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'Estar conectado oferece a ilusão de estar em grupo', diz psicanalista

"Estar conectado oferece a ilusão de estar em grupo", diz psicanalista

A psicanalista Sandra Niskier Flanzer estará em Vitória nesta terça-feira para uma palestra sobre Relacionamentos na Modernidade, no auditório da Rede Gazeta; ela vai falar sobre o impacto das redes sociais no comportamento

Publicado em 14 de julho de 2018 às 22:30

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Sandra Niskier Flanzer, psicanalista. (Divulgação)

Nos últimos anos, o cotidiano ganhou um novo ritmo. O número de atividades aumentou, e as redes sociais mudaram a forma de interação entre as pessoas. Esses e outros fatores que interferem nos relacionamentos na modernidade serão tratados pela psicanalista Sandra Niskier Flanzer na próxima edição do Encontros do Saber, nesta terça-feira, às 9 horas, no auditório da Rede Gazeta. O evento é uma parceria entre a Rede e a Casa do Saber Rio e será apresentado pela Revista.AG, que acaba de completar 10 anos.

Com 27 anos de experiência clínica, Sandra é doutora em Teoria Psicanalítica, professora e escritora. Para ela, a tecnologia não só impacta os relacionamentos como, muitas vezes, os conduz. Se por um lado, hoje é possível ter contato instantâneo com pessoas a quilômetros de distância a um toque no celular, por outro, há o desafio de manter os relacionamentos fortes a longo prazo. Confira a entrevista:

Hoje as pessoas estão mais conectadas. Isso significa que estão menos solitárias?

Não necessariamente. É verdade que, num primeiro momento, a tecnologia oferece mais possibilidades para sujeitos solitários estarem em contato com outras pessoas. Só que isso oferece uma ilusão de estar em grupo, com vínculos e laços afetivos mais estreitos. Por exemplo, se a pessoa tem uma filha que mora em outro país, a tecnologia vai oferecer mais proximidade do que quando as pessoas precisavam trocar cartas para se comunicar. Por outro lado, a gente percebe que as pessoas foram se isolando cada vez mais. Por exemplo, é muito comum assistir em uma festa de adolescentes, eles trocarem o contato físico, a comunicação olho a olho, por se unirem em torno do fato de todos estarem olhando o celular. A nova tecnologia também afasta, não necessariamente aproxima. Substitui, em muitas ocasiões, o contato fundamental para qualquer relação humana.

Todas as pessoas reagem da mesma forma à tecnologia?

Existem muitas pessoas que passaram 20 anos da vida adulta sem conseguir ter muitos amigos, sem ser capaz de emitir opinião. Pessoas tímidas e sem vida social. Essas ganharam a vida na rede. São pessoas que postam de tudo, como “bom dia”, “tomei de café da manhã”, etc... Por outro lado, há pessoas extrovertidas, falantes, eloquentes que encontraram uma dificuldade enorme de se relacionar nas redes sociais. Isso não obedece necessariamente ao mesmo padrão.

Ainda há uma busca por encontrar alguém, mesmo com as relações modificadas com a tecnologia?

Claro que sim. O casamento se tornou mais efêmero com o passar dos anos e com a relação cada vez mais fugaz que a gente estabelece com os objetos, mas o sujeito continua como sempre esteve, buscando sua metade complementar.

De que forma as redes sociais mudaram as relações afetivas?

Outra mudança, talvez não tão presente entre pessoas com 40 anos de idade ou mais, mas evidente nas gerações de jovens adultos, é que muitas relações começam e terminam através de uma mensagem de celular ou pelas redes sociais.

As relações estão mais instáveis?

A dúvida sobre a durabilidade de todo relacionamento sempre esteve presente. O que mudou é que há uma pressa cotidiana que implica na obrigação de se fazer 20 vezes mais atividades do que se fazia há algumas décadas. E há também uma mudança na relação que a gente estabelece com os objetos. É como se tudo fosse feito para durar menos hoje em dia. Escuto muito de técnicos que consertam ar condicionado, por exemplo, que não tem sentido reparar o produto, vale mais a pena trocar por um novo. O comportamento do sujeito acompanha essa característica da indústria. Ao primeiro sinal de problema, troca-se de par e de amizade.

Uma frase que tem sido debatida é que “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”, afirmação do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Concorda com ele?

Eu concordo. É o que a gente percebe de mais evidente em termos de mudança na forma como as pessoas se buscam hoje em dia. A liquidez remete muito ao que eu dizia sobre os eletrodomésticos, que obedecem a uma lógica de mercado capitalista e que foi contaminando a lógica dos relacionamentos humanos. É a ideia da liquidez, de que as coisas não são duráveis e ao primeiro sinal de defeito, é melhor trocar. Como se a gente fosse encontrar na próxima esquina a perfeição. Como se a gente não pudesse suportar que a imperfeição – e o atravessamento da imperfeição – é o que pode talvez nos levar a encontrar alguma coisa no outro mais real e mais próxima. A aceleração do cotidiano contribui muito para menor durabilidade dos relacionamentos. Um cotidiano hiperativo, com um sujeito frenético, buscando fazer muito mais atividades do que seu tempo cronológico comportaria, tem grande influencia sobre a sensação de que os relacionamentos estão durando menos.

