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'Dar a condição para a pessoa comprar alimento é devolver a dignidade'

"Dar a condição para a pessoa comprar alimento é devolver a dignidade"

Rachel Maia se tornou uma das principais executivas do país, com uma trajetória no mercado de luxo e atualmente trabalha empoderando outras mulheres

Publicado em 9 de setembro de 2018 às 00:13

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Caçula de sete irmãos, Rachel Maia tem uma história extraordinária. E todas as suas conquistas se devem a sua gana de vencer. Desde sempre, que fique claro. “Mas sempre estive no lugar certo e na hora certa”, também gosta de dizer.

Criada na região de Cidade Dutra, zona sul de São Paulo, ela se formou em Contabilidade. Mas nunca se contentou com pouco. Por isso, nos anos 1990, quando ainda dava os primeiros passos na carreira, decidiu usar o dinheiro da rescisão do emprego como contadora – na finada operação da rede de conveniências Seven Eleven no país – para fazer um curso de inglês no Canadá. “Tinha dinheiro apenas para uma refeição diária”.

Trabalhou no setor farmacêutico até entrar para o segmento de alto luxo. Foi no universo das joias que Rachel ficou conhecida em todo o país. Primeiro trabalhando na Tiffany's, depois fazendo carreira na Pandora, onde chegou ao cargo de presidente e ficou por nove anos.

(Divulgação)

Aos 47 anos, mãe de uma menina, catequista de crisma há 23 anos, ela está escrevendo um livro - uma mistura de trajetória e biografia. Com várias risadas durante a entrevista, ela exibe a leveza de quem passou por vários furacões e sempre sobreviveu. Diz que ainda tem “energia louca”. Em outras palavras, uma enorme vontade de fazer diferente, além de voltar para o universo executivo. Rachel, mais do que nunca, está feliz. “Felicidade é a palavra que me define. Eu não faço algo que não me deixa feliz e que não emana felicidade para o próximo”.

Em que momento da vida você percebeu que era uma referência para outras pessoas e passou a ser chamada para fazer palestras?

Faz uns quatros anos que isso começou a acontecer. Muitas vezes as pessoas ficam desanimadas e isso é natural. Nós, como seres humanos, precisamos de heróis e heroínas. Essas referências me fortalecem, e como eu tenho uma história muito básica e simples, é uma história tangível para as pessoas. Olham e pensam: ‘Ela também é da periferia, representa o gênero e a raça que não é a que mais se beneficia e pôde chegar, então eu também posso’. É essa a mensagem dentro da simplicidade da minha história que as pessoas veem, “se ela pode eu também posso”. As pessoas se encorajam e se fortalecem.

Você costuma dizer que sempre esteve no lugar certo, na hora certa...

Em todos os momentos da minha vida. Desde quando comecei como estagiária no Banco do Brasil, eu estive no lugar certo, na hora certa. Porque eu tinha que começar em uma grande empresa para o meu próximo passo também ser em uma grande empresa. Então a procura sempre foi pelo maior, pelo grande que pudesse me levar longe. E quando eu procurei isso eu sabia que não poderia dar a mesma resposta, eu tinha que me preparar para dar uma resposta que enchesse os olhos do interlocutor. Acho que isso é a minha característica, e para isso eu sou disciplinada. Tenho que ler, assistir o telejornal, interagir com pessoas de diferentes ciclos, viajar, estudar. Tenho duas pós-graduações, dois Master of Business Administration (MBAs) e não sei se são suficientes para tudo que eu querodesbravar.

Por que anos atrás você decidiu ir estudar no Canadá?

Porque eu decidi que queria trabalhar no universo global e em empresas corporativas. Para fazer parte deste processo executivo e de gestão o inglês, seria fundamental. Fiquei um ano e meio no Canadá.

E quando você retornou para o Brasil, o que fez?

Quando eu voltei eu queria continuar trabalhando em empresa farmacêutica, mas eles não tinham a vaga de controladoria em aberto. Eu estava dura, sem grana e precisava trabalhar. E, na época, tinha três oportunidades - entre elas numa automobilística e a Tiffany & Co (empresa de joias). Só quem me chamou foi a Tiffany, e assim entrei na vida do mercado de luxo.

Quais foram seus desafios nesse universo do luxo?

Era tudo muito novo para mim. Muitas vezes você não enxerga os desafios como eles são, não entende muito bem. Muitas vezes você precisa passar por eles para depois entender que é um desafio. Era um mercado novo, tudo o que eu estava vivendo era singular e conheci muita gente boa, que trouxe experiência dentro de uma esfera que eu não vivia. Hoje eu conheço as principais famílias do Brasil e elas se lembram de mim. Posso conversar com eles, porque essa relação começou lá trás.

Como você se via fazendo parte deste universo, que não era o seu?

Eu era a representatividade nesse espaço. Estar fazendo parte do universo, onde eu era a minoria, me dava mais força e fazia com que eu acreditasse que tinha que estar lá para incentivar e mostrar que outros, como eu, também poderiam estar. É importante dizer que eu não sou uma pessoa de reclamar, acho chato essa lamúria, não gosto de me colocar como vítima porque não me acho como tal. Pelo contrário, eu estive no lugar certo, na hora certa e tive a resposta certa. Porque eu me preparei, li muitos livros, tinha como pagar uma única refeição no Canadá porque eu queria continuar estudando. Então, não tem glória sem passar pela cruz. Eu optei por passar pelos desafios, porque sabia que o meu objetivo estava no final da linha. Era a minha proposta de vida, minha jornada. E a minha jornada não significava que seria um mar de rosas. Eu sempre apostei em mim mesma.

Como se torna presidente da Pandora, a segunda maior fabricante de joias do mundo?

Eu não em tornei presidente. A minha jornada me fez presidente. Fui estagiária, analista, gerente, controle, diretora, CEO e presidente. Existe uma jornada e ela me levou a ser presidente.

É verdade que quando acabou o casamento entre você e a empresa, você chorou?

Chorei. E chorei não pela dor da saída, mas pela falta que eu sentiria das pessoas que ajudei a construir.

Nunca falamos tanto sobre empoderamento, como é, na prática, ser uma mulher à frente de uma grande empresa?

Para mim é com muita felicidade. Me empoderar e empoderar outras mulheres, na prática, é viver o dia a dia e olhar para a sua filha que está em casa, a secretária do lar e as pessoas que estão à sua volta esperando ser empoderadas. Não existe uma regra. Se você olha uma pessoa que está na sua felicidade maior, você acrescenta. Ou se está na miséria daquele dia, você pergunta como ajudar. É muito do momento, é ter a sensibilidade para entender a pessoa e saber como ajudá-la.

Como equilibrar a rotina de uma executiva com a vida pessoal?

Não equilibra. Isso para mim é história da carochinha. Muitas vezes um executivo tem que dar 90% de sua vida pro negócio que ele está fazendo. Outras vezes vai dar 30%. Mas o tempo que ele dá tem que ser com qualidade, e é isso que eu faço.

Então não tem essa história de dar conta de tudo...

Impossível. Eu escolho as minhas batalhas. E sei que também tenho as minhas fraquezas. Eu entro no chuveiro e choro quando não sei muito bem responder às dúvidas da minha empregada ou da minha filha, me sinto impotente. Não existe perfeição.

Na América Latina não sabemos lidar com a questão racial. Como mudar essa cena?

A gente não entende bem esse tema e estamos longe de assumir isso. Temos 54% da população negra - e muitas vezes parte dessa porcentagem não se reconhece como negro - é um problema. Muitas pessoas também falam que não existe o problema racial. Já ouvi gente dizer: “Eu aceito os meus amigos, inclusive aqueles que são negros”. Quando você qualifica, você discrimina. As pessoas ainda não têm ideia de como comentários como esse magoam.

Você faz parte de um grupo de executivas femininas que tem, entre tantos objetivos, tornar outras mulheres líderes....

O principal objetivo deste grupo é, de fato, empoderar as mulheres a serem replicadores das outras, porque não conseguimos alcançar todas, é um sonho acreditar nisso. Então nós fazemos o nosso melhor para que isso chegue até as mulheres que estão a nossa volta, para que sejam boas replicadoras do empoderamento.

E o programa Capacita-me, criação sua, qual a proposta?

Sou catequista de crisma há 23 anos e sempre trabalhei na questão do próximo. Há um ano e meio entendi que poderia usar a minha rede de influências de outros presidentes e executivos em prol dos desfavorecidos. Então criamos um projeto que tem duas etapas, a de educar e a de empregar. A medida que educo vou usando a minha rede de influenciadores para ajudar a dar empregabilidade para essas pessoas que preparamos para o mercado. Tem muitos presidentes que querem ajudar. Muitas pessoas acham que tratar da inclusão não é tão simples.

E quais são os resultados?

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Já tem uma turma de 40 pessoas formadas, com mais de 50% empregados. E estamos formando a segunda turma. Atualmente dei uma brecada no programa porque estamos criando uma plataforma que dê condições para influenciadores de empregabilidade em outros estados do país. Tudo é muito devagar porque faço com o dinheiro do meu bolso. Em relação aos resultados, tem gente em vários lugares como na Sephora, Swarovski e Magazine Luiza. São pessoas que a gente quer, de fato, que puxem o próximo, e que as meninas pratiquem a sororidade de um forma fiel. A finalização do curso é o início da jornada, então não pretendo deixá-los por aí. Dar emprego e a condição à pessoa para comprar o próprio alimento é devolver a dignidade para ela.

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