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Por que poucos atletas se envolvem com a política nacional?

Por que poucos atletas se envolvem com a política nacional?

Doutor em Psicologia explica a relação de esportistas com a política e aponta caminhos para mudar esse panorama

Publicado em 25 de maio de 2018 às 19:48

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Nos primeiro anos da década de 80, ainda na vigência do Regime Militar, um grupo de jogadores do Corinthians, liderado por atletas do quilate de Sócrates, Casagrande e Wladimir lideraram a Democracia Corintiana, na qual todas as decisões dentro do clube paulista eram decididas pelo voto. Esse é até os dias atuais o maior movimento ideológico da história do futebol brasileiro. O Corinthians exibia nas camisas durante os jogos frases com dizeres como "Diretas Já" e "Eu quero votar para presidente (do Brasil)". O movimento durou até o ano de 1984, entretanto deixou um legado da força que o esporte pode ter na política.

De lá para cá, pouca expressividade se viu nos atletas às causas políticas. Para o Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense e autor do livro O Acontecimento: Democracia Corinthiana, Vitor Martins Regis, esse cenário é um reflexo do que ocorre nas outras camadas da sociedade.

O país atravessa um momento de instabilidade política. O que não se vê, porém, é o envolvimento de atletas na discussão. Por que não notamos uma participação dos desportistas?

Não há como pensá-la muito diferentemente do que acontece com o restante da população: a educação formal que recebemos é pobre no que diz respeito à preparação para a cidadania. Para além de uma tradição pedagógica voltada para a repetição tecnicista de saberes e de práticas que exclui o pensamento crítico, a educação brasileira precisaria valorizar conteúdos ligados à filosofia, à ética e à política para gerar um envolvimento maior da população com a questão da civilidade. Como no caso de profissionais de outras áreas, os atletas ainda tendem a realizar suas atividades de treinamentos e de competições conforme a tradição da divisão social do trabalho. Isto significa que também existe, no âmbito do esporte, uma separação entre quem pensa e planeja o trabalho (comissão técnica) e quem apenas o executa (desportista). Acompanhando o hegemônico legado filosófico que separou – e privilegiou – a mente em relação ao corpo, alguém que se dedica a atividades físicas como os esportes não estaria habilitado para tratar de um tema superior como o da reflexão acerca da política. Como um trabalhador contratado por um clube, patrocinado por uma empresa ou subsidiado pelo governo, o atleta profissional vive a mesma situação que qualquer empregado pode passar ao defender uma posição que contrarie a postura adotada pelo empregador. Naturalmente há riscos que os atletas profissionais, como os trabalhadores de outras áreas, podem evitar escolher correr.

Acredita que o fato de sermos uma democracia recente contribua para esse atraso político dos atletas?

A nossa mentalidade ainda precisa avançar com relação ao exercício da democracia. Infelizmente, o senso comum é permeado pela ideia de que o auge da participação política do cidadão brasileiro é um dia votar em um candidato que indiretamente defenderá os seus interesses pelo restante de um período de quatro anos. Isto vale não somente para a eleição do presidente do Brasil, mas para a escolha do dirigente máximo de uma confederação esportiva como a CBF ou de um clube de futebol como o Vasco da Gama. O efeito deste descolamento se revela, por exemplo, no envolvimento de mandatários políticos e de dirigentes esportivos em esquemas de apropriação criminosa de recursos públicos.

Estrelas como LeBron James, astro da NBA, teceram críticas ao presidente norte-americano, Donald Trump, em relação à política trabalhista e raciais defendidas pelo líder dos EUA. Há um maior amadurecimento político neles comparados aos brasileiros?

É provável que sim, já que, nos EUA, os níveis da educação formal entre os atletas, os patamares de profissionalismo das equipes e das ligas, e os gradientes de funcionamento das instituições democráticas sejam mais elevados que no Brasil. O que eu diria com mais segurança é que os campeonatos das diversas modalidades esportivas que sucedem nos EUA, em geral, tem uma projeção mundial mais intensa e mais ampla que a das competições no Brasil. O mundo inteiro conhece a imagem de John Carlos e de Tommy Smith, com os punhos erguidos e cerrados, como "Black Panthers", no pódio das Olimpíadas de 1968. Mas acredito que menos gente conheça a luta do "Prezado amigo Afonsinho" de Gilberto Gil, o mesmo Afonso que Pelé, em 1972, considerou o único homem livre no futebol brasileiro.

Sua formação é em Psicologia. Como essa área pode contribuir para despertar a conscientização política nos atletas ou até mesmo explicar o pouco envolvimento dos mesmos?

