> >
Moradora de Morada da Barra: 'Ninguém pode falar nada. Já deu morte'

Moradora de Morada da Barra: "Ninguém pode falar nada. Já deu morte"

Moradores e entregadores sofrem com medo de traficantes

Publicado em 21 de agosto de 2018 às 01:16

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Entregador de pizza diz que o pior horário para entrar em bairros controlados pelo tráfico é à noite. . (Fernando Madeira)

O medo de sofrer nas mãos dos bandidos é tão grande que para conviver em harmonia com eles os moradores fingem que não veem a atuação dos criminosos em bairros da Grande Vitória. Para conseguir entrar nesses locais e sair em segurança, motoboys, motoristas de aplicativo e rodoviários só tem uma opção: obedecer às leis impostas pelos traficantes.

“O que impera é a lei do silêncio. Ninguém pode falar nada. Isso já deu morte”, comentou uma moradora de Morada da Barra, em Vila Velha. Ela e outras pessoas ouvidas pela reportagem preferiram não se identificar, por segurança.

Segundo ela, há casos de famílias que já foram expulsas do bairro por terem feito algum tipo de denúncia. “Eles (os traficantes) dão um jeito de descobrir quem foi. Eles expulsam as pessoas, que passam a ter que pagar aluguel em outro lugar e os bandidos ainda ocupam o imóvel onde elas moravam. É uma situação muito complicada.”

Há 15 anos no mesmo bairro, a moradora confessou que a rotina é tomada pelo terror. “Eu divido o quintal com minhas duas filhas que hoje são casadas. Sentimos muito medo e já até pensamos em nos mudar, mas como que a gente faz? Não temos condições.”

ENTREGAS

Cumprir com as regras dos traficantes faz parte do dia a dia de um motoboy, de 25 anos, que trabalha com entregas de comida. “Isso é diário, é normal. Qualquer bairro perigoso da Grande Vitória eu já chego tirando o capacete”, explicou o jovem, que preferiu não ter a identidade revelada.

Há dois anos no ramo, ele identificou que o bairro Jardim Carapina, na Serra, é um dos mais perigosos na Grande Vitória. Já em Vitória, para o motoboy, que entrega marmitas, lanches e pizza, o clima é pesado no Bairro da Penha e no Bonfim.

“Eu nem sinto medo mais, já acostumei. Trabalho de 11h às 14h entregando marmita e de 18h às 00h entregando lanches e pizzas. O horário da noite é sem dúvidas o pior”, avaliou.

Ainda de acordo com o motoboy, com quem não obedece os traficantes são mais violentos. “Eles também pedem para abaixar o farol do veículo. Mas não ficam na porta do bairro, eles têm os pontos específicos.”

Ao entrar em um bairro com regras do tráfico, motoristas de aplicativo já tiveram os carros revistados. “Essa situação é muito complicada para nós. Somos obrigados a parar para bandido revirar o veículo. Temos que andar nesses bairros com o vidro aberto mesmo estando com morador dentro do carro”, explicou o presidente da Associação dos Motoristas de Aplicativo do Espírito Santo (Amapes), Luiz Fernando Muller.

Ainda segundo Muller, são dois medos constantes durante essas corridas. O primeiro é ser assaltado, e o segundo é ficar no meio de um tiroteio. “Nós temos um grande problema que é de ser confundido com a polícia, porque a maioria dos carros de aplicativo são descaracterizados.”

Ainda de acordo com o presidente da Amapes, tem aplicativo que não mostra para o motorista qual o destino do passageiro na hora do chamado, apenas a quilometragem. Dessa forma, o motorista só sabe para onde vai quando aceita a corrida. “Por Vitória já tivemos problema em Jaburu. Na Serra, tivemos em Jardim Carapina e Central Carapina. Em Vila Velha, a situação é complicada na Grande Terra Vermelha. Tem bairro que é difícil você entrar até de dia e dependendo da hora você nem entra”, explicou.

Os ônibus que circulam diariamente em bairros considerados perigosos também lidam com as leis impostas pelo tráfico. A orientação do Sindicato dos Rodoviários do Espírito Santo (Sindirodoviários) é não reagir e não enfrentar os traficantes “para não pôr em risco os trabalhadores (motoristas e cobradores) e nem os passageiros”, informou nota enviada pela entidade.

Regras do Tráfico

Lei do silêncio impera

Uma regra unânime em todas as comunidades é a lei do silêncio: ninguém vê, ninguém ouve, ninguém fala. Se criminosos desconfiarem que um morador está passando informações sobre o tráfico local para outros, o suposto informante pode pagar com a própria vida.

Tirar o capacete

Em algumas comunidades, é necessário tirar capacete se for entrar no local de moto para que os criminosos identifiquem de imediato quem está em cima da motocicleta.

Pichação em muro de Morada da Barra, em Vila Velha: "Já tá avisado". (ARI MELO/TV GAZETA)

Farol e luz interna

É regra abaixar o farol e ligar a luz interna. Em alguns bairros é obrigatório piscar ou abaixar farol, ligar a luz interna e abrir os vidros se for entrar de carro. Também há casos de profissionais abordados por traficantes que exigem informações sobre a entrega e destinatário. Só então, eles decidem se o produto pode ser entregue ou não.

Identificação

Há relatos de motoristas abordados por traficantes armados que exigiram que a vítima provasse que era motorista de aplicativo. Esses motoristas são obrigados a deixar o número de telefone com traficantes. Em Vila Velha, bandidos proíbem a entrada de motoristas de aplicativo no período da noite.

Obrigadas a namorar

Meninas menores de idade são obrigadas a ficar com traficantes, caso contrário, são ameaçadas, agredidas e os cabelos são raspados. Também é proibido ficar com ex-mulheres de traficantes.

Relações proibidas

As mulheres que se relacionam com traficantes não podem seguir a vida com outras pessoas caso os criminosos sejam presos. Elas devem esperar por eles sem iniciar uma nova relação.

Uso de drogas

Há bairros, como Paul, em Vila Velha, onde é proibido usar drogas na frente das crianças. As penas para quem descumpre a regra são agressões a pauladas.

Sem chamar a polícia

Não pode chamar a polícia para nenhum tipo de assunto, sujeito a morte. Em Vitória, traficantes também expulsam moradores que desconfiam que tenham ligar para a polícia.

Visitas proibidas

Em alguns bairros é proibido aos moradores frequentar outras comunidades onde há traficantes rivais. Eles podem ser expulsos ou mortos. De acordo com a apuração da reportagem, esse tipo de regra acontece, por exemplo, no Morro da Piedade, em Vitória, Itacibá, em Cariacica, e Central Carapina, na Serra.

Nada de crimes

Roubos, estupros e outros crimes não são tolerados por gangues que dominam alguns bairros. Em Cariacica e Serra, há bairro onde o roubo é proibido e quem descumpre está sujeito a morte.

Recrutamento

Menores são obrigados a entrar no tráfico. Há comunidades onde bandidos escolhem quais crianças e adolescentes vão entrar para o tráfico de drogas, obrigando a família aceitar a imposição.

Redes monitoradas

No bairro Carapina Grande, na Serra, o controle paralelo instaurado pelo PF, facção criminosa intitulada Ponto Final, inclue – entre outras práticas criminosas – monitorar as conversas e mensagens trocadas pelos moradores do bairro, através do WhatsApp. Também é proibido curtir ou postar informações que critiquem ou prejudiquem o tráfico. Além disso, criminosos vão para a praça do bairro e, se desconfiarem do morador, param e obrigam a entregar o celular para ver se estão passando alguma informação para a polícia ou para algum rival.

Os bandidos vigiam até o que os moradores curtem, postam ou compartilham no Facebook.

TAXISTA TVE ARMA APONTADA PARA O ROSTO POR DESRESPEITAR REGRA

Um taxista de 27 anos teve uma arma apontada para o rosto por ter infringido uma lei imposta pelos traficantes no bairro 1º de Maio, em Vila Velha: a de ligar a luz interna do veículo. A questão é que estava de dia e a luz ligada não fazia diferença para identificar os ocupantes do carro.

“Dois bandidos saíram armados de um beco apontando a arma para mim. Tinha sol e eu nem me toquei de ligar essa luz. Não pensei que ela fazia diferença. Só tinha abaixado o vidro. Eles disseram que para voltar no bairro teria que acender a luz interna do carro”, lembrou.

O caso aconteceu quando o taxista trabalhava como motorista de aplicativo. A insegurança, inclusive, foi um dos motivos que o fez voltar para o táxi. “Sempre trabalhei como taxista. Já tem uns sete anos. Preferi voltar porque agora é mais tranquilo. Pelo menos eu sei quem eu estou levando dentro do meu carro.”

Outros taxistas da Grande Vitória procurados pela reportagem não quiseram comentar o assunto, mesmo sem se identificar, com receio de represálias.

O poder paralelo imposto pelos traficantes é um problema antigo que já que vem sendo retratado há anos nas páginas de A GAZETA. Diante dessa situação, moradores e prestadores de serviço são obrigados a conviver com as leis do tráfico e com o sentimento de medo.

Este vídeo pode te interessar

 

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais