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'As cotas são a única forma de balancear as injustiças', diz primeira professora negra do ITA

"As cotas são a única forma de balancear as injustiças", diz primeira professora negra do ITA

PhD em Física e primeira mulher negra a dar aula no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Sônia Guimarães fala do racismo em seu dia a dia

Publicado em 24 de setembro de 2018 às 22:36

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Mulher, negra e PhD em Física. Contra todas as expectativas, Sônia Guimarães se tornou a primeira mulher negra professora no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) de São José dos Campos. Hoje, 26 anos depois, a professora afirma que pouca coisa mudou na instituição militar mais tradicional do país. “Tenho que provar o tempo inteiro quem eu sou e o que eu faço. Se eu erro, é o fim do mundo”, diz.

Mesmo assustada com o cenário político atual, a professora comemora o início da política de cotas no ITA. “Deveria me aposentar, mas vou ficar mais para dar aula aos cotistas”.  Ela virá ao Estado para a 5ª Conferência Mundial Sobre Combate às Desigualdades Econômicas, Raciais e Étnicas, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que vai de 26 a 29 deste mês.

Como é ser mulher, negra e dar aula dentro do instituto militar mais tradicional do país?

Tenho alunos militares do exército e da marinha, mas também tem aqueles que não são. Eles são inteligentíssimos, mas um pouco complicados. Há aquelas risadinhas de fundo. Aparentemente eu não posso errar. Tudo que eu peço, eles acham que não precisam fazer, que não eu posso ser exigente, que não posso dar nota baixa. Eles não admitem que eles possam tirar notas baixas por não alcançarem as minhas expectativas.

A senhora tem rodado o país falando de racismo. Se sente perseguida pelo que defende?

Sem dúvida. Se eu dando a minha aula e cometo qualquer tipo de erro é o fim do mundo. Eu não posso errar de jeito nenhum. Será que acontece isso com os professores brancos? Qualquer coisa que eu faço fica um burburinho. Será que ocorre a mesma coisa com homens brancos? Eles não me atacam diretamente porque não são loucos, mas ficam dando indiretas e agindo de forma estranha.

Durante a ascensão profissional, a senhora acredita que precisou se provar mais do que as outras pessoas?

Todos os dias, até hoje. Se eu abro a boca, tenho que provar exatamente tudo o que eu estou fazendo. Tenho que dizer de onde que eu tirei todas as informações a todo o instante, tanto entre os meus alunos quanto entre meus colegas. Sempre tenho que provar aquilo que eu sou. Sempre foi assim.

Isso acontece face a outras mulheres também?

Eu diria que sim. As mulheres brancas têm muito mais dificuldades que homens brancos e eu, na base da pirâmide,tenho que provar o dobro de todo mundo. As mulheres brancas também tem problemas mas, infelizmente, a gente não se une. É elas na delas e eu na minha. Eles me falam muito “se vire”. E eu não tenho opção, ou eu me viro, ou me viro.

Com as eleições chegando, como a senhor avalia a nossa perspectiva política?

Estou com muito medo do que pode acontecer em outubro. Quando entrou o Fernando Collor eu tinha acabado de chegar do meu doutorado (na Inglaterra) e me deu vontade enorme de ir embora de novo. Agora não tenho planos mas dependendo de quem ganhar eu tenho muito medo. A situação é apavorante com tudo que foi feito com a presidência. Foi algo extremamente frustrante. Tenho dado palestras em muito lugares e é geral a desesperança.

A senhora fez faculdade em uma época onde não havia cotas raciais. Como a senhora vê essa política hoje?

Necessária. Está demorando muito e está atrasada. As cotas são a única forma de balancear as injustiças perpetradas contra os negros. São os negros que estudam nas piores escolas, é para os negros que estão as escolas de pior qualidade. E depois dizem que o Enem é igual para todos. Mas como pode, se não houve oportunidade igual para todo mundo? Depois o negro não entra na universidade e ele é menos inteligente? Não. Ele teve menos menos condição de estudo.

Com todas as dificuldades e obstáculos, o que mantém a senhora nessa luta?

Eu não posso desistir. A minha força vem da minha mãe, talvez. Se eu desisto eles vão falar imediatamente “Não falei que ela não conseguia?”. Pelos estereótipos, não era nem para eu ter chegado onde eu cheguei. Se eu desisto, eles dizem “Não falei que ela não era capaz? Não falei que negro não chega aonde diz que vai chegar?”. Então, meu bem, eu não posso desistir de nada. Tenho que levar o bola para frente para o alto e ainda tentar fazer um gol.

Que conselho a senhora daria para as jovens negras que querem ingressar na área de exatas?

Não desistir. A única solução para nós e ter mais mulheres nas posições de poder. É preciso trabalhar juntas, chegar lá juntas. Agora elas são mais numerosas. Na minha vez não tinha ninguém, então eu tinha que ir sozinha. Agora elas são mais do que uma. Então seria bom elas se unirem, trabalharem juntas. Se uma não está indo bem, puxa a outra. Uma sabe melhor, ensina para a colega. Enfim, subirem juntas. Se tivermos mais chefes mulheres, mais mulheres na posição de comando, a nossa situação vai mudar. As meninas que querem ingressar nas exatas, venham, aumentem o número. Cheguem nas posições de chefia. Lembre-se do que você fez para chegar lá. Não desista. E quando alguém lhe disser você não vai conseguir, dá um beijo do ombro e bola pra frente. Porque eu sempre ouvi isso a minha vida inteira. Ouvi as maiores pataquadas e estou aqui. Se eles tentam impedir de um lado eu vou pelo outro. Se eles põe um muro muito alto eu pego uma escada.

O ITA vai aderir ao sistema de cotas a partir do próximo vestibular. Qual a expectativa?

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A partir do próximo ano, dos 110 alunos que entrarem no Ita 22 tem que ser negros ou negras. Eba! (Risos). Eu deveria me aposentar em 3 de agosto de 2019, mas só dou aulas para os alunos do primeiro ano no segundo semestre, então eu sairia sem dar aulas para essa primeira turma com cotistas. Então vou ficar mais um bocadinho só para dar aulas para eles.

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