> >
Seis mulheres pedem socorro todos os dias na Grande Vitória

Seis mulheres pedem socorro todos os dias na Grande Vitória

A violência contra a mulher é um grave problema capixaba; 2.179 medidas protetivas foram solicitadas, só em 2017, na Grande Vitória

Publicado em 9 de março de 2018 às 10:21

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
-.

Seis mulheres pedem socorro por dia contra a violência doméstica ou de gênero praticada, principalmente, por ex ou atuais companheiros, na Grande Vitória. Em 2017, foram solicitadas à Justiça 2.179 medidas protetivas, segundo a Secretaria de Estado de Segurança Pública.

A medida protetiva é uma das garantias de proteção previstas na Lei Maria da Penha, de 2006. O dado por si só já é assombroso. Mas é ainda mais dramático quando profissionais que trabalham com vítimas da violência reconhecem que as agressões físicas e psicológicas denunciadas pelas mulheres nas delegacias são etapas que precedem todos os casos de feminicídio.

Feminicídio é o assassinato de mulheres dentro de um contexto de desigualdade de gênero, que pode ocorrer num ambiente de violência doméstica e familiar ou situação de menosprezo ou discriminação à condição de mulher, como descreve o Código Penal desde 9 de março de 2015, quando foi sancionada a Lei do Feminicídio, nº 13.104, há três anos.

Essa lei alterou o artigo 121 do Código Penal para incluir o feminicídio como uma circunstância qualificadora do crime de homicídio. Assim, entrou na lista de crimes hediondos.

Em 2018, 20 mulheres foram assassinadas no Estado, segundo levantamento do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Nevid), do Ministério Público. Nem todos esses assassinatos são feminicídios. Isso só será classificado após a denúncia do MPES.

Ano passado, houve 42 feminicídios no Estado. Em 2016, 35, segundo a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp). O Espírito Santo tem a maior taxa de feminicídio do Sudeste e a terceira maior do país, como mostrou levantamento feito pelo G1. Por aqui, a taxa é de duas mortes a cada 100 mil mulheres, quatro vezes maior que a taxa do país.

A promotora Cláudia Garcia, coordenadora do Nevid, diz que as vítimas são geralmente jovens, de 28 aos 48 anos. Crê que muitas estão se informando e se empoderando. “E é quando tenta romper com esse relacionamento, é morta. E tem a questão do machismo, de posse, de não aceitar perder aquela mulher.”

DENÚNCIA

A juíza Hermínia Azoury, da 9ª Vara Criminal de Vila Velha, ressalta a influência da Lei do Feminicídio no incentivo a denúncias. “A lei trouxe para as vítimas a sensação de que vale a pena lutar, de que realmente vai ser punido. Às vezes, muitas vítimas acham que não vale a pena lutar. Tem que denunciar. Sem denúncia, não tem processo, ação penal, condenação. Silêncio é sinônimo de fatalidade.”

"ELE ME FEZ CRER QUE EU MERECIA APANHAR"

Sair de casa olhando para todos os lados. Sentir medo a cada ligação. Tremer ao ouvir o motor de um veículo. Ver diariamente as marcas da violência no corpo. Essa é a rotina de uma atendente, de 31 anos, de Vila Velha, que desde 2011 enfrenta violência física e psicológica do, agora, ex-marido, um técnico de celular, 37. Ele já foi preso duas vezes, mas insiste em desobedecer a ordem de distância exigida pela Medida Protetiva da Lei Maria da Penha.

Assim como qualquer namoro, o início da relação teve bons momentos. O técnico de celular se mostrou culto, agradável e de boa família. E mesmo dando sinais de ciúmes, ele justificava que aquilo era “uma prova de amor”, já que a namorada era “muito bonita”.

“Nos conhecemos em 2010 e, após um ano, fomos morar juntos. Ele me fez acreditar que ciúme era normal. Até começar ser agressivo. Mas quando a violência física iniciou, ele já tinha destruído meu psicológico ao ponto de eu achar que merecia aquilo” lembra.

SEM EMPREGO

A vítima conta que tinha três filhos de outra relação e não conseguia emprego porque o agressor sempre dava um jeito de tirá-la dos trabalhos. Ao pedir ajuda à familiares, ela ouviu que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Ao procurar a polícia, ela ouviu que aquilo era “safadeza”. Já os amigos, se afastaram.

Mesmo desmotivada, ela denunciou as agressões em 2011, o que gerou um processo que só teve condenação em 2016. Nesse período, ela não conseguiu sair de casa. Dependente financeiramente do acusado, passou cinco anos sendo torturada.

“Ele inventava regras e eu tinha que obedecer como um cachorro, ou apanhava. Aí mudava as regras e eu apanhava sem entender. Nas torturas, me obrigava a beber água e depois chutava minha barriga até eu vomitar. Já me queimou com água quente, tentou me atropelar... Eu me sentia um lixo. Ele dizia que ninguém iria me querer e eu já não pedia ajuda, por vergonha. Aí virava o melhor homem, como se nada tivesse acontecido. Era um ciclo. Nessas reviravoltas, engravidei. Mesmo grávida, apanhei”.

Em 2016, o acusado foi condenado e ficou seis meses preso. Ao sair, voltou a perseguir a vítima. Ela denunciou o descumprimento da Medida Protetiva e, em agosto de 2017, ele voltou para a cadeia, onde ficou até dezembro. Desde então, a atendente não tem paz.

“Denunciei novamente. Mas, até quando isso vai durar? Ele é sociopata. A sociedade só julga. A justiça não funciona. Só posso lutar pela minha vida e me esforçar para criar meus filhos longe do machismo, respeitando as mulheres. É isso que falta”.

ANÁLISE: "ESSA VIOLÊNCIA SEMPRE ACONTECEU"

Ainda temos que persistir na conscientização das vítimas sobre a violência que elas sofrem dentro de casa. Tentar melhorar essa cultura patriarcal. As coisas melhoraram. Depois da Lei Maria da Penha, isso melhorou muito. Essa violência sempre aconteceu, mas antes era considerado algo banal, que sempre ocorria e que ninguém devia falar nada. Sobre o feminicídio, ainda falta falar muito sobre feminicídio. O nome é muito novo (é de 9 de março de 2015). É um conceito complicado de entender. Ainda tem que se explicar muito o assunto, conscientizar as pessoas.

Maria Aparecida Rasseli Sfalsini Titular da Delegacia da Mulher de Vila Velha

OPINIÃO DA GAZETA: UM MARCO NO COMBATE À VIOLÊNCIA

A Lei do Feminicídio foi uma vitória no combate à violência contra a mulher. Marcou o reconhecimento da existência de crimes motivados pela condição de gênero. Nem todos ainda conseguem compreender a distinção, mas a legislação tem conseguido expor como nunca antes a gravidade da situação feminina: mulheres continuam morrendo em consequência da cultura machista. Ainda há um caminho longo a ser percorrido para a aplicação efetiva da lei, mas não há como negar os avanços desses três anos na conscientização da sociedade. Principalmente para as mulheres, cada vez com mais coragem de denunciar seus agressores.

CICLO DE VIOLÊNCIA PRECISA SER ROMPIDO

-.

Se há uma certeza sobre a vida das mulheres vítimas de feminicídio é a de que, antes da maior das violências, elas sofreram muito na mão dos seus agressores, num ciclo que começou numa afronta verbal até chegar ao crime hediondo.

“A violência contra a mulher não começa com a parte mais agressiva, que é a fatalidade. Ela começa com agressão psicológica, muitas vezes na família, decorrente dessa cultura patriarcal que a gente tem, e passa pela agressão física”, afirma Gracimeri Gaviorno, subsecretária de Integração Institucional da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), em entrevista à Rádio CBN Vitória.

A promotora Cláudia Garcia faz a mesma avaliação. “Precisamos romper esse ciclo. A violência contra a mulher é fruto de um machismo, um patriarcado que submete a mulher à dominação ao homem. A nossa sociedade tem que atuar desconstruindo essa forma naturalizada que os homens criados no patriarcado consideram isso normal.”

Ela destaca que “a violência contra a mulher é milenar”. “A partir da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher passar a ser de responsabilidade do Estado. Então esses números começam a aparecer.”

TRABALHO

Gracimeri Gaviorno aponta ainda outro tipo de violência que dificulta a reação da mulher. “Há uma outra agressão invisível aí, também, que é a agressão patrimonial, não só na relação com o seu companheiro, mas no mercado de trabalho. Quando vão ser entrevistadas, já se pergunta a elas se vão ter filhos, se pretende engravidar. Isso prejudica muito a questão da autonomia da mulher.”

É por isso também que ela reforça que, para interromper esse ciclo de violência, é preciso ter uma abordagem e enfrentamento multidisciplinares. “É a partir desses tratamentos multidisciplinares que a mulher se sente encorajada, não apenas para denunciar o seu agressor.”

REDE GAZETA CRIA CAMPANHA E SITE ESPECIAL

O dia 8 de março acabou, mas para a Rede Gazeta a luta pela garantia dos direitos das mulheres está apenas começando. A partir de hoje, o grupo inicia uma campanha publicitária que engloba a produção de matérias jornalísticas, debates, seminários e outras iniciativas com um mesmo objetivo: a redução dos índices de violência contra a mulher no Estado.

Para marcar o início da campanha, que se estenderá por todo o ano, autoridades e especialistas se encontrarão hoje, na sede da Rede, em Vitória, para a realização do seminário “Pelo fim da violência contra as mulheres”. O evento acontece a partir das 14 horas e já está com inscrições esgotadas. Entre as convidadas, estão a promotora de Justiça Cláudia Garcia, a vice-reitora da Ufes, Ethel Maciel e a juíza Hermínia Silveira Azoury.

Além de um selo específico criado para a campanha, a diretora de Transformação da Rede Gazeta, Leticia Lindenberg, destaca que um novo site foi criado dentro do Gazeta Online para oferecer às mulheres informações sobre os tipos de violência e os canais de denúncia. O site pode ser acessado no endereço: www.gazetaonline.com.br/quebreociclo.

Segundo Leticia, a campanha se divide em três etapas: a primeira trata de um alerta para os sinais de que a violência poderá acontecer, enquanto a segunda mostra como ela se desenvolve dentro de um relacionamento abusivo. Já a terceira buscará abrir o diálogo com a sociedade, para que todos sejam capazes de denunciar os crimes. Com o apoio do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, ações também serão feitas diretamente nos bairros, prestando auxílio jurídico e psicológico, entre outros. “Para além da informação, a responsabilidade social é a essência do nosso negócio”, pontua a diretora.

Este vídeo pode te interessar

 

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais