura nasce da educação - o que, para ele, o brasileiro também não possui. "Isso é melhorado na base. A população, então, acaba sendo é vítima dessa falta de educação. Ela não tem como reivindicar que o Estado deva investir mais em projetos culturais se ela não os conhece", conclui.

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Tomara que a gente consiga fazer dessa tragédia o início de uma cultura que trate a nossa história com seriedade

Manoel Goes, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha
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Manoel destaca que, há alguns meses, o diretor do Museu Nacional já havia feito o alerta do que a falta desse recurso poderia trazer, "mas ele não foi ouvido", diz, em suas próprias palavras. "O que fizeram, também, foi passar a guarda desses museus para universidades federais, mas elas (as universidades) não têm dinheiro nem para se manter, quanto mais para cuidar de um outro aparelho cultural deste porte", avalia.

Athelson corrobora que essa discussão de responsabilidade precisa ser retomada: "A universidade pública do Brasil está sendo sufocada. Tem uma corda no pescoço da instituição e dos museus, como em muitos outros que estão ligados a outras universidades", dispara. O professor da Ufes revela que acha fundamental fazer dessa tragédia uma lição para mostrar à população a importância desses locais.

RESTAURO DO QUE PEGOU FOGO É IMPOSSÍVEL

Coordenador do Núcleo de Restauração e Conservação do Centro de Artes da Ufes, o professor Attílio Colnago admite que não há forma de restaurar algo em que o fogo tenha atingido. "Isto é, se for metal, cerâmica, rocha ou outro item que suporte altas temperaturas, é possível que seja necessária apenas uma limpeza", esclarece. Ele destaca que, nos casos destes materiais, os profissionais só terão que retirar fuligem, eventuais manchas das labaredas e sujeira causada pelos destroços. Ele adianta que quando chega a pegar fogo, realmente não há nada que possa ser feito.

Em contrapartida, itens consumidos pelo fogo não têm forma de serem restaurados. "Papéis e outros documentos estão totalmente fora de cogitação. E, os materiais que foram queimados podem ser conservados na forma de carvão só para se dizer que aquilo ali, um dia, foi uma peça original. No carvão, pode ser feito um trabalho de consolidação para que ele não se desfaça ou deteriore. Nesse caso, ele é mantido como 'elemento original", explica.

Attílio lembra que obras de arte que envolvem tinta também não são passíveis de restauro. Isso porque algumas substâncias que são usadas na composição desses materiais acabam reagindo com a alta temperatura e se desfazem. "O que pode ser feito, assim como no caso da mobília, são réplicas. Como existem fotos, você pode pintar um quadro e contratar um bom marceneiro para refazer esses objetos, mas eles serão réplicas", finaliza.

Populares na entrada do Museu Nacional durante incêndio. (Ide Gomes/Estadão Conteúdo)

POEMA COMO DESABAFO

Historiador, comentarista da rádio CBN Vitória e poeta, Fernando Achiamé foi dormir só por volta das 2h desta segunda-feira (3). Ele ficou triste quando viu o incêndio do museu na televisão e fez um poema para desabafar. Publicado em uma de suas redes sociais, o post intitulado "Não estive lá" tem mais de 260 reações:

Para ele, essa foi mesmo uma forma de desabafar. "Minha consciência de cidadão me cobrou que eu fizesse alguma coisa. Traduzi essa indignação em versos", comenta. Segundo o historiador, o museu possuía também muitos itens ligados à natureza e história do Espírito Santo. "Aqui, no Estado, foram coletados e enviados para o Museu Nacional ocorrências minerais, espécies da flora e alguns endêmicos da terra capixaba, ou seja, que só existem aqui. Para muitos desses trabalhos, contribuiu o professor Augusto Ruschi, que possuía um vínculo informal com o museu", afirma.

Achiamé revela que no espaço carioca também estavam alocadas peças antropológicas e arqueológicas oriundas de povos indígenas que habitaram o Espírito Santo. "Parece que o herbário se perdeu totalmente, até onde soube. Mas, quem sabe, alguns itens de outras coleções tenham se salvado", torce.

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As gerações futuras ficarão privadas de estudar o riquíssimo acervo agora destruído

Fernando Achiamé, historiador e comentarista da rádio CBN Vitória
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Falando em perdas, ele define o incêndio no Museu Nacional como um "duro golpe no passado e no futuro de muitas pessoas", em suas próprias palavras, já que o conteúdo daquele espaço foi reunido há décadas. "Aquilo tudo exigiu muitos esforços de muita gente, muito de pessoas que já até morreram", afirma.

5 ITENS PRECIOSOS QUE ESTAVAM NO MUSEU NACIONAL

1. LUZIA

Luzia foi o nome dado à mulher cujo crânio é o mais antigo fóssil humano já encontrado no Brasil. Por meio de pesquisas, constatou-se que o osso pertencia a alguém do gênero feminino e que ela viveu na Terra há aproximadamente 11 mil anos. 

2. METEORITO BENDEGÓ

É o maior meteorito já encontrado no Brasil até hoje. Com 5,36 toneladas, a rocha suportou o incêndio, já que quando entrou na atmosfera já estava em combustão, mas ainda não se sabe se o item sofreu algum impacto com o fogo. Foi descoberto em 1784, na Bahia, e seguiu para o Museu Nacional depois de um século. 

3. CAIXÃO DE SHA-AMUN-EN-SU

O acervo egípcio que estava no museu era considerado o mais importante da América Latina. O caixão de Sha-Amun-en-su foi um presente do príncipe do Egito a Dom Pedro II, em 1976. A múmia ficava exposta no gabinete do imperador brasileiro. 

4. MÁSCARA INDÍGENA DO POVO TICUNA

A máscara do povo Ticuna compunha rituais da tribo e era um dos destaques da sala de Etimologia Indígena do museu. 

5. SALA DO TRONO

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Era na sala do trono onde aconteciam as audiências reais. O espaço também servia como sala particular de Dom Pedro II e Thereza Christina, à época em que viviam no local. 

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