Entrevista

Cariê Lindenberg: uma história construída com valores

Cariê chegou à empresa no início da década de 1960, mudando costumes e práticas da época para levar o jornal a se tornar referência por sua postura de independência e equilíbrio

Bernardo Coutinho

Com uma visão à frente de seu tempo, Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho, o Cariê, ajudou a construir boa parte desses 90 anos da Rede Gazeta. Chegou à empresa no início da década de 1960, mudando costumes e práticas da época para levar o jornal a se tornar referência por sua postura de independência e equilíbrio. Esses são valores que, para Cariê, A GAZETA transmite diariamente à sociedade em suas páginas. Nesta entrevista, o empresário revela um pouco da história por trás do veículo.

O que, para o senhor, foi mais marcante ao longo desses 90 anos?

Tenho só 83 anos (risos), então, não posso ter uma visão completa. A parte do Thiers Vellozo (fundador) até o grupo de meu pai (o ex-governador Carlos Lindenberg) adquirir A GAZETA, realmente conheço por história. É uma história rica, teve empastelamento, decisões políticas importantes, no passado e no tempo em que eu estive lá também, houve algumas pequenas guerrilhas sempre contra o mal, contra a corrupção. Depois eu me aposentei, como é natural quando a pessoa fica mais velha. Mas continuo com aquela mesma chama e aquela saudade grande. 

De estar acompanhando a redação diariamente?

Do ambiente, de ouvir a máquina de escrever que não tem mais. Destaco muito no livro que estou escrevendo.

O senhor gostava de frequentar a redação?

Minha tarefa não era lá, mas meu cacoete era ficar lá. Se não inteiramente na redação, com os caras que eram os editores, diretores. Eu tinha, graças a Deus, excelente trânsito. Porque eu também era econômico em pedir as coisas, e mandar, eu nunca mandei. Sempre propus para discutir alguma coisa que fosse boa.

 Quais são as suas memórias nesse processo de construção do jornal?

Você quer piada ou história?

As duas coisas.

Vivi de mesada do meu pai até os 28 anos. Começava as coisas, fazia outras, e foi assim: enquanto estava com atividade remunerada, parava a mesada, depois recuperava. Quando eleito pela segunda vez para governador, cuja campanha eu tinha colaborado bastante, meu pai me convidou para ser secretário de governo. Eu, com franqueza, disse a ele: “Papai, não tenho conhecimento necessário para fazer-te uma boa companhia. Você convida o doutor Milton Caldeira, que está bem melhor. Já tenho experiência como oficial de gabinete, vou continuar no meu carguinho. Mas é preciso você manter a mesada, porque não vou ficar com essa pobreza...”

Depois, fui para uma empresa chamada Eldorado Melhoramentos, que se desdobrou em Plano Engenharia e na Eldorado Publicidade, que foi a primeira no Estado. Eu estava empenhado em começar e fortalecer essa empresa quando meu tio Eugênio (Pacheco de Queiroz), que era presidente de A GAZETA, me chamou. Ele fez uma exposição de que estava muito sozinho, sendo prejudicado comercialmente porque tinha abandonado os negócios particulares para poder tomar conta de A GAZETA. E, realmente, era uma chatura para ele. Desde 1948 tomando conta das coisas do jornal, que era quase artesanal, e isso foi em 62, 63. Então, ao chegar lá, me deparei com algumas coisas estranhas. (Havia) recentemente me formado em Direito, com visão boa do mundo; o que é certo, o que é errado. Então, o primeiro pequenininho golpe que senti foi uma coleguinha da administração que veio pedir demissão:

– Demissão, por quê?

– Eu vou me casar e sei que a empresa não quer saber de pessoas casadas.

– Como assim?

– Aqui é um comércio; ninguém mantém mulher quando se casa.

Achei aquilo muito esquisito, perguntei ao meu tio, e ele disse que era a prática normal no comércio. “Será que estamos certos?”, pensei. E começamos por aí...

 

 

Foi nesse momento que A GAZETA também começou a ter independência política?

Não, foi em um segundo momento. (O jornal) saía da UDN e foi comprado pelo PSD. Esse ranço era uma coisa difícil de sair dele imediatamente, abruptamente, porque o jornal foi comprado em uma “vaquinha” de pessedistas. Então, ele tinha vício de origem, jornal comprado de uma facção política para fazer política em favor de outra facção.

Eu convivia com essas coisas com alguma dificuldade, tentando reduzir o grau de influência, mas aceitando aquilo que ponderadamente me sugeriam.

(A mudança) só foi possível depois, quando foram extintos os partidos políticos (em 1965, durante a ditadura, foi adotado o bipartidarismo, e apenas Arena e MDB eram autorizados).

Para se ter ideia, logo que eu entrei no jornal, não tinha nada a ver com redação; meu tio me colocou impropriamente como diretor comercial. Comecei a futucar a redação de enxerido. Estava estudando livros éticos de jornalismo e tal, e houve um acidente em Vitória com um ônibus da Itapemirim com mortes, mas não houve um registro sequer no dia seguinte. Fui à redação perguntar e falaram: “Não, essa viação é do seu Camilo, amigo nosso, às vezes é anunciante, a gente tem que ter cuidado”.

Então, a autocensura é um negócio até pior do que a censura. Porque a censura é algo explícito, você sabe o que pode e o que não pode fazer. A autocensura é indelével, fica a vida toda. Então, havia essas pequenas coisas por lá.

O senhor contribuiu para que essas “pequenas coisas” mudassem, e A GAZETA se tornasse o que é hoje?

De uma forma lenta, real e gradativa. Não precisava me indispor com ninguém nem tampouco ofender ninguém. Notadamente meu pai e seus amigos correligionários, infelizmente, estavam dentro disso. Não podia desconhecer o passado de papai, foram seis mandatos.

Mas o senhor criou a possibilidade do distanciamento político do jornal?

Houve a possibilidade de a gente caminhar para a isenção e a ponderação das verdades.

É uma marca de A GAZETA.

Vi isso em vários jornais importantes do Brasil e do mundo e também nos livros sobre ética jornalística. Absorvi isso com muita naturalidade e também um desejo muito grande de colaborar. Nunca impus nada, sempre ponderei, e as coisas feitas iam de acordo com a chefia da redação. Foi um período muito rico para mim, muito bom, tenho saudade.

Que valores A GAZETA deixa para a sociedade?

O intuito de ter independência total, de ter equilíbrio, de ser plausível com a comunidade e com os denunciados também, dando a estes a chance de darem a sua versão às coisas que forem levantadas contra eles. Isso é imprescindível a um jornal... o equilíbrio das forças, a ponderação nas matérias, não publicar nada que não está confirmado, ainda mais hoje que tem essa profusão de fake news. Cada vez mais é necessário que os jornais cuidem de não serem confundidos com picaretagem de jornalismo.

E como se deu o processo sucessório na empresa?

O termo pode ser até um pouco forte, mas é bastante consistente e conclusivo: é o ocaso. Comecei a me sentir, não diria sobrando, mas com opiniões e sugestões que já estavam eventualmente circulando menos, talvez com menos acuidade do que eram, talvez ultrapassadas. Achei que era hora de deixar e deixei. Não houve ninguém me empurrando para isso, tampouco me incentivando. Foi um processo natural.

O senhor está escrevendo um livro de memórias. O que poderia nos adiantar?

Houve coisas do passado, que nem sei se devo falar... Quando morreu Picasso, o pintor, por um erro que era comum nos jornais que trabalhavam com chumbo, caiu o ‘r’ do pintor. “Morreu Picasso, o maior pinto do mundo” foi uma manchetinha nossa. Da Dona Edith Bulhões, que era uma senhora muito importante na nossa sociedade, lhe cortaram o B e puseram um C. Ficou mal! Outros coleguinhas nossos, no Caderno de Turismo, atribuíram à passagem dos três Reis Magos aqui o motivo do nome daquela igreja que tem em Nova Almeida. Imagine, os Reis Magos passando aqui! Essas coisas são inesquecíveis. Na época foram um pouco chatas, mas depois viraram histórias.

Que mensagem o senhor gostaria de deixar pela passagem dos 90 anos de A GAZETA?

A vida de uma empresa jornalística não é uma coisa incomum e muito menos discreta. É uma coisa que sobrevive aos olhos públicos, quer dizer, um jornal que faz 90 anos, com a categoria de prestígio que tem A GAZETA, é algo que a gente não pode imaginar que aconteceu por acaso, por uma bênção divina. Evidentemente que a gente tem que creditar isso a todos os funcionários administrativos, aos que são da gráfica, e principalmente aos jornalistas; são eles que fazem o jornal.

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