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Em tempos de discussões políticas, a canção é resistência

Em tempos de discussões políticas, a canção é resistência

Lembramos a música como ferramenta política e listamos canções recentes que denunciam problemas sociais

Publicado em 20 de outubro de 2018 às 03:06

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Emicida no clipe da música "Boa Esperança". (Reprodução clipe ENTITY_quot_ENTITYBoa EsperançaENTITY_quot_ENTITY)

Na década de 1960, depois de iniciada a ditadura militar, todas as formas de perseguição foram reforçadas no Brasil. Os veículos de comunicação, por exemplo, precisavam submeter suas pautas a aprovação prévia. Era apenas uma pontinha de um problema. Durante o período, a produção artística ficou limitada, fazendo com que os músicos da época buscassem meios de driblar a censura, compondo músicas com verdadeiros códigos que questionavam a repressão. Desta forma surgiram clássicos como “Cálice”, de Chico Buarque, e “É Proibido Proibir”, de Caetano.

Passados os anos da ditadura que vitimou milhares de brasileiros, a liberdade de expressão passou a ser garantida pela Constituição Federal, de 1988, o que não garantiu que as coisas mudassem “em um estalo”. Com o passar do tempo, a música continuou a ser utilizada como ferramenta de resistência, em gêneros que vão muito além da tradicional Música Popular Brasileira (MPB).

Mas por que, então, muitas vezes surge a sensação de que “música boa era aquela das antigas, que tinha conteúdo e questionava o que estava aí”?

Especialista em estudos culturais, a professora universitária Andressa Zoi Nathanailidis credita o fato a um conservadorismo que reverbera pela sociedade e atinge também o campo da arte.

“O que acontece é que do período moderno para cá, a arte já não é mais algo isolado. Mas acredito que há um saber elitizado e hermético, que não se propõe a dialogar. É algo enraizado e legitimado. Toda produção tem seu valor. Penso que determinadas camadas querem manter suas culturas como direito exclusivo, e aí envolve outras questões também, como a étnica”, explica a especialista.

Muito além da MPB, gêneros como o rap, o hardcore, o punk e o próprio pop rock nacional reuniram canções, ao longo das últimas décadas, que tocam nas feridas sociais conhecidas por qualquer brasileiro mais atento, do racismo ao machismo, passando pelo abismo existente entre classes sociais.

O rap chega a ser considerado por estudiosos e críticos como a “nova MPB”, assumindo o papel de denunciar principalmente o que ocorre nos subúrbios das grandes cidades.

“O que muitas vezes acontece com o rap é uma resistência social. Como a mensagem por vezes é áspera, não chega muito facilmente às pessoas. De vez em quando, elas só querem ouvir música para se distrair, não para pensar unicamente”, ressalta Andressa.

Atuação didática

Integrante do Núcleo de Estudos da Comunicação Cancioneira, da Universidade Vila Velha (UVV), a professora lembra que muito se tem discutido sobre a canção como material de atuação didática.

“Por muitas vezes a canção é lúdica, chega de modo mais fácil à pessoa, leva o ensinamento de modo fluido. É uma ferramenta de conscientização, que propaga pensamentos e denuncia realidades sociais”, pondera.

A especialista cita, como exemplo recente, o single “Trono de Estudar”, composto por Dani Black e gravado em conjunto por dezenas de músicos como Arnaldo Antunes, Fernando Anitelli, Felipe Catto, Zélia Duncan e o próprio Chico Buarque. A música era uma homenagem ao movimento dos estudantes secundaristas ocorrido em 2016.

Música de protesto. (Arabson)

Outras faixas recentes, lançadas da década de 1990 para cá, mostram que a realidade do país ainda é inspiração para gritos de artistas que podem pertencer a tribos distintas, mas que convergem para um mesmo ponto: levantar a bandeira da música como ferramenta política. Confira abaixo a lista do C2, que vai de Emicida a Elza Soares, passando por nossos conterrâneos, como os sempre políticos Dead Fish.

1. Boca de Lobo - Criolo

“Se três poder vira balcão/governo vira biqueira/Olhe, essa é a máquina de matar pobre!/ No Brasil, quem tem opinião, morre!”. Com um tom ácido e crítico, o mais novo single do rapper paulistano trata da corrupção na política, dos desvios de verbas e da violência sistêmica enfrentada pela população que vive à margem da sociedade brasileira. No videoclipe, Criolo une imagens que mostram o caos de um cenário distópico, com referência a fatos como o incêndio do Museu Nacional, a repressão policial, a queda do edifício ocupado no Largo do Paissandu, em São Paulo, e mais.

2. Boa Esperança - Emicida

“E os camburão o que são?/ Negreiros a retraficar/ Favela ainda é senzala, jão/ Bomba-relógio prestes a estourar”. Logo após lançar a faixa, Emicida deixou claro que sempre fez questão de retratar a abolição da escravatura como um processo burocrático resultado de muitas lutas que já ocorriam fora do ambiente da assinatura do documento. “Se a mazela continua presente, minha caneta vai mirar nela para que as pessoas no nosso tempo reflitam sobre isso”, disse, em entrevista ao G1.

3. Gigante e Inseguro - Dead Fish

“Incorporou o ativista do Estado/ E agora chama o golpe de revolução/ Copiou, colou essa imagem do passado/ Deletando todo o sangue pelo chão”. Na canção que integra o disco “Vitória”, o grupo capixaba – já conhecido pelas letras críticas e com claro posicionamento político – questiona os rumos tomados pelos protestos que começaram em junho de 2013.

4. Respect Existence Or Expect Resistance - Violator

A tradução da letra é clara: “enquanto nós existirmos, conseguiremos força para resistir”. A banda brasiliense de thrash metal nunca escondeu o posicionamento antifascista e reflete em suas letras os princípios do gênero musical: ideologia política libertária, anti-opressão e anti-sistema.

5. Carta ao Presidente - Marcelo D2

“Não tem dinheiro pra educação, segurança/Saúde então nem se fala/ Enquanto isso, neguinho tá carregando dinheiro na mala”. Assim que lançou o disco “Meu Samba É Assim”, no fim de 2006, Marcelo D2 questionou o então presidente Lula, que estava no fim de seu primeiro mandato. A faixa era uma espécie de resposta à “Carta ao Povo Brasileiro”, escrita pelo petista no início de sua gestão. D2 já era conhecido desde o início da década de 1990 pelas letras incisivas do Planet Hemp, que sempre pregou a liberdade de expressão e o questionamento das desigualdades.

6. Negro Drama - Racionais MCs

“Desde o início por ouro e prata/Olha quem morre/Então veja você quem mata/ Recebe o mérito, a farda que pratica o mal/ Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”. Lançada em 2002, no disco “Nada Como Um Dia Após o Outro Dia”, a canção funciona até os dias de hoje como um hino para o público periférico. Um dos principais grupos da música brasileira contemporânea, o Racionais mantém, há cerca de 30 anos, a tradição de cantar as mazelas vividas nos subúrbios, denunciando questões relevantes como o extermínio da juventude negra.

7. Luís Inácio (300 Picaretas) - Paralamas do Sucesso

“É lobby, é conchavo, é propina, é jeton/ Variações do mesmo tema sem sair do tom/ Brasília é uma ilha, eu falo porque eu sei/ Uma cidade que fabrica sua própria lei.” A canção interpretada por Herbert Vianna foi baseada em uma fala de Lula, do início da década de 1990, quando o líder do Partido dos Trabalhadores falou contra escândalos de corrupção após o impeachment de Collor.

8. Respeita - Ana Cañas

“Você que pensa que pode dizer o que quiser/ Respeita aí!/ Eu sou mulher”. Lançada no ano passado, a canção lembra da importância de quebrar o silêncio para falar da violência de gênero. O videoclipe teve a participação de mais de 80 mulheres. A intenção da cantora, que já passeou por estilos como o jazz, a MPB e o pop, foi abordar temas delicados como o assédio sexual.

9. O que se cala - Elza Soares

“Mil nações moldaram minha cara/ Minha voz, uso pra dizer o que se cala/ O meu país é meu lugar de fala”. A faixa de abertura do álbum “Deus É Mulher”, lançado neste ano por Elza, mostra que a cantora ainda tem muita lenha para queimar quando o assunto é dar voz a canções incisivas. Como numa ode à liberdade de expressão, “O Que Se Cala” questiona: “Pra que reprimir? Por que humilhar? E tanto mentir? Pra que negar que o ódio é que te abala?”.

10. Nazi Tolices - Mukeka Di Rato

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“Grupos de extrema direita, xenofobia, ignorância/ Tolice sem causa exterminando a raça a humana/ Negros, índios, nordestinos, judeus e homossexuais/ Humanos têm direito a vida/ Somos todos iguais”. O grito (literalmente) contra o neonazismo é apenas mais um da banda de punk rock canela verde, conhecida pelo posicionamento assertivo desde sua fundação, em 1995.

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