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Grilagem: diálogos mostram negociação de grupo para roubo de terras

Grilagem: diálogos mostram negociação de grupo para roubo de terras

O grupo investigado conta com a participação de militares (incluindo coronéis, capitães e membro de força especial da Polícia Militar), corretores, lobistas e advogados

Publicado em 26 de agosto de 2018 às 21:31

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Vista de Vila Velha: investigação mostrou esquema de fraudes para tomar terrenos e imóveis do município. (Ricardo Medeiros)

“O dinheiro foi reajustado, não foi?”, diz um articulador. “Sim. Está em R$ 3,8 bilhões”, responde um membro do grupo. “Então, o nosso vai dobrar também. O meu é R$ 180 milhões”, destaca o articulador. O diálogo faz parte de negociações realizadas por uma organização criminosa investigada por grilagem – roubo de terra com documento falso – em Vila Velha. Revela um dos momentos em que tratavam da partilha de uma indenização bilionária que esperavam receber do Estado.

As investigações, iniciadas em 2015, são conduzidas pelo Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco Central) do Ministério Público, como divulgou o Gazeta Online com exclusividade neste domingo (26), após ter acesso a documentos do processo.

INTERCEPTAÇÃO

Os vários diálogos foram captados por intermédio de interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça estadual (leia alguns diálogos abaixo). Mostram as negociações feitas entre os quase 20 membros do grupo, que conta com a participação de militares (incluindo coronéis, capitães e membro de força especial da Polícia Militar), corretores, lobistas e advogados.

Recebem ainda apoio de servidores da Assembleia, do Estado e até de membros aposentados do Judiciário. Atuam de forma a influenciar juízes e desembargadores a concederem decisões a eles favoráveis, garantindo direitos de propriedade que não possuem sobre imóveis que pertencem a outros.

Aspas de citação

Ele (membro do judiciário aposentado) já conversou com o peixão lá. Ele vai dar o despacho do acordo

Articulador do esquema
Aspas de citação

Na última semana, promotores realizaram a Operação Corpus, cumprindo 11 mandados de busca e apreensão na casa dos investigados. Além dos documentos, a equipe já conta com um conjunto de interceptações telefônicas.

São diálogos, destaca o Gaeco em sua manifestação à Justiça, que revelam “a faceta mais deplorável do rol de atos corruptivos dos investigados, e representam um atentado ao buscarem subjugar um Poder aos interesses ilícitos de um grupo.”

As conversas dão detalhes das negociações para obter as propriedades alheias, por intermédio de fraudes e documentos falsificados, ou até por meio de ameaças e invasões. Imóveis que vão ser vendidos de forma clandestina. “Pintou uma situação boa para nós”, diz um capitão. “Para a gente ganhar, né?”, responde um dos articuladores do grupo, ambos tratando da negociação de vendas de lotes obtidos de forma fraudulenta.

O ponto alto são as conversas sobre as ações do grupo para obter indenização bilionária do Estado. Membros do grupo haviam ingressado em um processo da Superintendência de Projetos de Polarização Industrial (Suppin), relativo a reintegração de posse de uma área que a ela pertence nas margens da Rodovia Darly Santos, em Vila Velha, e por eles avaliada em R$ 3,8 bilhões. A Procuradoria-Geral do Estado (PGE) representa a autarquia na Justiça.

A conversa mostra as tentativas de influenciar magistrados e desembargadores a garantirem decisões judiciais a eles favoráveis. O articulador do grupo fala sobre negociações feitas com um membro do Judiciário aposentado. “Acabei de conversar com X., e lá na PGE a coisa tá boa para o nosso lado.” Um dos coronéis se manifesta: “É?”. O articulador complementa: “Ele já conversou com o peixão lá. Ele vai dar o despacho do acordo”.

Aspas de citação

Ou cumpre o acordo ou não cumpre. Se não cumprir vai ficar todo mundo chupando dedo

Advogado envolvido no esquema
Aspas de citação

Em outra conversa, entre um coronel e um advogado, eles tratam do acordo entre os membros do grupo para partilhar a suposta indenização que receberiam. Um dos coronéis diz: “Quarta-feira é a reunião que vai fechar tudo, aí você explica a situação. Se não assinar não tem nada”. O advogado diz: “Se não assinar ninguém leva nada. Ou cumpre o acordo ou não. Se não cumprir vai ficar todo mundo chupando dedo”.

LARANJAS

Em outra conversa, um dos capitães tenta obter pessoas de confiança para serem laranjas do grupo. Em geral são familiares ou amigos, em cujo nome são transferidas as propriedades obtidas de forma fraudulenta.

Num dos diálogos é relatado: “Deixa eu te falar, rapaz, não conhece mais ninguém para botar naquele? Eu tô lá ainda com dez terreninhos para botar na fita, mas na sua já botei quatro. Tem que ser um cara bom igual a nós.” O amigo responde: “Tem que ser gente boa.” E o capitão complementa: “Gente boa porque depois o cara vai ganhar também, né?”.

Segundo a manifestação do Gaeco à Justiça, os diálogos interceptados levantam suspeitas de práticas de crimes contra as administrações pública e da Justiça, por tráfico de influência, corrupção ativa e exploração de prestígio, bem como falsidade ideológica e/ou material de documentos públicos e particulares e estelionato.

OS DIÁLOGOS

Venda fraudulenta 1

Capitão conversa com o filho, outro militar membro da organização, sobre a venda fraudulenta de imóveis e a partilha dos lucros.

Capitão: “Amanhã é capaz da gente receber do cara. Vai pagar R$ 270 mil para dividir para quatro. Dá R$ 68 mil. Se der certo amanhã eu tenho que botar seu nome.”

Militar (filho): “Não, desenrola aí tranquilo primeiro, depois eu faço a minha parte”

Venda fraudulenta 2

Capitão conversa com corretor sobre a venda de alguns imóveis que estão no nome do militar.

Capitão: “Não adianta marcar lá com o cara, tem que estar pronto o contrato pra mostrar. O documento está aqui, que eu comprei da época. Agora é só fechar o negócio. Eu vou falar com ele, qualquer coisa eu boto X. pra negociar direto com ele, não tem problema dividir para nós três.”

Influência 1

Coronel conversa com outro membro do grupo querendo descobrir quem era o desembargador “responsável pelas obras”. São as tentativas de influenciar as autoridades públicas.

Coronel: “Me dá uma informação, quem é o desembargador que é o responsável pela parte das obras? Tem um responsável pela parte da segurança, você sabe qual é o das obras?”

Influência 2

Corretor relata para lobista do grupo sobre ações que outros membros da organização criminosa estão fazendo para viabilizar a indenização bilionária, influenciando magistrados.

Corretor: “Eram três advogados, tirei um. Ficou dois e o desembargador. Agora, ele disse que futucou o próximo, essa pessoa que ele procurou tem muita influência com o homem da capa preta. Falou que o homem da capa preta almoça lá na fazenda dele e ele almoça na fazenda do capa preta. São muito amigos, íntimos.”

Fraudes em documentos 1

Articulador da organização criminosa conversa com um capitão sobre as fraudes nos documentos:

Articulador: “A única coisa que tem que fazer ali é refazer tudo direitinho, autorizar as escrituras, porque o X. faz para a gente as escrituras, entendeu? Aí é só registrar.”

Fraudes em documentos 2

Em outro momento, dois membros do grupo falam sobre a produção dos documentos. Um articulador reclama que “está demorando muito”.

Funcionário do cartório: “Calma rapaz... Isso daqui é contrato de compra e venda, mas acabei e estou imprimindo, é que tem que fazer a nota promissória, tem que fazer um monte de coisa.”

Indenização

Coronel conversa com advogado sobre a disputa entre os grupo pelo recebimento da indenização bilionária que um terreno renderia.

Advogado: “Nós somos os donos, nós temos o domínio, ou seja, a escritura quem lavra é a gente. Quem tem a posse são eles. Eles têm direito a 50% e a gente tem direito a 50%. Botou cem milhões para cá, eu e X. recebemos o nosso percentual e acabou a briga. O que vocês receberem pra lá a gente não quer nem saber”

Perícias compradas

Capitão e articulador do grupo falam sobre obtenção de perícias falsas e compra de peritos.

Articulador: “Então, ele vai fazer a perícia. Vai fazer, vai levar os documentos e depois vai dizer pra gente quanto que vai cobrar, porque é uma perícia particular, né. Então, eu falei (...) do negócio dos dez mil lá pro perito. Se nós conseguíssemos os dez mil a gente compraria basicamente, pagaria o outro perito do juiz. Daí o X. falou, pede pro coronel e pro capitão”.

Disputas judiciais

Articulador do grupo fala sobre as disputas na Justiça para garantir a posse das áreas.

Articulador: “Às vezes é uma situação inusitada, pô, o que eles estão brigando agora pra retomar algo que eles venderam, entendeu? É porque eles sabem que, na verdade, quem manda ali por trás não são eles, né?"

OITO JUÍZES SE RECUSARAM A JULGAR PROCESSO

Em novembro do ano passado, a investigação sobre a organização criminosa que pratica atos de grilagem – roubo de terra – em Vila Velha chegou à Justiça. Era o momento em que o Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco Central), do Ministério Público do Estado, encaminhou os pedidos para que fossem concedidos os mandados de busca e apreensão, condução coercitiva, afastamento funcional e interceptação telefônica.

Foi quando teve início a saga dos juízes, que um a um foram alegando sua suspeição para conduzirem o caso. Ao todo, oito magistrados se declararam como suspeitos e impedidos assim de tocar o processo. Só pela Oitava Vara Criminal de Vila Velha o processo chegou a tramitar três vezes, antes de ser encaminhado para o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).

Tribunal de Justiça é o responsável por lançar e acompanhar a realização de concursos para cartórios. (TJES)

A ação é adotada quando não há mais juízes no fórum da cidade para julgar o procedimento. No TJES, uma desembargadora substituta decidiu devolver, novamente, o processo para a Oitava Vara Criminal de Vila Velha, para que o juiz titular analisasse as medidas de urgência solicitadas pelo Gaeco.

Em fevereiro deste ano, o juiz informou novamente não ter condições de julgar o feito (os pedidos) com imparcialidade por circunstâncias de foro íntimo e, novamente, devolveu o processo ao TJES.

Foi então que um novo magistrado foi indicado para cuidar do processo. Trata-se de Romilton Alves Vieira Júnior, que é titular na Comarca de Itapemirim, Litoral Sul do Estado. Foi encarregado pelo TJ da concessão dos pedidos, que foram concedidos e cumpridos durante a realização da Operação Corpus, cumprida pelo Gaeco na última quarta-feira.

OUTRO CASO

 

O juiz Romilton também assumiu, há duas semanas, outro caso que também passou por vários juízes que se declararam impedidos ou suspeitos de continuarem no processo. Foi o chamado Caso Dondoni, do empresário Wagner José Dondoni de Oliveira, que matou uma família em um acidente de trânsito há dez anos.

A escolha também foi feita pelo TJES, que o designou após ser comunicada sobre a ausência de juízes para o caso.

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