Um móvel inspirado no Quilombo dos Palmares está provocando polêmica nas redes sociais. Batizada como bufê tronco dos escravos, a peça de MDF tem acabamento em laminado freijó e detalhe com oito buracos, que fazem referência a um dos mais violentos instrumentos de tortura e humilhação utilizado pelos senhores de engenho contra os escravos.
Para críticos, trata-se de um caso de racismo ou, no mínimo, falta de sensibilidade com um dos períodos mais grotescos da História do país. Para os idealizadores, o propósito era resgatar a luta pela liberdade.
O móvel faz parte da coleção Quilombo dos Palmares, resultado de um projeto do Arranjo Produtivo Local Móveis Maceió e Entorno, parte do Programa de Arranjos Produtivos Locais, coordenado pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico e Turismo em parceria com o Sebrae/AL. A linha foi lançada em dezembro de 2015, mas a polêmica surgiu semana passada, quando imagens do bufê começaram a circular nas redes sociais.
O jornalista Laurentino Gomes, autor dos livros 1808, 1822 e 1889, que trabalha numa trilogia sobre a escravidão, foi um dos que demonstraram espanto com o móvel: Uma das peças chama-se Tronco de Escravos. O tronco era um instrumento horroroso de tortura de cativos no Brasil. Criatividade tem limites, não?, questionou o escritor.
A escravidão é extremamente mal estudada no Brasil! A própria ideia de criar uma linha de móveis inspirada em Quilombo já mostra isso. Alguém imagina uma linha de móveis inspirada em Auschwitz?!, escreveu outro internauta.
'EVOCA O SOFRIMENTO FÍSICO E PSICOLÓGICO'
Para Ana Lucia Araujo, professora de História na Universidade Howard, em Washington, o móvel é racista e faz apologia da escravidão. Ela explica que o tronco era um instrumento usado por senhores de escravos e capatazes para punir homens, mulheres e crianças escravizados.
"Para o consumidor afrodescendente cujos ancestrais foram escravizados no Brasil o móvel imitando um instrumento de tortura representa a ideia de submissão e evoca diretamente o sofrimento ao quais seus ancestrais foram submetidos", destacou. "Só um designer branco, sem nenhuma empatia, pode conceber tal peça sem considerar essa dimensão crucial.
Que consumidor, a não ser o consumidor branco, pode experimentar algum prazer estético ao ter em sua sala um móvel que evoca diretamente o sofrimento físico e psicológico infringido em milhões de africanos escravizados e de seus descendentes?".
A pesquisadora, autora de três livros e inúmeros artigos sobre a escravidão, problematiza ainda a relação entre o tronco dos escravos e o Quilombo dos Palmares.
"Ora, Palmares, quilombo que abrigou milhares de escravizados fugitivos era um lugar de rebelião e insurreição contra a sociedade escravocrata brasileira, um espaço de autonomia dos escravizados", criticou Ana Lucia.
Em comunicado, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico e Turismo ressaltou que o Governo do Estado, apesar de discordar da denominação atribuída pelo designer à sua obra, nunca interferiu no processo criativo dos trabalhos desenvolvidos pelos Arranjos Produtivos Locais.
INTENÇÃO ERA 'RESGATAR A LUTA PELA LIBERDADE'
O designer Marcos Batista, que esteve à frente do projeto Arranjo Produtivo Local Móveis Maceió e Entorno, deixa claro que sua participação se limitou a orientar como os móveis poderiam ser desenhados, resgatando as formas, texturas e linhas, mas que as obras foram desenvolvidas por um grupo de 20 marceneiros da região. Eles realizaram estudos, com viagens para a Serra da Barriga, onde o quilombo foi estabelecido, e os marceneiros escolheram objetos de referência para a criação de móveis.
O berimbau inspirou uma luminária; Zumbi dos Palmares, um banco; e o tronco dos escravos, um bufê. Os nomes indicavam os objetos que serviram de referência para o móvel. O designer acrescentou que as peças foram usadas apenas como portfólio para os marceneiros, não chegaram a ser comercializadas, e que em nenhum momento houve a intenção racista.
"Todo o trabalho foi para enaltecer a história, a luta e as conquistas do Quilombo dos Palmares, tema escolhido pelos próprios marceneiros", defendeu Batista. "E os marceneiros não tiveram a intenção de racismo. Muito pelo contrário, o propósito era resgatar a luta pela liberdade".
"Como um objeto que representa a submissão e o sofrimento pode representar Palmares e a luta pela liberdade?", questionou Ana Lucia.
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