Dois anos depois

Poeira da lama preocupa moradores atingidos pela tragédia da Samarco

Pesquisadores avaliam problemas de saúde envolvendo moradores de regiões próximas ao Rio Doce desde o rompimento da barragem

Caique Verli

Publicado em 31/10/2017 às 06h33

Dia 5 de novembro de 2015. Há dois anos, Minas Gerais e Espírito Santo se viam no meio da maior tragédia ambiental da história do Brasil. O rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), destruía uma comunidade, matando 19 pessoas, e trazia prejuízos que ainda são incalculáveis para a biodiversidade de toda a bacia do Rio Doce e para a saúde dos ribeirinhos. A lama de rejeitos de minério percorreu mais de 600 km, contaminando o curso e a foz do rio, em Linhares.

Ambientalistas afirmam que não há nenhuma expectativa de quando o leito e a foz do rio serão totalmente recuperados. O solo próximo à barragem da Samarco que se rompeu deve levar pelo menos mais três anos para ser aproveitado pela produção agrícola, com a mesma intensidade de antes da tragédia.

O Ministério Público Federal contratou, em maio deste ano, duas consultorias independentes para analisar se as ações da Fundação Renova se mostraram suficientes para mitigar o impacto do rompimento.

A Fundação foi criada em março de 2016 por um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado pela Samarco e suas controladoras, Vale e BHP Billiton, com os governos federal e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. A criação da Renova teve o objetivo de reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão

Os resultados parciais desanimam a Força-Tarefa do Ministério Público Federal (MPF) que está à frente do caso. O procurador José Adércio, coordenador da força-tarefa, aponta que as ações da Fundação se mostraram ineficientes para mitigar os impactos sociais, econômicos e ambientais da tragédia.

"Dois anos passados, o quadro no Espírito Santo e em Minas Gerais é muito parecido com o que a gente vivia há um ano atrás e muito parecido, infelizmente, com o que vivemos há dois anos atrás", comenta.

Pouco a pouco, mais detalhes preocupantes desse impacto são revelados por pesquisas no Brasil. Um estudo da USP, financiado pela ONG Greenpeace e divulgado este ano, revelou que 37% da população da cidade de Barra Longa, em Minas Gerais, vizinha de Mariana, apresentaram piora na saúde após a tragédia.

A lama tomou conta das ruas de Barra Longa. Uma montanha de rejeitos foi dando lugar à poeira, atormentando os moradores. Foram retirados 157 mil m³ de rejeito da cidade. Parte foi deslocada para o Parque de Exposições e usada para o alteamento do campo de futebol, que sofria com enchentes nos períodos de cheias. A construção do campo de futebol com suas instalações é uma medida compensatória da Fundação Renova para o município.

O estudo da universidade paulista indica que a maior quantidade de problemas de saúdes relatados pela comunidade foram respiratórios, 40%. Para crianças de até 13 anos completos, as doenças respiratórias chegaram a 60% das queixas no município.

O que nós queremos é que haja laudos independentes. Laudos até agora são produzidos pela própria Renova. Queremos laudos independentes.
José Adércio, procurador do MPF

A consultoria do MPF já aponta os estragos dessa poeira na cidade mineira, mas ainda vai apurar se há impactos dela em toda a extensão do Rio Doce, incluindo o trecho capixaba. José Adércio destaca que só um laudo produzido de forma independente vai ser capaz de revelar a verdadeira dimensão da tragédia hoje.

"O que nós queremos é que haja laudos independentes. Laudos até agora são produzidos pela própria Renova. Queremos laudos independentes".

Pesquisador da UFRJ e coordenador de um projeto de pesquisa que analisou a contaminação por metais pesados na água utilizada por agricultores familiares na Região do Rio Doce, o professor de biofísica João Paulo Machado Torres defende que não se pode menosprezar a poeira e analisa que o pó pode ser mais prejudicial para a saúde do que se imagina.

“Essa é uma questão que deve ser investigada. A gente sabe que, dependendo do tamanho da partícula, a poeira pode chegar aos pulmões. Efetivamente, mesmo que não chegue lá, que seja uma fração respirável, todo o sistema de muco e de cílios do nosso pulmão faz com a gente acabe engolindo as poeiras. O meio-ambiente é tudo que nos cerca: é o ar, a comida, o alimento. Então, na existência de poeiras enriquecidas de metais, isso tem que ser levado em consideração e não apenas deixado para lá”, defende.

