> >
'É falácia imaginar que novo tipo penal acabará com casos de assédio'

'É falácia imaginar que novo tipo penal acabará com casos de assédio'

Os tipos de assédio e suas características são mapeados na pesquisa de pós-doutorado da advogada, do sexual ao que envolve bullying

Publicado em 11 de março de 2018 às 00:52

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
(Reprodução | Sindicato dos Bancários de Santos)

Quando um juiz de São Paulo decidiu por libertar ano passado um homem preso em flagrante após ejacular em uma passageira de ônibus, o meio jurídico se dividiu. O caso foi interpretado como contravenção penal, embora alguns juristas reconheçam a situação como estupro. Uma das conclusões da época foi que o problema estava, na verdade, no Código Penal, que não reconhece assédio sexual como crime. Ele só é tipificado se ocorrer numa relação trabalhista.

Mas será que o problema é esse mesmo? Falta de leis? Para a advogada Ivanira Pancheri, não. Ela é autora da pesquisa “Assédio Laboral: Reflexões do Biodireito”, trabalho do seu pós-doutoramento no Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). No estudo, o foco era o assédio moral no trabalho, mas ela acabou por identificar diversos outros tipos de assédio e suas características.

Sobre o conclame por novas leis, ela afirma: O grande ponto é, a partir do momento que você cria um tipo penal, parece que a sociedade se acalma. É uma falácia imaginar que você criar um tipo penal que vai resolver”.

E explica: “Digamos que na melhor das hipóteses esse tipo penal saia perfeito. Ele vai resolver por si só problema? Eu posso te afirmar com 99,9% de certeza que não. Se você não tiver uma sensibilização, uma conscientização da sociedade civil, poder judiciário, promotores, operadores do direito em geral, mídia, da importância de você afastar, enfrentar e combater aquele problema, o direito penal por si só não vai resolver”.

O que é assédio?

Ivanira Pancheri é pós-doutoranda na Faculdade de Direito da USP. (Estado de Direito)

A pesquisa tinha como foco principal assédio moral no trabalho. Durante o percurso percebi que você tem esse comportamento em várias áreas. Na escola, que é o bullying; no local de trabalho com a finalidade de favores sexuais, que é o assédio sexual; o assédio imobiliário, que foi muito bem retratado no filme Aquarius, com a Sônia Braga, que é a aquela perseguição persistente, sutil. O assédio não é aquela coisa expressa. Ele vem de um assediador que manipula, que usa um comportamento não expresso, não verbalizado, de forma ostensiva.

Fale da importância de se conceituar os assédios.

Muitas vezes você vivencia isso, mas não identifica. A partir do momento que você classifica, dá nome, é muito mais fácil para a vítima perceber que ela está sendo vítima e que não percebe que está naquela relação de poder. O único porém disso é que se você catalogar muito, especificar demais, principalmente no direito penal, a gente corre um risco. Porque não necessariamente você tipificar, criminalizar, vai resolver. É interessante nomear, mas sem desconsiderar tudo que vem antes. Não achar que o fato de eu nomear e criar um tipo penal, que isso vai resolver o problema. Somente isso não vai resolver.

Mas como lidar juridicamente com a questão do assédio quando no Código Penal ele só é reconhecido se acontecer num ambiente de trabalho?

Especificamente falando de assédio sexual, é preciso analisar isso no contexto de toda a violência contra a mulher. No Código Penal, temos o estupro; o tráfico internacional de pessoas; violação sexual mediante fraude; há crimes contra a honra; calúnia; difamação; injúria; há toda a ideia da violência doméstica na Lei Maria da Penha; há a previsão do feminicídio, que é o homicídio em razão da condição da mulher, feminina. O grande problema é que o direito penal deve ser utilizado só em último grau, em última instância. Criar o tipo penal não resolve a situação, se você não tiver outros instrumentos de políticas públicas para ajudar o direito penal. O grande ponto é, a partir do momento que você cria um tipo penal, parece que a sociedade se acalma. É uma falácia imaginar que você criar um tipo penal que vai resolver.

Mas a Justiça está pronta para interpretar o Código Penal de forma a contemplar o que a vítima vivenciou?