De modo abrangente, uma maneira de encarar a psicologia pode ser a de posicioná-la na intercessão entre as ciências humanas e as ciências da saúde. Neste caso, a psicologia será responsável, em sua especificidade, por cuidar da saúde subjetiva da humanidade. Cuidar da saúde do que o humano tem de subjetivo é indissociável da atenção para com o domínio da política em seu sentido mais nobre. Ou seja, para promover a saúde mental, as estratégias para governar uma comunidade humana precisam colocar o bem comum acima dos interesses individuais. Portanto, afirmar que o envolvimento político dos atletas brasileiros seja baixo é correlato a constatar que eles não estejam ativos na construção e na efetuação de estratégias de governo para a comunidade da qual eles fazem parte. Escrevendo sobre a Democracia Corinthiana, eu compreendi que uma das lições relacionadas àquela experiência, contrariando a universidade, lugar em que a vida se dá repartida entre as diferentes disciplinas, foi a de que é preciso, para ter saúde subjetiva, abordar a vida de forma transdisciplinar. Esta ideia que a psicologia desenvolve é a de que a vida suceda, todo o tempo, em várias dimensões. Aproveitar essa vida, explorá-la da forma mais alegre não se faz de forma simples, mas depende de uma atitude em face da sua "complexidade" para usar um conceito do pensador Edgar Morin.

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A Democracia Corinthiana marcou época e continua sendo uma inspiração para o pensamento progressista porque ela conquistou aquilo que todos nós queremos: a coragem para assumir o controle sobre o próprio destino sem abandonar os valores superiores da camaradagem, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças

Vitor Martins Regis, doutor em psicologia
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Recentemente o apresentador Tiago Leifert afirmou que o esporte não é lugar para a política. Por que ainda se tem esse ideia por aqui e qual o seu entendimento sobre essa afirmação?

Eu perguntaria ao Tiago Leifert quando foi que o domínio do esporte não esteve entrelaçado ao regime da política. Aquilo que a televisão nos permite acompanhar diariamente como modalidades esportivas, com características que podem ser resumidas em função da competição, do rendimento físico-técnico, do recorde, da cientifização do treinamento, elas só existem porque as suas institucionalizações foram e continuam sendo objetos de políticas de Estado.

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A Democracia Corintiana foi o maior movimento político liderado pela classe esportiva. O que significou esse movimento para a classe esportiva?

Enquanto ainda vivíamos uma ditadura, o Corinthians repercutiu uma experiência política de democracia plena neste país completamente apaixonado por futebol. Desde o presidente até o roupeiro, toda decisão que dissesse respeito ao clube podia ser discutida democraticamente e deliberada conforme o voto da maioria dos membros da equipe. Mas as ações da Democracia não se restringiram ao regime do futebol. Elas contribuíram diretamente para a redemocratização do país. O recém liberado espaço publicitário nas camisas foi preenchido com "Democracia Corinthiana" e "Dia 15 vote", convidando a população a participar das eleições estaduais de 1982. A Democracia Corinthiana marcou época e continua sendo uma inspiração para o pensamento progressista porque ela conquistou aquilo que todos nós queremos: a coragem para assumir o controle sobre o próprio destino sem abandonar os valores superiores da camaradagem, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, da justiça social e da liberdade de expressão.

O que te motivou a escrever sobre e como foi ouvir os líderes do movimento?

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O meu investimento em relação ao tema da Democracia Corinthiana começou na época da graduação em Psicologia na UFES. Naquele período, reunimos dois assuntos que nos eram muito caros: o esporte de alta performance e a filosofia contemporânea de autores como Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari. A proposta era insólita. Ao mesmo tempo que, tradicionalmente, o universo do esporte competitivo é autocrático, paternalista e conservador, o nosso grupo de pesquisa e de intervenção concebia a psicologia como uma atividade voltada para a democracia, para a autonomia e para a transformação. Neste sentido, o contato com o acontecimento Democracia Corinthiana me tranquilizou com relação à viabilidade de trabalhar com a psicologia do esporte em uma perspectiva que privilegiasse, para o desenvolvimento do aspecto mental-emocional dos atletas, a crítica, a criatividade e a grupalidade. Aquele grupo do Corinthians, que depois se tornou o objeto de estudo do meu mestrado em Psicologia na UFRGS, contribuiu como nenhuma outra agremiação desportiva para o aprofundamento da democracia no Brasil. E é importante grifar que isto em nada os impediu de serem extremamente competitivos e vitoriosos. Ao ouví-los, pessoas completamente diferentes em tantos aspectos, se é preciso generalizar, para além da paixão pelo futebol e pela democracia, a minha impressão sobre o que foi recíproco entre os membros da Democracia Corinthiana é o fato desses homens terem sido dotados de grande generosidade.

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