Paris nunca mais foi a mesma após os atentados de novembro de 2015. A neurose pela segurança, o medo do desconhecido, ou mesmo o aumento da xenofobia - especialmente contra os imigrantes muçulmanos -, mancharam de vermelho-sangue o cotidiano glamouroso da Cidade Luz.
O cinema, espelho da realidade, não poderia sair ileso. Os ataques foram lembrados tanto em formato de alegoria, seja no horror-zumbi de A Noite Devorou o Mundo (2018), de Dominique Rocher, ou na neblina mortal de O Último Suspiro (2018), de Daniel Roby, como em produções intimistas, vide a grata surpresa Amanda (2018), em cartaz no Estado.
Sucesso no último Festival de Veneza, o drama de Mikhaël Hers - que já tinha mostrado a que veio com o solar Aquele Sentimento do Verão (2015) - aposta na delicadeza e na narrativa emocional para contar os dramas de David (Vincent Lacoste).
O rapaz é um típico bon vivant. Namorador, de 20 e poucos anos, abandonado pela mãe e sem referências afetivas, ele precisa amadurecer após ganhar uma obrigação inesperada: cuidar da sobrinha de sete anos, Amanda (Isaure Multrier), após a morte da irmã nos atentados terroristas que horrorizaram a França, tirando o país da zona de conforto.
INTIMISMO
Em Amanda, se destaca a simplicidade e a doçura para falar de violência, da dor da perda e do recomeço afetivo. Uma história humanista, que remete ao cinema clássico de Yves Robert, especialmente quando vemos a criança que usa a própria infância como espelho de uma relação paternal, como visto na obra mais importante do mestre francês, A Glória de Meu Pai (1990).
Mikhaël Hers, de rara sensibilidade para contar dramas humanos marcados por tragédias, escapa de artifícios narrativos ao, acertadamente, não apostar no melodrama. Seu filme é singelo e maduro emocionalmente. Um flerte com as obras de uma das melhores cineastas francesas quando o assunto é retratar perdas e dores familiares: Mia Hansen-Løve (O Pai dos Meus Filhos, de 2009).
Vincent Lacoste - que já tinha mostrado talento em Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2018), de Christophe Honoré -, é uma espécie de Jean-Paul Belmondo moderno, denso e sensível na mesma intensidade.
Isaure Multrier mostra uma maturidade impressionante como atriz, em um papel que exige densidade dramática e talento emocional. Uma grata revelação em seu primeiro trabalho.
Amanda é um filme que nos faz refletir sobre a casualidade de nossas ações e a necessidade de viver o agora, quase de maneira urgente. Há diálogos reflexivos, como quando a garota questiona o tio o porquê de ele ter retirado os pertences da mãe de sua vista. Há doçura e indignação em cada fala da personagem. Um filme feito com açúcar e afeto, mas sem afetações ou vícios melodramáticos. Na medida certa.
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