Se você tipifica tudo, criminaliza tudo, tudo começa a ser e no final nada é, por incrível que isso pareça ser um contrassenso. Você tem algumas leis penais que têm essas características. E elas não conseguiram resolver. Porque no final a coisa fica esparsa, diluída. Por exemplo, o movimento LGBT, a questão de direito ambiental, a questão do racismo têm demandas e necessidade de resolver esse problema da violência que sofrem que é indiscutível. A pergunta que vem é: Será que o Direito Penal resolverá isso? Não adianta você criar um tipo penal com todas as mazelas, com todos os problemas, que vai passar pelo Congresso Nacional, que vai ter várias ingerências. Digamos que na melhor das hipóteses esse tipo penal saia perfeito. Ele vai resolver por si só o problema? Eu posso te afirmar com 99,9% de certeza que não. Se você não tiver uma sensibilização, uma conscientização da sociedade civil, do poder judiciário, promotores, operadores do direito em geral, mídia, da importância de você afastar, enfrentar, combater aquele problema, o direito penal por si só não vai resolver.

O brasileiro sabe identificar quando é vítima de assédio, não só de natureza sexual, mas entre aqueles que a senhora identificou na pesquisa?

Não. Com toda a certeza, não. Exatamente em virtude dessa característica sórdida que o assédio tem. Esse assediador não se expõe, ele joga. Até porque ele não quer testemunhas. Ele não quer sair da zona de conforto, da posição de boa pessoa, bom cidadão. Vai fazer de forma sutil. É um processo de comportamentos reiterados. Não estou dizendo que vai ser sempre assim. Mas de forma geral o assédio é contínuo. São pequenas provocações, são verbais, são gestuais, então é um olhar de desprezo, de deboche, daquele profissional que tem uma deficiência física, daquela mulher que passa e é medida de cima a baixo. Aí vão dizer: “ah, mas isso é pequeno”. Mas imagina isso todo dia por vários meses, por vários anos, numa situação em que você vai tornando aquela pessoa um nada.

E como perceber isso?

Se é uma violência física, fica mais fácil você perceber. Mas se são comportamentos reiterados, sutis, a vítima não percebe. Ponto. Quando ela finalmente começa a perceber, o processo já caminhou muito, o abalo na saúde mental, saúde física, social dela já está muito avançado. É mais demorado. O processo de assédio é feito de forma a não deixar a vítima reagir. Se ele é muito contundente, você reagiria de pronto. Mas ele vai minando as forças da vítima. Quando a vítima se dá conta, a questão de saúde dela está muito abalada. Mais importante que dar nome é falar, discutir, divulgar, conscientizar as pessoas para esse tipo de violência.

O brasileiro ou o assediador de modo geral se percebe como um agressor? É comum chamarem de “mimimi” o relato da vítima...

No caso do assediador, as modalidades de assédio são muito diversificadas. Por exemplo, no caso do assédio sexual, inserido nesse contexto de cultura machista, poderia pensar alto com você que o sujeito não vai achar que ele está assediando. Mas a partir do momento que o assediador é confrontado, pode ser o sexual, moral, imobiliário, ele vai negar. Não sei se ele se percebe fazendo, mas seja qual for o assédio, ele vai dizer ‘não assediei’. Vai colocar a culpa na vítima, negar e depois vai se fazer de vítima. No caso de assédio moral no trabalho, ele vai dizer que a vítima era insubordinada, rebelde, louca.

O que percebeu com a pesquisa sobre assédio moral, no setor público e privado?

O assédio moral no local de trabalho é mais presente na administração pública. Isso me surpreendeu. Porque a gente tem a ideia do serviço público com princípios de legalidade, moralidade, publicidade. Se você estiver na iniciativa privada, tem a disponibilidade do vínculo funcional. Se por algum motivo aquele empregado não estiver de acordo com algo, ele é demitido. Na administração pública, você tem estabilidade. Então o assédio é mais persistente, duradouro e com consequências mais danosas por causa do tempo. Ele pode ser perseguido, ser forçado a atuar de uma forma por causa de corrupção e, se ele se negar, começar a ser assediado. Não estou falando que é a regra geral. Mas na administração pública, a relação de poder está muito mais forte.

Quais as consequências do assédio para a vítima?

Ele causa problemas de ordem física, mental e social. A pessoa acaba se isolando, só falando sobre isso, os familiares não entendem o que está acontecendo com aquela pessoa. Ela começa a ficar depressiva, tem dores que não explica, fica deprimida, ansiosa. Muitas vezes a pessoa não percebe (o assédio) e a saúde dela vai ficando corroída. No caso de bullying isso é muito sério. Várias crianças tentam suicídio e se matam. Não é só um comportamento, não é mimimi.

Por que começou a estudar?

Este vídeo pode te interessar

Sou uma vítima sobrevivente de assédio. E só fui perceber depois de consequências graves, que vão nessa linha de saúde. Não entendia o que estava acontecendo, não dava o nome, não sabia o que era assédio moral. E nesse processo de cura resolvi denunciar. Mas não posso dar mais informações porque é sigiloso. Não quero que ninguém mais passe por isso. A possibilidade de você quebrar é muito grande.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais