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'Tiradentes assumiu missões arriscadas com coragem e alguma falta de juízo'

"Tiradentes assumiu missões arriscadas com coragem e alguma falta de juízo"

Nova biografia de um dos personagens mais icônicos da História do Brasil mostra que o alferes, alvo de delação premiada, usava a desinformação para recrutar rebeldes para a Conjuração Mineira

Publicado em 25 de agosto de 2018 às 22:48

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Um homem de feições misteriosas – ao menos para a posteridade –, e nada discreto, que “pregava” uma rebelião abertamente, em pleno Brasil colonial, por vezes até lançando mão da desinformação (o termo fake news, de tão popularizado atualmente, já caiu ele mesmo em descrédito). Assim era Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Figura célebre transmutada várias vezes de acordo com a ocasião, o alferes (a patente mais baixa do oficialato de então) executado 226 anos atrás é retratado em nova biografia pelo jornalista Lucas Figueiredo.

Em 520 páginas ele conta como Tiradentes tornou-se um dos partícipes da Conjuração Mineira e o desfecho da sentença de “morte natural para sempre”, mediante enforcamento. O “para sempre”, como relata Figueiredo, significava que os restos mortais de Joaquim seriam abandonados ao tempo. Tudo isso com uma “delação premiada” no caminho, a daquele que passou à História como traidor, Silvério dos Reis.

“Eram missões muito arriscadas, e Tiradentes sabia disso. Mas, aceitou-as com grande coragem e também com alguma falta de juízo”, avalia o biógrafo. “Começou a acreditar nas fantasias que criava”, complementa.

O que mais impulsionou o alferes a entrar na Conjuração Mineira, de forma ostensiva e quase suicida, foi sua ambição em ficar rico ou o fervor revolucionário puro e simples?

Como qualquer um de nós, Tiradentes carregava dentro de si anseios dos mais variados. Do ponto de vista pessoal, quando entrou no grupo dos rebeldes da Conjuração Mineira, ele estava profundamente frustrado. Havia trabalhado 14 anos como alferes, recebendo as mais difíceis e perigosas missões do Regimento de Cavalaria, sem receber sequer uma promoção ou um reajuste em seu soldo. Ele queria ter oportunidades, queria crescer, e pensava que a Conjuração poderia lhe oferecer isso. Já do ponto de vista da crença político-filosófica, Tiradentes acreditava que não era justo sua terra-natal ser dominada por Portugal quando poderia ser livre. Ele tinha como inspiração a Revolução Americana, ocorrida uma década antes. Ele acreditava na máxima que dizia que todos tinham nascido iguais. E para fazer valer seus anseios pessoais e públicos, ele estava disposto a matar e a morrer.

Não era, no mínimo, ingenuidade “pregar” sobre uma insurreição aos quatro cantos?

Tiradentes assumiu missões importantes na Conjuração Mineira, entre elas, duas de grande risco: recrutamento e propaganda. Ele era o principal responsável por atrair rebeldes para as trincheiras da Conjuração, sobretudo no meio militar. Afinal, o que se vislumbrava era uma guerra entre Portugal e a “nova república” proposta pelos conjurados, então era preciso atrair gente qualificada para lutar. Tiradentes também foi encarregado de fazer a propaganda do movimento, espalhando seus ideais e tentando fazer com que o povo acreditasse que a vitória dos rebeldes era certa, para assim atrair simpatizantes. Como eu disse, eram missões muito arriscadas, e Tiradentes sabia disso. Mas, aceitou-as com grande coragem e também com alguma falta de juízo.

Pelo que depreendi do livro, Tiradentes “aumentava” as histórias que contava, tanto em relação à viabilidade da revolta quanto à exploração feita pela Coroa. Era uma estratégia? Ou será que ele apenas se empolgava?

As duas coisas. Os rebeldes tinham muito mais vontade que estrutura, e Tiradentes sabia que, para o movimento dar certo, o povo precisava acreditar que rebeldes tinham um esquema muito poderoso. Mas é verdade também que, de tanto inflar o real poder dos conjurados, Tiradentes se empolgou na tarefa e começou a acreditar nas fantasias que criava.

À parte a atuação de Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, havia como Tiradentes não ser descoberto pela Coroa?

A atuação aberta de Tiradentes contra a Coroa não podia passar despercebida durante muito tempo. Mas ele acreditava que, antes de ser descoberto, a revolução sairia vencedora. Por outro lado, ele sabia do risco que corria, sabia que a qualquer momento poderia ser preso e julgado por traição contra a soberana, o que naquela época era punido com a forca e o esquartejamento. Em um certo momento, para ele, mais importante que ganhar ou perder passou a ser espalhar os ideais da conjuração. Ele dizia que havia de armar uma confusão tão grande que nem em cem anos seria possível desembaraçá-la. Ou seja, jogava pensando no futuro. E ele estava correto: a Conjuração Mineira acabou sendo o primeiro movimento de cunho libertador e, mais que isso, republicano no Brasil, que iria continuar a germinar até hoje.

A traição de Silvério dos Reis pode ser considerada uma delação? Se sim, teria sido a primeira do Brasil?

Para os casos de traição à Coroa, a legislação portuguesa previa a delação e concessão de prêmios ao delator. Joaquim Silvério dos Reis conhecia a legislação. Era um homem de negócios muito rico, e entrou no grupo de rebeldes com objetivos puramente financeiros. Ele e Tiradentes eram amigos. Mas, como viu que o movimento dificilmente seria vencedor, Silvério dos Reis mudou de lado e se tornou um delator. Mais que isso: virou espião do governador, conseguindo extrair vários segredos de seus antigos camaradas. Ele levou o amigo Tiradentes à morte e passou o resto da vida reivindicando prêmios por seu trabalho. Não foi o primeiro, e também não foi o último delator.

Por que só Tiradentes foi executado? Tomas Antonio Gonzaga, depois de tudo, até se saiu muito bem, dadas as circunstâncias.

Tiradentes não era rico, não pertencia a família importante e não era da turma dos letrados, como muitos de seus camaradas. Mas era o rebelde mais destemido e atuante. Quando debelou o movimento, a Coroa abafou o episódio para não chamar a atenção dos colonos do Brasil e das nações estrangeiras. Planejou uma punição exemplar, mas de modo a que todos pensassem que a Conjuração Mineira não passara de um surto de infidelidade das camadas mais inferiores da população. Assim, os conjurados importantes e ricos foram poupados da forca, e Tiradentes acabou servindo de bode expiatório.

No livro, o senhor elenca que, ao longo da História do Brasil, ao sabor das conveniências de cada momento, Tiradentes foi tratado como herói por diversos movimentos – republicano, Estado Novo, ditadura civil-militar – como ele é apropriado hoje? Políticos gostam de citá-lo vez ou outra...

Depois de sua morte, Tiradentes ficou cerca de 50 anos esquecido. Depois, teve sua trajetória manipulada e apropriada pelo movimento republicano, que precisava de um herói para sua causa. O mesmo aconteceu, ao longo da história, com movimentos das mais variadas matizes. Da PM de Minas Gerais a grupos de esquerda armada, todos se escoraram no mito Tiradentes, que por todos foi tratado como herói. Até hoje é assim. Recentemente, o presidente Michel Temer e o ex-presidente Lula compararam suas trajetórias com a de Tiradentes.

Aliás, o Tiradentes, ainda que esse que aprendemos na escola ou apropriado por aí, não parece um líder populista, salvador da pátria, como alguns políticos gostam de se vender?

Eu diria que 99% das pessoas conhece apenas o Tiradentes mito, ou melhor, um dos Tiradentes mito, pois eles são vários. Cada um tem na cabeça um Tiradentes. Meu livro conta a história do homem, do Joaquim José da Silva Xavier. Acho que finalmente as pessoas vão conhecer quem é de fato esse personagem tão fascinante.

A imagem de Tiradentes, frequentemente retratado com feições semelhantes às de Jesus, tem, ou teve em algum tempo, correspondência com a aparência do alferes?

Aquele Tiradentes “à la” Jesus Cristo, com barba e cabelos longos, foi uma invenção do movimento republicano, no século XIX. Não se sabe, de fato, como ele era. De concreto, temos apenas duas informações: a cor de sua pele era clara e, aos 40 anos de idade, já tinha os cabelos brancos.

Após a pesquisa para o livro, o que mais o surpreendeu sobre Tiradentes em comparação com o que aprendemos na escola, tradicionalmente, desde o ensino fundamental?

Tudo. Fomos ensinados a acreditar em um mito, um ser de feições pouco humanas. O personagem real é muito mais interessante.

A Conjuração Mineira, ainda que não tenha sido exitosa, marcou uma revolta, ou quase revolta, contra a cobrança de impostos. Hoje, e praticamente em qualquer época, pagar imposto não deixa ninguém feliz. Mas quando isso pode, realmente, resultar em uma insatisfação social a tal ponto de gerar uma revolução?

A cúpula da Conjuração Mineira era dominada por poetas, escritores, advogados, desembargadores, oficiais de alta patente, médicos, sacerdotes, fazendeiros ricos e homens de negócios. Mas faltava povo. Para fazer uma revolução, em qualquer época, é preciso que o povo abrace o projeto.

A República que temos hoje atende aos anseios que os conjurados tinham?

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A Conjuração Mineira foi o ponto de partida. Trinta anos após a morte de Tiradentes, o Brasil se libertou de Portugal. Mas ainda estamos longe de construir uma verdadeira república.

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