A pesquisa também revelou que o nível de contaminação em áreas próximas ao rio não permitiu novos cultivos no solo, como o milho e o feijão de antes. Segundo o professor de biofísica João Paulo Machado Torres, após a lama, moradores de Belo Oriente e Governador Valadares, em Minas; e Colatina, no Espírito Santo, tentaram o cultivo de banana, sem sucesso.

“Praticamente todos, 88% deles, mudaram seus cultivos, e após o desastre surge a banana como uma tentativa de produzir, mas efetivamente muitas dessas plantas não se desenvolveram em solos recobertos com aquela lama, que tem a particularidade de não ser apenas uma lama de rejeitos minerais”, explica.

O resultado da pesquisa da USP é motivo de preocupação para o pesquisador e outros inúmeros especialistas da área. Desde o desastre, 56% dos participantes da pesquisa em Barra Longa afirmaram ter deixado de realizar alguma de suas atividades habituais e domésticas, e 49,5% chegaram a ficar acamados.

Os principais sintomas relatados foram dor de cabeça, tosse, dor nas pernas, alergias de pele, febre e rinite. Um ponto assustou os pesquisadores: dor nas pernas é um sintoma comum de intoxicação por minério.

Uma das comunidades mais impactadas foi a tribo indígena Krenák, localizada na margem do rio Doce, em Minas Gerais, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena.

Todos os índios apresentavam algum problema de pele. Está filmado, está documentado.
Ernesto Galiotto, ambientalista, acompanhou o drama da tribo Krenák

O ambientalista Ernesto Galiotto, que produziu dois documentários sobre o Rio Doce, acompanhou de perto o drama da tribo. Segundo relato dele, todos os índios da tribo adoeceram após a tragédia e tiveram problemas na pele.

"Todos estavam com algum problema de pele, todos tinham alguma coisa na pele. Isso eu vi, está filmado, está gravado. Ali é dos lugares mais graves desse problema da poeira. Porque essa poeira tem a mesma poluição que tinha o barro. Ela vira uma areia e tem o mesmo resíduo tóxico que tem no barro”, relata.

Isso sem contar o impacto cultural da lama no Rio Doce. A tribo Krenák utilizava as margens do rio para fazer rituais e festas. Depois da tragédia, consideraram o rio como morto.

O biólogo responsável pelo gerenciamento da Reserva Biológica de Comboios, em Linhares, Antônio de Pádua Almeida, entende que, como há proibição da Justiça para a pesca de consumo de peixes e mariscos na foz do Rio Doce, em Linhares, seria prudente também estender a proibição para todo o Rio Doce.

“A pesca está permitida na calha do rio, mas não está permitida numa área costeira, em função de uma decisão judicial. Ou seja, estão pescando no rio e vão pescando no mar. Particularmente, acho que do ponto de vista técnico, a decisão judicial tem um caráter preventivo e também deveria ser aplicada à calha do rio enquanto não tivermos definições sobre a contaminação”, alerta.

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FUNDAÇÃO RENOVA RESPONDE

Procurada para comentar a reportagem, a Fundação Renova afirmou que as ações de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), já receberam aportes de R$ 2,5 bilhões, de um total de R$ 11,1 bilhões previstos até 2030.

De acordo com a Renova, as ações de reparação tem participação efetiva das comunidades impactadas. Por isso, já foram realizadas 1.715 reuniões nos municípios atingidos – média de 78 reuniões mensais –, com participação de mais de 50 mil pessoas.

Segundo a organização, somam-se 42 programas e projetos, priorizando o reassentamento das pessoas atingidas, o pagamento de indenizações, a manutenção da qualidade da água na bacia do Rio Doce e a retomada da atividade econômica dos municípios afetados. A Renova garante também que os níveis de metais no curso d’água do Rio Doce têm se mantido na normalidade, em valores semelhantes aos encontrados antes do rompimento da barragem.

Sobre os problemas de saúde das comunidades ribeirinhas, disse que está sendo feito um amplo estudo epidemiológico e toxicológico, com foco em toda a área impactada, que analisará indicadores de saúde no horizonte de 10 anos antes e, no mínimo, 10 anos depois do rompimento da barragem de Fundão.

Esse estudo, segundo a Renova, vai mostrar se existiram ou não mudanças nesses padrões. A Fundação ainda contou que foram contratados 83 profissionais, entre médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras, para as 18 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) da região de Mariana e Barra Longa.