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Conheça mulheres capixabas que têm vidas que poderiam estar num filme

Conheça mulheres capixabas que têm vidas que poderiam estar num filme

Mulheres relatam suas trajetórias de força que ajudam a transformar realidades

Publicado em 8 de março de 2018 às 01:45

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Tarja - Dia da Mulher. (Marcelo Franco)

O que é “ter uma vida que daria um filme”? É viver algo além do ordinário (comum) ou vivenciar os conflitos do dia a dia? É ter uma vida dedicada ao bem-estar do outro ou ser uma exceção tão evidente a ponto inspirar outras e abrir, assim, caminhos?

Mulheres incríveis da vida real, de diferentes perfis, relatam suas histórias neste Dia Internacional da Mulher, dia de lembrar que todas têm uma história para contar.

Quenia Nascimento Lyrio, 25, saía da sala de aula, ainda no ensino médio, quando um professor debochou: “Hoje não é 20 de novembro pra você sair assim”. Na época ela não entendeu muito bem o que significava aquilo, uma referência ao Dia Nacional da Consciência Negra, e não falou nada. O episódio não deixou nela nenhuma grande mágoa. Mas anos depois, já consciente de si e de sua história, ela sabe o simbolismo que aquela fala representava.

Glícer ajudou a fundar a Acacci, que atende gratuitamente 700 crianças e adolescentes com câncer. (Bernardo Coutinho)

Hoje empoderada pelo feminismo negro, formada em Biologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e única aluna negra do mestrado em Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela provoca: “Preta e acadêmica, sociedade fica como?”.

E explica: “Se você for olhar o histórico de mulher negra, é aquela visão da mulher trabalhando como doméstica ou sempre questionando nossa capacidade intelectual. Temos que mudar essa visão que a sociedade tem da mulher negra”. Ela completa: “Nesse mestrado, sou a única negra. Por que não a mulher negra estar no espaço acadêmico, fazendo pesquisa, participando das produções? A gente tem que ocupar os espaços que julgam não serem nossos e que foram tirados da gente”.

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Algumas coisas você não escolhe. Mas decide como lidar. Sabia a gravidade do quadro dele (do filho) e tentei de tudo

Glícer Dável, fundadora da Acacci
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A vida toda ela estudou em escola privada com bolsas de estudos associadas ou à nota ou a participações em competições esportivas. Era praticante de natação. Reconhece que apesar da ajuda da família, talvez não teria condições de passar a vida escolar numa particular.

Nesse caminho, lembra as mulheres de sua vida, as três avós – uma de consideração – e a mãe, que mantém uma pequena coleção de bonecas negras. “Minha mãe fala muito da representatividade das mulheres negras. E essas estátuas trazem muito da gente, da fortaleza das mulheres da África, dos nossos ancestrais.”

HISTÓRIA DE AMOR

A história de Glícer Dável, 58, é de dor, mas como ela própria reforça, é também de amor. Ela transformou os momentos de carinho, solidariedade e angústia ao lado do filho Vinícius em uma instituição que hoje ajuda 700 crianças e adolescentes com câncer, a Associação Capixaba Contra o Câncer Infantil (Acacci).

Quenia sempre foi apaixonada por plantas, e isso hoje se reflete na sua carreira acadêmica . (Marcelo Prest)

Vinícius foi diagnosticado com leucemia com 1 ano e 8 meses. O menino que era sempre ativo deu os primeiros sinais da doença quando, numa ida ao posto para vacinar a irmã recém-nascida, não aguentou e pediu colo. “Uma semana depois percebi manchas roxas”, lembra Glícer.

O primeiro drama foi com o médico hematologista que disse à Glícer que ela “não tinha nada para fazer e que estava procurando problema”. Apesar da fala machista, antes ele estivesse certo. Ao ir ao oncologista, a doença, da qual ela nunca nem tinha ouvido falar, foi diagnosticada.

Vinícius foi tratado da leucemia no Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, que na época já era o centro de referência para oncologia infantojuvenil. Mas encerrava em si problemas que até hoje ainda assombram crianças em tratamento e pais obviamente preocupados.

“Quando meu filho ficou doente, as condições eram precaríssimas. Eu ia e voltava de São Paulo. E lá tinha um serviço de voluntariado. Era um trabalho bem eficaz, bem diferente daqui. Lá, enquanto aguardava a químio, alguns voluntários faziam trabalho recreativo com as crianças. Te ajuda a passar o tempo”, lembra Glícer.

A angústia a uniu a outros pais. “A gente percebeu que a única forma de mudar era buscar melhorias no ambiente hospitalar. É uma forma de você minimizar a dor. Todas essas condições precárias que a gente vivia, com espaço compartilhado, alguns exames super dolorosos...”

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Temos que mudar a visão que a sociedade tem da mulher negra; nesse mestrado, sou a única. Temos que ocupar os espaços”

Quenia Lyrio, mestranda
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A filha recém-nascida de Glícer, a Maria Clara, acompanhava o tratamento do irmão. Quando não a podia levar, amigos a ajudavam. Sem contar o auxílio dos desconhecidos em São Paulo. “Continuar na Acacci era uma forma de retribuir.”

Vinícius morreu dois anos depois do início do tratamento. Um mês depois da fundação da Acacci, em março de 1988. “As pessoas perguntam como superei. Não sei o que cada um entende dessa palavra. Eu lido com a ausência física dele. Alguns dias são mais intensos. Para mim ele está sempre comigo. Ele foi para um outro lado do caminho. E de alguma forma estamos juntos.”

Bondade

A lembrança da bondade da avó faz hoje a assessora Patrícia Neitzl, 38, manter a tradição familiar focada na solidariedade. Ela ajuda 350 crianças no Projeto Pequeninos do Morro, que apoia crianças de Caratoíra, Alagoanos, Cabral e Grande Santo Antônio, em Vitória.

“Minha avó botava mãe solteira dentro de casa; se tinha alguém sem lugar para ficar, ela botava na casa dela. Cresci vendo ela fazer bondade.”

O jeito dela de manter o legado foi focando na ajuda a crianças. “Há 14 anos, fomos morar no Morro dos Alagoanos. Via crianças abandonadas, juntava grupos para fazer interação. Aí criamos o projeto.”

O Pequeninos do Morro promove eventos para crianças, encaminha mães e pais para o mercado de trabalho, distribui cestas básicas. O contato com as empresas é ela mesma quem faz.

E como mantém isso tudo? Com doações. “Algumas empresas também ajudavam, mas veio a crise e a primeira coisa que cortaram foi isso”, lamenta. E o que ela faz? Sai ligando para tudo quanto é amigo e conhecido pedindo ajuda. Mas quando nem isso é suficiente, é do próprio salário que ela tira para bancar o projeto.

“Ainda não tenho a sensação de dever cumprido. A gente já perdeu várias crianças para o tráfico. Mas a gente já ganhou várias também. Vale a pena.”

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Por fim, chegamos até aqui sem saber muito bem o que seria ter uma vida de filme. Mas com a certeza de que todas (e todos) têm uma história a ser contada.

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