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'O feminismo não quer fazer as mulheres odiarem os homens'

"O feminismo não quer fazer as mulheres odiarem os homens"

Filósofa e militante, Djamila Ribeiro acaba de lançar "Quem Tem Medo do Feminismo Negro?", livro que reúne memórias da sua infância e adolescência para discutir questões como o machismo e o racismo

Publicado em 30 de junho de 2018 às 23:21

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Djamila Ribeiro. (Christian Parente/Reprodução/Facebook Djamila Ribeiro)

“A vontade de ser aceita nesse mundo de padrões eurocêntricos é tanta que você literalmente se machuca para não ser a neguinha do cabelo duro que ninguém quer.” O trecho narrado por Djamila Ribeiro em seu mais novo livro, “Quem Tem Medo do Feminismo Negro?”, vem logo depois da história do sofrimento pelo qual passava entre a infância e a adolescência, quando sua mãe esquentava o pente de ferro na boca do fogão até ficar pelando para passar nos fios do cabelo. Nem de perto é a única opressão sofrida pelas mulheres negras, que lidam com o machismo e o racismo.

Nascida em Santos, no litoral paulista, a mestra em Filosofia Política e ativista pela igualdade de gênero decidiu utilizar a própria história para fazer a defesa do recorte de raça dentro do movimento feminista na publicação recém-lançada. Não se trata de uma disputa: a filósofa de 37 anos lembra que a distinção é necessária, uma vez que as negras são ainda mais enfraquecidas na sociedade.

Apesar de Djamila ter crescido em um lar politizado, a virada de sua vida se deu no final da adolescência, quando trabalhou na ONG santista Casa de Cultura da Mulher Negra, onde descobriu a uma produção intelectual a perder de vista. “Foi quando entendi que a luta só podia fazer sentido se fosse antirracista, antimachista e anti-opressões de classe. É isso que as feministas negras propõem”, diz.

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Se você é contra a violência contra as mulheres, se você é contra o fato de uma mulher ser violentada apenas por ser mulher, não tem por que você não ser feminista. A gente está lutando pela igualdade de direitos

Djamila Ribeiro, militante feminista
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Em entrevista, Djamila fala sobre seu trabalho, sobre as dificuldades de falar sobre o feminismo e sobre os tempos atuais para a militância.

Qual a importância de colocar a sua história nessa publicação para chegar a esse ponto de defesa do feminismo negro?

Ah, isso foi um pedido do editor. Ele achava interessante poder também falar de mim, já que não tenho tanto o hábito de falar de mim, e as pessoas constroem imagens sobre você. Isso faz parte também de uma tradição de pensamento, Foucault fez isso. Mas também faz parte de uma tradição das mulheres negras. A gente entende que o pessoal é político e que falar de si também é falar de outras. Acho que foi um desafio falar de mim, mas hoje percebo, com as respostas sobre o livro, o quanto as pessoas se identificam. É uma forma de me humanizar. Me colocar desta forma foi uma construção.

Como ativista, qual a maior dificuldade em propagar o feminismo para quem não o conhece?

A maior dificuldade de falar sobre o feminismo é fazer as pessoas entenderem que é um movimento social. Tem muita gente que acha que é um “movimento feminino” e só. É um movimento social, nós estamos pautando a equidade de gênero, pautando para que as relações de gênero e raciais não sejam desiguais. Eu acho que tem muita falta de entendimento sobre o que é, e as pessoas já chegam com um preconceito, por tantas coisas que inventaram sobre os feminismos. Eu digo no plural sempre, porque as feministas têm várias perspectivas diferentes, mas no que a gente concorda é isso: queremos uma sociedade mais justa, e que o gênero não seja usado como forma de opressão. Eu penso que a dificuldade muitas vezes é essa: as pessoas já chegam muito com visões deturpadas e muitas vezes não se colocam pra escutar o que a gente está falando, já reprimem sem se permitir entender o que de fato a gente está propondo.

Muito se fala hoje em dia sobre o “ativismo de sofá”, mas qual o papel das redes sociais nessa militância atual?

Eu acho muito importante. Claro que nem todas as militâncias são feitas na internet. Eu acho que há casos e casos. Mas de uma maneira geral, eu acho muito importante como hoje as redes sociais contribuíram para que mais pessoas soubessem o que é isso, para que o debate sobre o feminismo chegasse a ser um debate público. Hoje vemos várias páginas e sites... Além disso, como a movimentação está acontecendo pelas redes sociais, hoje é possível pautar a mídia hegemônica. Acho que é importante multiplicar, fazer com que uma menina do Acre consiga dialogar com uma menina que está no Sul do país. Também é possível criar redes interessantes, que nos ajudam inclusive a nos organizar. Você cria um evento de um ato em um dia, no outro tem milhares de pessoas nas ruas. A própria Primavera Feminista teve esse perfil. Então acho que nisso de aglutinar e de espalhar, as redes tiveram um papel fundamental.

E como fazer o feminismo chegar a vários públicos? Como encara quem reduz o movimento a “mimimi”?

Eu não dialogo com pessoas que destilam ódio, isso é até uma autodefesa para nós. Mas entendo que tem muita gente que reproduz isso porque ignora mesmo. É ignorante no sentido de ignorar mesmo o assunto. Então acho importante a linguagem. É até uma marca do meu ativismo, a gente conseguir conversar com as pessoas sem “filosofês” ou sem “academiquês”, para que entendam o que estamos falando. A linguagem, como a gente acessa essas pessoas, é o primeiro ponto. O segundo é de mostrar os dados, as estatísticas de que o Brasil é um dos países mais violentos para mulheres. A cada cinco minutos uma mulher é agredida, a cada onze minutos uma mulher é estuprada no Brasil. Então se você é contra a violência contra as mulheres, se você é contra o fato de uma mulher ser violentada apenas por ser mulher, se você é contra mulheres ganharem menos do que homens, não tem por que você não ser feminista. É disso que a gente está falando. O movimento feminista não está querendo fazer as mulheres odiarem os homens ou fazer mulheres serem melhores que homens. A gente está lutando pela igualdade de direitos. Não é para ser maior ou menor, é para que essas desigualdades deixem de existir.

Na próxima temporada você passa a integrar de vez a bancada do “Amor & Sexo”, apresentado por Fernanda Lima na TV Globo...

Sim, eu acho importante ocupar esses espaços, sobretudo no contexto brasileiro. A gente não tem uma mídia democrática, então é uma forma de comunicar as pessoas. Acho que o programa da Fernanda vem há várias temporadas com um papel muito importante de levar temas à TV aberta para fazer as pessoas refletirem criticamente sobre. A mídia ainda tem um poder muito grande de fazer as pessoas refletirem. Poder participar disso para mim é uma maneira de amplificar a nossa voz e de fazer esses temas chegarem às pessoas, no Brasil profundo. A gente vive em um país em que metade das pessoas não têm acesso à internet. Fazer isso chegar às pessoas, para mim, é também uma tarefa política.

E qual o papel do homem no feminismo, sob o seu ponto de vista?

Acho que é estudar sobre, ler sobre o que as mulheres estão falando, entender qual é o seu papel como homem na sociedade. Entender que o homem foi educado para não se sentir parte das tarefas domésticas, que apenas pelo fato de ser homem ele ganha mais. Muitas vezes os homens querem ser feministas mas não entendem o que isso significa. Então, na prática, se é pai, contribui para a criação dos filhos. Se for separado, pague a pensão. Se for empregador, empregue mulheres e pague salários iguais. Se for professor, coloque esse tema dentro da sala de aula. Primeiro isso passa pela leitura e pelo entendimento dessa produção das mulheres. Precisam entender como podem contribuir para essa luta na prática, e eles podem contribuir através desses vários exemplos que acabei de dar.

Falando da luta antirracista no Brasil, como avalia o momento atual?

Acho que de uns anos para cá tivemos alguns avanços, sem dúvida, como ações afirmativas nas universidades e alguns programas importantes que são reivindicações históricas do movimento negro. Mas eu acho que a gente precisa avançar muito ainda. O debate principal do Brasil hoje é a violência contra jovens negros e infelizmente esse debate ainda não é enfrentado, mesmo nos campos progressistas. Não existe debate mais urgente do que esse. Nesse sentido, por mais que tenhamos avançado em alguns aspectos, como na inclusão na universidade e em vários setores, ainda perdemos muito no debate da segurança pública. Eu acho que a questão racial acaba sendo o foco na questão da segurança pública... como as favelas são criminalizadas e como os jovens negros morrem todos os dias no Brasil sem que as pessoas se comovam com isso.

E como acha que as questões de gênero e raça devem ser encaradas na corrida eleitoral deste ano?

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Eu acho que é importante a gente estar atento, porque muitos candidatos se utilizam das pautas de maneira politiqueira, e não de maneira compromissada. Eu acho importante as pessoas conhecerem os programas de governo dos candidatos, para entender de fato se esses temas são prioridade dentro dos seu programa, ou se é algo para banalizar, apenas usando empoderamento ou o debate feminista para angariar voto. Acho importante também perceber das próprias mulheres que vão se candidatar e que hoje querem surfar nessa onda do feminismo, que na verdade é um movimento que vem sendo construído historicamente. Querem surfar nessa onda para ganhar voto. Não é por ser mulher e se dizer feminista que a gente não tem que investigar e saber de fato qual o compromisso daquela mulher. Não basta ser mulher, existem muitas mulheres ligadas a pautas reacionárias e contra os nossos interesses. Acho que é isso: pesquisar e entender, de fato, quais os programas e quais os compromissos de cada candidato ou candidata nessa questão, para não se tornar mais um elemento de troca ou algo meramente eleitoreiro.

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