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Pesquisador analisa hábitos digitais nos morros de Vitória

Pesquisador analisa hábitos digitais nos morros de Vitória

Pesquisador que estudou o acesso à internet nos morros de Vitória diz que população tem de ser instruída a usar a rede de forma crítica, o que é essencial para evitar que se caia em "armadilhas" neste ano eleitoral

Publicado em 14 de janeiro de 2018 às 01:12

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Uma menina de 15 anos que aprendeu a ler e a escrever utilizando as redes sociais. Pessoas que conseguiram um emprego depois de descobrir como criar seu próprio currículo on-line. Estudantes que se unem para compartilhar conhecimento. No alto dos morros de Vitória, a chegada da internet proporcionou essas e outras vitórias cotidianas observadas pelos olhos atentos do pesquisador David Nemer. Por cerca de 10 meses ele observou, em campo, como o acesso ao mundo digital alterou a vida de moradores de bairros como São Benedito, Gurigica, Itararé, Bairro da Penha e Jaburu.

A pesquisa de David, que serviu de tese de doutorado, ocorreu entre 2013 e 2015, com foco nas dinâmicas e interações vividas em lan houses e telecentros (espaços públicos onde é possível utilizar computadores e suas ferramentas). Os achados deram origem ao livro “Favela Digital - O Outro Lado da Tecnologia”, que reúne também uma coletânea de fotos produzidas em parceria com o coletivo Ateliê de Ideias. Mas o estudo não parou por aí. Atualmente professor da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, David, que é especialista em Antropologia da Tecnologia, continua visitando o Brasil para acompanhar as mudanças nesse processo.

E se por um lado a tecnologia abre o caminho para o empoderamento dos menos favorecidos, por outro, o professor observa que ela, por si só, não é capaz de superar a histórica desigualdade entre pobres e ricos. Para além disso, David analisa como a carência de educação digital é capaz de potencializar problemas atuais, como é o caso das fake news, as notícias falsas que são disseminadas no meio digital. Confira a entrevista:

 

Quais as principais descobertas de sua pesquisa?

Percebi que a tecnologia é capaz de dar empoderamento às pessoas de classes mais baixas, mas que ela também é limitada nesse aspecto. Eu conheci uma menina de 15 anos que estava na sétima série sem saber ler ou escrever, mas que aprendeu tudo isso para usar o Facebook. Como ela se sentia por fora dos assuntos que os amigos iniciavam na rede social e concluíam na Pracinha de Itararé, em Vitória, ela se viu motivada a aprender. Também vi gente que conseguiu emprego depois de aprender a fazer currículos e aplicá-los, e gente que se conheceu dentro dos telecentros e começou a estudar junto para o Enem, para cursinhos.

E como essa população lida com as imagens na internet?

O uso da selfie também ganha um novo significado nos morros. Lá, as pessoas não podem ser explícitas com as palavras, pois as pessoas do movimento (do crime) vão mandá-las apagar. Então, a selfie se tornou uma forma de expressar sentimentos, além de um modo de comunicação diante do analfabetismo. Conheci uma mãe que não podia deixar o filho em casa ou na rua porque tinha medo de ele ser recrutado pelo tráfico. Ela o deixava no telecentro e a cada duas horas ele enviava uma foto para comprovar que estava lá. Era um alívio. São situações empoderadoras que passam despercebidas.

A internet é suficiente para superar as barreiras sociais para quem vive nessas comunidades?

A tecnologia não é capaz de superar barreiras sociais. O Facebook permitiu que as pessoas se organizassem e fossem às ruas em 2013. Mas, como as manifestações foram um movimento estudantil da classe média alta, essa organização não chegou até as partes mais pobres de Vitória. Quando as comunidades pobres ficaram sabendo e quiseram se organizar para levar suas demandas, já era tarde. A desconectividade que vemos off-line também é on-line. Já nos rolezinhos, organizados pelas redes sociais, os jovens (das comunidades) sentiram que juntos poderiam ir ao shopping, já que ir sozinho é perigoso e constrangedor. Eles são vigiados. Eu fui com eles e vi que é assim. Era só uma forma de eles terem acesso como todos. Mas quando eles se sentiram capazes de cruzar essa barreira social, viram que não dava. A polícia veio com tudo, revistou, tirou camisa. Esse é um exemplo de que a tecnologia ajuda, mas não é suficiente. Se não nos organizarmos socialmente para acabar com o classismo e o racismo, nada mudará.

Com a continuidade do estudo, você percebeu mudanças para melhor ou para pior?

Não vi mudanças positivas. Infelizmente, os telecentros estão perdendo recursos e não servem à população como antes, quando eram uma referência. Levei esse estudo para mais de 23 países como Índia, África do Sul e Estados Unidos, e as pessoas sempre veem os telecentros com bons olhos, porque ali usava-se a tecnologia numa perspectiva educadora. Há essa ideia de que o mundo se concentra no smartphone, sem fio. É uma tendência sim, mas ainda não chegamos lá, e os telecentros não eram apenas uma área de acesso à tecnologia, eles eram uma área de socioinclusão.

A prefeitura diz que está investindo mais no Vitória Online, a rede de Wi-fi grátis, mas isso não é convincente porque você vai às comunidades e vê que ele não é tão acessível e não tem essa pegada educativa. Essa é minha maior crítica: garantir acesso não significa garantir a apropriação da tecnologia. Precisamos de educação digital. Em um mundo ideal, não precisaríamos dos telecentros, mas eles eram uma extensão da escola. Lá havia oficinas, formas de criar seu currículo e conseguir um emprego. As pessoas se ajudavam mesmo na sala de espera. Numa área de constantes conflitos, eles eram um ponto de encontro e de segurança. Enfraquecê-los é um retrocesso muito mais social do que digital.

Então, qual é o real papel da tecnologia?

Há uma visão positivista que acredita que o desenvolvimento tecnológico por si só é um agente transformador da sociedade: o Facebook deixa as pessoas estúpidas, o celular deixa as crianças dispersas. Mas não é isso. Tecnologia e sociedade estão o tempo todo se construindo. Será que o celular não está distraindo as crianças porque há uma falha no papel dos pais? Para mim, a tecnologia é apenas amplificadora. Se temos um problema de racismo, de desigualdade social, de sexismo, ela irá expor isso. Tanto é que vemos esses comportamentos nas redes. Elas (tecnologias) são como um palco, onde se coloca o que é representativo para a sociedade.

As características socioeconômicas influenciam no modo de uso a internet?

Por um lado, há diferenças. Pessoas de classe média e alta, por exemplo, compram muito on-line porque têm mais acesso e dinheiro. Já os mais pobres, mesmo se quiserem comprar, o produto pode não chegar, até porque o carteiro também tem medo de circular nessas áreas. Mas não digo que seja diferente no sentido do uso crítico da rede. Todas as classes usam Facebook e WhatsApp. O Brasil hoje é um dos maiores produtores de memes do mundo, que surgem principalmente nas classes mais baixas. A diferença é que cada um vai retratar sua realidade. O rico vai colocar uma foto de um churrasco numa casa bonita e o pobre vai postar em uma laje. Ambos são entretenimento, mas é o da laje que será julgado.

Os mais pobres muitas vezes usam a tecnologia de uma forma mais consciente do que quem não se autointitula marginalizado. Usam ela para sobrevivência, para ganhar um dinheiro, para se comunicar com quem não poderia antes. Aqui no Brasil inventou-se aquele termo muito pesado que foi a "orkutização", que significa dar acesso à internet aos pobres. Muitos falam que houve "orkutização" do Facebook, dos aviões. Esse preconceito não permite um uso original da rede por parte das classes mais baixas e as denigre.

Como avalia o desempenho do poder público diante desse quadro de desigualdades?

Há vários pontos que podemos citar. O Brasil foi pioneiro com o Marco Civil da Internet e poderia ter se colocado como líder nesse tema se o marco não tivesse sido modificado por questões políticas. Hoje, ele não serve para quase nada mais. Nosso poder público é omisso e parece não entender a internet. Tivemos casos de juízes que quiseram banir o WhatsApp porque ele não deu acesso a mensagens que foram solicitadas. Isso foi motivo de vergonha no mundo, pois uma mensagem criptografada só pode ser lida por quem a enviou e quem a recebeu.

Como empoderador tínhamos o programa federal dos telecentros, que investia nos municípios. Ele desandou com o governo Temer. Posso assegurar que não há nenhum programa novo que vise promover uma apropriação mais crítica da tecnologia e isso será um problema sério em 2018, ano de eleições em que as fake news (notícias falsas) tendem a crescer.

Por que há essa tendência de crescimento das fake news?

Hoje o marketing digital implica em canalizar as notícias para as “pessoas certas”, para o seu nicho. E isso é perigoso, pois aparecerão muitas notícias falsas. Antigamente, o próprio design do site, quando mal feito, ajudava as pessoas a discernirem um veículo confiável de outro não confiável. Só que hoje qualquer um cria um site bonito. Além disso, há um movimento que chamamos de câmera de eco, em que as pessoas só aceitam aquilo que elas querem ouvir, e as notícias falsas podem satisfazer esses anseios. Os candidatos sabem disso. Os que querem impor ideologias vão se utilizar de notícias falsas para influenciar a opinião pública.

Há uma ideia equivocada de que o problema é maior entre pessoas mais pobres. Eu tenho acesso às diversas classes e vejo esses compartilhamentos e comentários em todas elas. Muitos têm o hábito de ler apenas o título das matérias e já o tomam como verdade. A solução para isso é simples: clicar e ler. O problema é que, tanto o design dos smartphones, que não foram feitos para se ler matérias, quanto a atitude da população colaboram para o surgimento das fake news. Por isso, a educação digital é tão importante. Ela nos ajuda a não cair em armadilhas.

Recentemente os Estados Unidos revogaram a obrigatoriedade de neutralidade da internet. O que acha disso?

A internet foi formada sob os preceitos de abertura, democracia e livre concorrência. Acabando a neutralidade, permite-se que os provedores decidam como o acesso à internet será feito. O pior disso é que hoje temos grandes empresas, como Facebook, Google e Microsoft, que podem monopolizar o serviço. Como uma start-up vai conseguir sobreviver a isso? As informações também poderão ser mais polarizadas. Não estamos na idade digital, há muita gente sem acesso, e limitar a internet é retrógrado. É perigoso.

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