> >
Cineclube e resistência no Espírito Santo

Cineclube e resistência no Espírito Santo

Resgatamos a história do movimento que teve seu auge nos anos 70 e 80, passou pelo Cine Falcatrua, nos anos 2000, e ainda hoje resiste

Publicado em 11 de janeiro de 2019 às 23:07

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Claudino de camisa branca, Tião de camisa cinza e Cloves de camisa rosa claro fazem parte do seleto grupo de cineclubistas capixabas. (Marcelo Prest)

Uma sala toda em cimento, o projetor apoiado em um banquinho e espectadores sentados no chão, sem almofadas. Assim teve início em 1975 o Cineclube Universitário. Suas sessões memoráveis arrastavam multidões. Tempos inesquecíveis para Marcos Valério Guimarães, Antônio Claudino de Jesus, Cloves Mendes e Sebastião Ribeiro Filho (Tião Xará), pioneiros do cineclubismo capixaba.

As primeiras reuniões do que viria a ser o cineclube aconteceram no Centro de Estudos Gerais por volta de 1973. Cheio de dívidas, o funcionamento das reuniões ficou cada vez mais difícil. Até que em 1975, estudantes pleitearam o resgate do movimento e surgiu o Cineclube Universitário Cláudio Bueno da Rocha.

Um dos momentos mais marcantes aconteceu em 1978, ainda na ditadura, quando os integrantes decidiram exibir o filme mudo soviético

“O Encouraçado Potemkin” em um domingo, às 17h, com cinco sessões para 600 pessoas e com a Polícia Federal na porta da sala.

O cineclube foi um importante canal para redemocratização no Espirito Santo. “A gente achava que ia transformar o mundo através do cinema”, assume Cloves Mendes.

 

Nos anos 70, ápice do cineclube capixaba, o intuito era ir muito além da estética da sétima arte e usá-la para combater a censura. “A universidade era um espaço de liberdade de pensamento. Nossa luta política era no campo da cultura”, relembra Marcos Valério.

 

De Vitória, o movimento se espalhou para todo o Estado. Seus integrantes eram engajados e estavam sempre prontos para difundir o cinema, aglutinar pessoas em volta de um lençol, uma parede branca ou qualquer outra coisa pudesse ser transformada em tela para projeções exibidas em 16mm, além de, claro, discutir cinema e política.

 

Foram muitas as conquistas do Cineclube. A maior delas foi em 1992, com a criação do Cineclube Metrópolis. Foi neste ano também que o grupo fez a primeira exibição em 35 milímetros, já na nova estrutura da sala. Em 1997 encerrou as atividades, mas o movimento cineclubista no Espírito Santo continuou vivo e ainda rendeu muitos frutos.

FALCATRUA

 

O ano era 2003. Novamente o cenário era a Universidade Federal do Espírito Santo. Gabriel Menotti Gonring, Fabrício Noronha Fernandes , Rafael Trindade dos Santos, Frederico Roseiro, Fernanda Neves, Luiza Ricão e Rodrigo Melo formaram o Cine Falcatrua. Os estudantes se reuniam para baixar filmes na universidade, que já disponibilizava internet banda larga, algo ainda muito caro e para poucos na época.

“A gente levava computadores para baixar filmes à noite, enquanto a universidade estava parada, e assistia a eles na tela do computador, algo meio mambembe. Aí alguém teve a ideia de exibir o filme e se pensou na coisa do cineclube. Logo depois virou um projeto de extensão da Ufes e ocupamos o antigo Teatro Metrópolis”, recorda Fabrício Noronha, um dos integrantes e atual Secretário de Cultura do Espírito Santo.

Um dos primeiros cineclubes digitais do Brasil, o Falcatrua reunia uma média de 300 pessoas em suas sessões, mas chegou a ter mais de duas mil pessoas na projeção de “Amor Estranho Amor”, filme com a Xuxa. “Entrou na agenda da cidade, tinha algo meio hype do Falcatrua. As pessoas nem queriam saber muito qual filme ia passar”, conta Fabricio, ao se lembrar do cineclube que, à sua maneira, permaneceu ativo até 2010.

Quem acha que os tradicionais cineclubes acabaram com o surgimento de novas tecnologias como a Netflix, por exemplo, está bem equivocado. No Estado atualmente existem 42 cineclubes ativos. Em novembro de 2018 aconteceu o 6º Encontro Estadual de Cineclubes do Espírito Santo, na cidade de Mantenópolis, com a presença de 35 representantes.

A Organização dos Cineclubes Capixabas é presidida por Lara Toledo, que integra três cineclubes: THCine, Cine Libre e Cineclube São Jorge, que existe há três anos e que funciona na Galpão Produções, de Lucia Caus, responsável pelo Festival de Cinema de Vitória.

 

Para Lara, os cineclubes atuais são mais temáticos e trazem debates mais selecionados. No Estado existem cineclubes que trabalham em cima de temas voltados para mulheres, negros, comunidade LGBT e comunidade surda, por exemplo.

“Em um momento político como este, é de extrema importância o fomento do movimento cineclubista que sempre esteve aliado aos movimentos sociais. O cineclube nasceu em busca da promoção e do acesso ao cinema que não está nas salas comerciais e infelizmente muitos não conhecem ou mesmo nunca ouviram falar. Nós estamos com muita energia pra criação de um circuito de exibição cineclubista com atividades integradas entre os cineclubes, além do fortalecimento na circulação de filmes produzidos no Estado”, diz Lara.

Fato é que o movimento sempre esteve engajado com as causas. Atualmente cada cineclube funciona de acordo com a comunidade em que está inserido. “Havia unidade de luta, mas a partir da segunda metade da década de 90 surgiram diferentes lutas defendidas”, conta Claudino, presidente da Federação Internacional de Cineclubes.

Tião Xará, que até hoje participa de cineclubes, como o Cine Gruta, na Gruta da Onça, também acredita que o ponto principal continua sendo a resistência política.

“O cineclube que tem como viés temas específicos, como o LGBT, também tem um viés político e combate algo, como o preconceito. Na nossa época combatíamos a ditadura, agora a luta é outra”, resume.

 

PARA TODOS

Um dos cineclubes recentes do Espírito Santo que lutam por uma causa é o CineClube Vendo Vozes, criado em 2017. Voltadas para a comunidade surda, pessoas ouvintes, tradutores e intérpretes, as projeções são todas de obras realizadas em Libras, a língua de sinais. Nos encontros, os três públicos interagem a partir de uma projeção cinematográfica.

“Todas os curtas que selecionamos são em língua de sinais, com atores surdos, diretores e roteiristas. Acredito que é um cineclube voltado para uma imersão cultural e linguística. O surdo que vai ao cinema ele enfrenta uma barreira linguística. Nas nossas reuniões ele enxerga a sua identidade, entra em contato com o povo e também percebe que pode produzir cinema” , explica Iasmin Santos Ferreira, fundadora do Vendo Vozes.

Criado em dezembro do ano passado, o Papo Reto é direcionado para adolescentes entre 14 e 18 anos e em privação de liberdade. Ele é realizado pela Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (Gold) e os encontros acontecem toda sexta-feira, em duas sessões na Unidade de Internação Provisória II (Unip II).

“Acho que o cineclube é uma das estratégias que a gente tem para debater a politica atual. Além disso cada um pode exercer seu direito democrático de falar o que pensa e ouvir o outro. O cineclube é uma estratégia para ajudar a construir um pensamento crítico na cabeça do público e conhecer histórias”, diz Deborah Sabará, presidente da Associação.

 

Este vídeo pode te interessar

No interior, o movimento cineclubista também segue ativo. A partir de hoje o Museu Histórico de Santa Cruz recebe uma maratona de filmes brasileiros no Cineclube Guaiamum. As sessões acontecem a partir das 19h30 com um circuito de curtas metragens.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais