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Apreendidos quando menores, eles refizeram as próprias vidas

Apreendidos quando menores, eles refizeram as próprias vidas

Maioria dos que entram no crime tem família desestruturada, fácil acesso a drogas e pouca assistência do Estado

Publicado em 31 de março de 2018 às 23:41

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Hoje agente socioeducacional, jovem celebra a liberdade de ver o mar. (Fernando Madeira)

Com vontade de ter as mesmas coisas que outros adolescentes, e com imaturidade inerente a sua idade, um jovem do interior vislumbrou no tráfico de drogas, há 10 anos, o caminho para o dinheiro e o sucesso. Pensou que levava uma vida fácil, até ser detido em flagrante, três anos depois, com quase 800g de cocaína, já embalados para vender, e uma arma. Hoje, aos 24, é agente socioeducacional na unidade onde cumpriu um ano e nove meses de internação.

A história do jovem, que prefere não ser identificado, se confunde com a de muitas outras crianças e adolescentes que entram em conflito com a lei. Por problemas familiares, falta de referências ou um contexto social pouco favorável, eles se envolvem em crimes e percorrem caminhos muitas vezes sem volta. Alguns, porém, buscam outro rumo para suas vidas.

DROGAS

 “Eu era um menino meio difícil naquela época. Minha família é de baixa renda, não tinha condições de dar as coisas que eu queria. Um colega me ofereceu uma quantidade de drogas para vender e eu comecei a ganhar dinheiro, comprar as coisas. Minha mãe percebeu, mas não sabia como chamar a minha atenção. É até difícil de falar, mas de certa forma ela permitiu, até porque eu já estava envolvido demais e corria risco. Então, eu fui preso em flagrante e ela viu. Foi marcante”, lembra o agente.

Ao ser internado, a história começou a mudar. Com bom comportamento observado pelos funcionários da instituição, o jovem trabalhava na serralheria e buscava sempre algo para aprender. Depois de cumprir a sentença, foi chamado para atuar no almoxarifado. “Foi uma experiência boa, a primeira como cidadão de bem, trabalhador”, conta. Em seguida, participou de um processo seletivo e foi aprovado para a função de agente.

Um adolescente de Cariacica de 17 anos também pretende refazer a sua história. Ele, que começou a praticar arrastões com apenas 6, hoje é aprendiz em uma grande empresa.

Ele diz que entrou no crime “por curiosidade”. Um irmão mais velho e outros cinco garotos faziam arrastões na região de Campo Grande e ele quis ir junto.

“A gente invadia a loja e ia metendo a mão. Celular das pessoas, o que visse pela frente. Fui me afundando e acabou que, com o passar do tempo, inventei de pegar uma arma para roubar uma loja. Eu e mais dois. Eles me abandonaram e só eu fui preso. Um ano e um mês. Tem gente que diz que passa rápido, mas parece que é para sempre. Decidi que queria ter uma vida nova”, recorda.

Para tanto, após cumprir a pena, o adolescente teve que passar um tempo no interior. Ao voltar para a Grande Vitória, mudou-se do bairro onde morava, pois corria risco de morte. Com o apoio de parceiros do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases), conseguiu uma colocação no mercado e está há sete meses trabalhando.

“Espero que o que estou contando sirva de inspiração para outras pessoas, que vejam em mim a esperança de seguir outro caminho”, ressalta o jovem.

VÍNCULOS

Uma das entidades que contribuem para a reinserção de meninos e meninas que estiveram em conflito com a lei é o Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador (Cesam).

“Apresentamos o que é o programa, a possibilidade de pensar em um projeto de vida e observamos o perfil do adolescente, vemos se tem interesse em participar. Também trabalhamos o fortalecimento dos vínculos familiares”, destaca Luciana de Souza Castilho, gerente socioeducativa e pastoral do Cesam.

O fortalecimento de vínculos e o resgate de crianças e adolescentes de regiões com maior vulnerabilidade social também é uma preocupação da Rede Aica, entidade que, entre outros trabalhos, atende jovens em liberdade assistida. Apenas na Serra, onde há parceria com a prefeitura, são 450 menores nesta condição.

“Eles recebem atendimento psicossocial e fazemos todo um trabalho para reinseri-los na sociedade. São traçados planos e metas, tais como retorno à escola, reaproximação com a família e cursos para capacitação ao mercado de trabalho”, conta Dilma Maria Ramos Zucolotto, coordenadora-geral da Rede.

Ex-interno hoje é aprendiz em uma siderúrgica: "Não valia a pena a minha vida". (Marcelo Prest)

PROBLEMAS FAMILIARES E FÁCIL ACESSO A DROGAS 

Famílias desestruturadas, baixa escolaridade e meio social que facilita o acesso às drogas. Esse é o perfil comum à maioria dos meninos e meninas que decidem entrar para o crime e, nem sempre, com chance de recuperação.

É o que aponta o psicólogo Pedro Luiz Ferro, que já atuou no Instituto de Atendimento Socioeducacional do Espírito Santo (Iases) e fez sua dissertação de mestrado sobre jovens em conflito com a lei. “A família é fraturada. Muitos não têm pai, são criados por uma mãe que trabalha 14, 16 horas diárias, isso quando não é uma avó ou irmão mais velho o responsável por essa criança. Deixam de estudar com 11, 12 anos para servir ao tráfico, que oferece dinheiro fácil.”

Outra questão que Pedro Luiz considera grave é que boa parte passa a ser assistida pelo Estado somente a partir do momento em que é apreendida. “Quando trabalhei no Iases, muitos não tinham documentos, estavam sem estudar. Até então eram criados por um meio social em que a vida é totalmente banalizada; criados na subcultura da criminalidade.”

Quem sabe bem dessa realidade é um jovem prestes a fazer 16 anos. Hoje destaque de uma empresa siderúrgica como menor aprendiz até há pouco tempo ele estava no crime.

“Nunca foi fácil crescer sem pai, não ter uma pessoa para te apoiar. Isso gerou um pouco de revolta. Com 11 anos, experimentei maconha. Brigava muito com minha mãe e, um tempo depois, fugi de casa. Entrei no tráfico e, como não estava dando dinheiro para me sustentar, parti para o roubo. Até que fui preso. O tempo que passei lá, comecei a ter várias reflexões e vi que não valia a pena a vida que estava levando. Quando saí, parecia que tinha nascido de novo. Resolvi mudar.”

Casos assim são raros. Pedro Luiz disse que a média de reinternação é grande porque “a concorrência é muito brava”. “Como explicar a um jovem que ele tem que trabalhar se os exemplos no país são horríveis? Como fazer com que entenda o que é certo e errado, se as famílias estão fraturadas e o sistema social também? Mas temos que proporcionar de verdade para esse adolescente outra perspectiva que não seja a do tráfico de drogas”, conclui o psicólogo.

O jovem Vanderson de Oliveira, 18, envolveu-se com o tráfico, mas se arrependeu. Hoje, está correndo atrás para concluir os estudos e quer fazer Direito. (Marcelo Prest)

INTERNAÇÃO NEM SEMPRE É O MAIS ADEQUADO, DIZ SECRETÁRIO

O secretário estadual de Direitos Humanos, Julio Pompeu, diz que existe uma falha no trabalho preventivo, inclusive na política federal de financiamento, que privilegia municípios com mais adolescentes apreendidos.

Isso significa dizer que recebem mais verbas federais as cidades que apresentam maior número de jovens em conflito com a lei, em vez de serem promovidas ações de prevenção à criminalidade.

Da parte do Estado, ele destaca o programa Ocupação Social que reforça ações de educação, cultura e esportes em regiões de onde mais saem menores para a internação. “Nossa proposta é oferecer oportunidades e mudar a realidade”, ressalta Julio Pompeu.

Agora, quando o menor pratica alguma infração, as pessoas logo defendem a internação, mas o secretário diz que essa é a medida mais grave e deveria ser adotada somente em casos em que a situação está fora do controle.

“A ideia seria pegar o menino que entra numa trajetória ruim e impedir que continue e, para isso, contar com alianças sociais como a família e a comunidade. Isso é muito importante”, argumenta Julio Pompeu.

“Mas esse tipo de ação tem pouco apoio social. Na cabeça da pessoas, é bandido, tem que prender. Às vezes, não é a situação mais adequada, mas a pressão é essa”, acrescenta.

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E essa condição se reflete inclusive na estrutura do Estado para atender esses menores. Como historicamente a pressão por internação é grande, investiu-se muito mais na construção de unidades. “Apostou-se no fracasso da rede, das medidas do meio aberto e da semiliberdade. Assim, essa possibilidade de criar vínculo, colocar o menino na trajetória boa, tem que acontecer no meio fechado, o que é um grande desafio”, finaliza.

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