No mundo virtual tudo parece ser perfeito. As pessoas também buscam a perfeição constante na vida real?

Hoje, para ser real, primeiro é preciso ser virtual. Uma inversão total. Para os adolescentes principalmente, enquanto não estiver publicado nas redes sociais – seja o namoro, a festa de aniversário, uma conquista pessoal ou uma viagem – aquilo não existiu como real. Esses adolescentes que vão estar à frente do mercado de trabalho daqui a 10, 20 anos, e serão forjados com essa inversão dos fatos. Por exemplo, as pessoas não assistem a um show de música olhando para o palco e para o cantor, assistem pela tela do celular. Isso poderia ser feito do sofá da sala. Existe alguma coisa estranha acontecendo na cultura nesse sentido, que tira um pouco a dimensão do real. E o que essa ideia de perfeição da imagem traz de aprisionamento? O sujeito não deixa de estar preso à tela, numa dimensão imaginária de culto à imagem. Isso é, para Freud, nada menos que a dimensão narcísica, que é preciso abrir mão para estar com o outro.

Os aplicativos que promovem o encontro de casais estão cada vez mais comuns. O que podemos esperar desses relacionamentos?

Esses encontros que se dão por cliques são capciosos, porque é claro que ninguém alcança intimidade através desse tipo de avaliação recebida superficialmente. As relações precisam ser de uma intimidade que só pode ser conquistada quando cai a imagem que a pessoa gostaria de apresentar para o outro. Os relacionamentos que mais valem são aqueles que contam com o que o sujeito tem de pior, não uma imagem maravilhosa refletida num espelho ou numa tela. É preciso ir além da superficialidade da imagem de um primeiro encontro. Ninguém é perfeito e não há a metade exata, perdida, da laranja.

Nas redes sociais há uma polarização, entre pessoas com opiniões semelhantes. Como isso interfere nas relações reais?

Buscar no outro aquilo que me falta sempre foi a premissa para qualquer relacionamento. Estranho pensar que hoje as pessoas toleram cada vez menos o fato de que é no outro, nessa diferença, que vou encontrar alguma alegria e complementariedade. E isso é a premissa de qualquer busca. A busca por um trabalho, uma viagem, um novo empreendimento. Qualquer que seja a busca está fundamentada no fato de que isso é diferente de mim. Porque não sou completo, eu vou buscar. É estranho pensar que hoje as pessoas se fecham cada vez mais no igual. É claro que é preciso bloquear nas redes sociais alguém que te ofende pela sua opinião. Mas o que vemos é o reflexo refletindo outro reflexo. É um jogo de espelhos narcísicos. É uma massificação de toda afirmação. Tanto se prega que se tenha uma sociedade mais justa, mas tudo o que vemos se acentuar é uma intolerância quanto às desigualdades. Isso faz com que o sujeito se torne cada vez mais preso a uma bolha. A polarização tem relação com a nossa incapacidade de suportar a diferença.

Em relação ao comportamento, estamos presenciando relações que claramente envolvem transtornos de personalidade e culminam em crimes. A sociedade está ficando mais doente?

A sociedade adoeceu. A tecnologia cria a ilusão de que 15 minutos de fama é o grande objetivo a ser conquistado. O sujeito vai se massificando, se tornando um grão de areia na multidão, e surge a sensação de que ele precisa aparecer de alguma forma. É o que ocorre, muitas vezes, quando alguém comete um crime, sabendo que vai ser televisionado. Isso dá a noção do quanto a sociedade adoeceu nesses moldes. E não se percebe nenhuma diminuição da angústia com os avanços científicos, médicos ou tecnológicos. A vida tornou-se mais longa, mas nem por isso mais feliz. O que a gente vê é um florescimento da angústia, da insatisfação, da inquietude, da irritabilidade, da ansiedade, da falta de lugar, do desassossego.

Como manter relações saudáveis na atualidade? Existe caminho seguro?

É difícil conter todo esse movimento que parece ser irreversível e avança em progressão geométrica. Para a Psicanálise, sempre haverá humanidade onde houver imperfeição. A humanidade está salva enquanto houver alguém cuja imagem não corresponde completamente àquilo que o desejo impõe. É preciso suportar que há diferença e que ela é o que nos move. O desejo é movimento, só surge onde há alguma diferença, e não por uma imagem perfeita no espelho. A angústia é sinal da imperfeição. Enquanto houver isso e não for tapado de todas as formas, haverá mundo.

ENCONTROS DO SABER

Data: Terça-feira, às 9 horas

Local: Auditório da Rede Gazeta, na Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória

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Local: gazetaonline.com.br/encontrosdosaber

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