> >
Há 20 anos era feita a primeira cirurgia de troca de sexo no ES

Há 20 anos era feita a primeira cirurgia de troca de sexo no ES

Sandy, 46, foi a segunda a passar pela operação no país

Publicado em 20 de agosto de 2018 às 21:18

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Sandy mostra recorte de A GAZETA de 1998, quando passou pela cirurgia. (Marcelo Prest)

Numa época em que o termo transexual era pouco difundido e a diversidade de gênero era alvo ainda mais frequente de intolerância e preconceito, a cineasta Sandy Vasconcelos decidiu ousar. Não por rebeldia, mas pela inconformidade com seu próprio corpo. Ela estudou, foi atrás de médicos, passou por acompanhamento com especialistas e, há exatos 20 anos, se submeteu à cirurgia de redesignação sexual - popularmente conhecida como mudança de sexo.

Sandy, hoje com 46 anos, foi a primeira transexual a passar pela operação no Estado e a segunda no país. O ineditismo do procedimento, realizado no Hospital Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), fez com que a cineasta, que em 1998 trabalhava como modelo, virasse referência no assunto.

A cineasta nasceu com uma anatomia genital indefinida, a ponto de a família levar cerca de um ano para registrá-la. O primeiro nome também foi feminino, e era Marli, mas ela começou a desenvolver características masculinas. Assim, a cineasta se identificava como menina em um corpo de menino. Na infância, porém, Sandy não via com o que se preocupar. Mas, chegada a pré-adolescência, as diferenças começaram a se acentuar e os conflitos internos a faziam sofrer.

Aspas de citação

A única referência que tínhamos no final da década de 80 era a Roberta Close e ela era tratada como um travesti. Comecei a estudar, pesquisar, procurei médicos. Ouvi muitos nãos, me chamaram de louca, mas não desisti

Aspas de citação

Assim que foi acolhida, Sandy foi encaminhada para uma série de avaliações, inclusive psicológica, para que fosse identificada a sua condição. Nessa etapa, a cirurgia de redesignação sexual ainda não era permitida, o que só aconteceria no final de 1997. Até que, em 21 de agosto do ano seguinte, Sandy foi operada.

Com a vida totalmente voltada à produção audiovisual, a cineasta usa a temática LGBT em seus filmes, mas não se restringe a essa área. Procura diversificar as abordagens, porém não foge das questões que tocam em sua intimidade, como nesta entrevista.

Quando você se percebeu diferente do que via no espelho?

Sempre percebi. Mas, na infância, isso passa bem leve; criança não vê sexo. Então, não teve o grande choque. Isso só foi acontecer por volta do 5º/ 6º ano da escola (ensino fundamental). A gente já começava a ir para festas, a dançar música lenta, a perceber as diferenças entre homem e mulher. O que eu sentia era uma coisa, e olhar das pessoas dizia outra.

E você se isolou?

De certo modo, mesmo que inconscientemente, quando a gente é visto de forma diferente pela sociedade, a gente não quer confrontar e acaba limitando o espaço.

O tempo passou e você foi atrás de informação...

Sim, não havia outra saída. Eu precisava saber, inclusive, até que ponto fazer uma cirurgia seria satisfatório para mim, se atenderia meus sonhos. Como no Espírito Santo nem de longe se falava do assunto, comecei a ir atrás de médicos, debater.

Foi uma luta sozinha?

Nunca quis levantar bandeira. Tudo o que fiz era para resolver algo íntimo e pessoal. Até porque, se parar para analisar, há 25 anos, quando comecei a buscar informação, a debater, eu era quase uma representante única. As pessoas se sentiam gays, travestis, mas era eu quem dizia que havia outra porta no meio.

Depois de fazer a cirurgia, como repercutiu?

As pessoas próximas diziam que eu deveria me isolar. Porque, se hoje as pessoas são apontadas na rua, imagine há 20 anos! Mas sempre quis conversar com mães de trans, com os jovens, nas igrejas. Só não queria que minha vida se resumisse a esse aspecto.

E como é o sexo após a cirurgia?

Digo que hoje, em 2018, é uma realização total de conhecimento do próprio corpo. Como todas as pessoas, a gente vai evoluindo à medida que se descobre.

Mas no início foi uma barreira?

É uma questão de aceitação. O que acontece é que, entre boa parte das meninas que fazem a cirurgia de correção, há um temor que os homens façam julgamentos. Esse bloqueio mental e emocional impede que sejam completas. A minha primeira vez não foi fácil, mesmo tendo esperado para encontrar uma pessoa certa, mas garanto que fica cada vez melhor.

SEM MÉDICOS, HOSPITAL NÃO FAZ MAIS CIRURGIA

O pioneirismo do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam) na realização da primeira cirurgia de mudança de sexo o tornou referência no país, mas agora a unidade está perdendo seu posto. Desde o ano passado, a instituição não realiza operações por falta de profissionais interessados no procedimento.

Com grande demanda de mulheres trans, ou seja, pessoas que nasceram no sexo masculino, porém se identificam como sendo do gênero feminino, o trabalho realizado agora é exclusivamente clínico, sem perspectiva de realização de novas cirurgias. O hospital era o único no Estado a fazer o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Hucam era o único hospital no Estado a oferecer o procedimento pelo SUS. (Guilherme Ferrari)

“Nem estabelecemos filas para não criar expectativas”, afirma a professora Léia Damasceno de Aguiar Brotto, coordenadora do Ambulatório de Gênero do Hucam/Ufes.

Ela diz que está em busca de profissionais mas, até o momento, nenhum se interessou. Até o ano passado, as cirurgias eram realizadas de forma voluntária pelo urologista Jhonson Gouvea, pois já estava aposentado havia três anos. Ele era um dos médicos na equipe da primeira cirurgia de redesignação sexual, há 20 anos.

Os procedimentos que ainda são possíveis são os voltados para homens trans, que podem ser submetidos à mastectomia (retirada dos seios) ou à pan-histerectomia (retirada de ovários, útero e trompas). No entanto, não existe operação para transformação de vagina em pênis.

AMBULATÓRIO

Enquanto na cirurgia houve um retrocesso, o Hucam está avançando na atenção clínica. Em 2016, o ambulatório passou a atender a população de transexuais e travestis com equipe multidisciplinar e, desde fevereiro deste ano, teve o atendimento homologado pelo Ministério da Saúde, o que significa, entre outras possibilidades, autorização para oferecer terapia hormonal ao público.

Isso porque, fazendo ou não a cirurgia, os trans usam hormônio para dar ao corpo às características do sexo oposto a seu nascimento.

“Nosso ambulatório está muito preocupado em ajudar essas pessoas a se encontrar de fato. Cabeça e corpo em harmonia, ajudando para que se enxerguem da melhor forma”, ressalta Léia Brotto.

Tanto para fazer a cirurgia, quanto para realizar a terapia hormonal os trans passam por acompanhamento médico e psicológico. Uma intervenção cirúrgica, inclusive, exige uma assistência de no mínimo dois anos para que a pessoa possa receber o laudo com a autorização para o procedimento. Léia Brotto acrescenta que os trans também recebem acompanhamento laboratorial para verificar como os hormônios estão agindo no organismo. A distribuição gratuita da medicação, pelo Hucam, ainda precisa da realização de um processo licitatório.

APERFEIÇOAMENTO DE TÉCNINCA E PÓS-OPERATÓRIO MAIS SIMPLES

A cirugia realizada há 20 anos foi considerada um avanço na medicina, com técnicas que renderam prêmio, mas ao longo desse período já houve ajustes para aperfeiçoá-la. Hoje, o procedimento é realizado na metade do tempo e o pós-operatório também é mais simples, com a possibilidade da vida sexual ser retomada em um mês.

Da equipe de quatro médicos envolvidos na primeira cirurgia de mudança de sexo do Estado, o cirurgião plástico Ariosto Santos conta que, desde 1984, realizava cirurgias em mulheres que sofriam de síndromes, como a de Rokitansky, que se caracteriza, entre outros aspectos, pela ausência de vagina. A experiência de reconstrução vaginal foi usada por ele na operação de Sandy Vasconcelos, mas o médico foi além.

Ariosto Santos, médico cirurgião plástico . (Marcelo Prest)

“A primeira cirurgia me proporcionou ganhar um prêmio pela técnica aplicada. Na literatura médica, não estava previsto usar os corpos cavernosos do pênis (estrutura localizada na parte dorsal) na cirurgia. Eles eram eliminados. Mas, aqui, aproveitei esse material para revestir a entrada da vagina, conferindo mais firmeza”, lembra Ariosto, hoje à frente do Serviço de Transgenitalização do Vitória Apart Hospital.

Além de mais firme, o uso desse material também deixava a vagina mais sensível à estimulação, uma vez que os corpos cavernosos, no pênis, são responsáveis pela ereção.

Atualmente, entre outras mudanças, Ariosto conta que houve um aperfeiçoamento onde é feita a fixação da uretra, para que não haja retenção urinária, e a glande, antes utilizada, passou a ser desconsiderada após relatos de dor durante a relação sexual.

Este vídeo pode te interessar

 

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais