Não existe princesa dessa cor, tia. Essa cor é muito feia. Ela é muito feia, olha o cabelo dela. Essas foram as frases que motivaram duas professoras de Vitória a trabalhar com crianças de 5 e 6 anos questões ligadas à identidade, representação e cultura africanas.
Tudo começou quando professoras do Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei) Doutor Thomaz Tommasi, em Joana DArc, decidiram mostrar às crianças fotografias que representassem o continente africano. Mostramos o continente, explicamos que era formado por vários países, falamos da proximidade com o Brasil, contou a professora Lívia Costa Araújo.
Em certo momento, a reação das crianças, inclusive as negras, surpreendeu as educadoras. Começamos a passar imagens da selva, dos animais e tudo bem. Até chegarmos na parte em que mostramos crianças africanas. Nesse momento, algumas crianças falaram coisas como cruzes, que nojo!, credo, que criança feia!. Para nós foi um choque, explicou.
Diante da reação das crianças, as professoras decidiram tratar o tema com mais empenho, mas para isso enfrentaram uma grande barreira: o preconceito. A princípio, tivemos que quebrar a resistência dentro da própria escola, contou a professora.
O pontapé do trabalho foi abrir um canal de comunicação com as famílias. Primeiro, as educadoras convocaram uma reunião com os pais, para explicar o projeto e falar da importância de tratar o tema com as crianças, já que episódios de racismo já teriam acontecido na turma.
A gente já teve um episódio na minha sala. Um dos meus alunos veio chorando e falando ele não quer brincar comigo. Perguntei o porquê e ele disse porque ele disse que eu sou preto e ele não pode brincar comigo, contou Lívia.
Depois da reunião, as professoras resolveram aplicar um questionário direcionado aos pais para saber como as famílias eram formadas. Se havia negros, quantos eram, se conheciam alguma coisa sobre cultura africana e o que achavam de trabalhar o tema.
Dentro do questionário vieram respostas do tipo: vocês vão estudar o continente africano, e na África está o Egito, porque não o Egito?, por que estudar a África e não o Brasil?. Como se não houvesse nenhum tipo de ligação, disse Lívia.
A outra professora, Rosileia Soares, também percebeu muito desconhecimento. Os pais diziam não ter nenhum conhecimento sobre a cultura africana, sendo que, na maioria dos questionários, as famílias se identificavam como pardas.
ATIVIDADES
Durante meses as crianças puderam conhecer mais sobre a cultura afra. Além dos trabalhos dentro de sala de aula, foram realizadas atividades em casa, com o objetivo de envolver as famílias.
Outras atividades, mais lúdicas, também foram realizadas. Desfiles usando turbantes, como os das princesas africanas, e aulas de capoeira também fizeram parte da rotina escolar.
No dia 26 de setembro, um ensaio fotográfico foi feito na creche. O objetivo era ressaltar a beleza dos traços negros e elevar a autoestima das crianças. O fotógrafo de A GAZETA Fernando Madeira fez imagens das 36 crianças que participaram do projeto.
Para o ensaio, as crianças se caracterizaram como príncipes e princesas africanos. As cores, turbantes e pinturas tomaram conta da escola.
Com apenas meses de trabalho, as professoras conseguiram colher frutos e notar mudanças no comportamento. Quando as meninas colocaram os turbantes para o ensaio de fotos, se sentiram princesas. Os meninos diziam que estavam parecendo guerreiros. Se hoje eu perguntar na turma quem é negro, eles vão levantar a mão. Antes não acontecia isso, disse Rosileia.
TRABALHAR AS DIFERENÇAS É FUNDAMENTAL
É na escola, e mais precisamente na educação infatil, que o ser humano tem os primeiros contatos com o outro. E é nesse ambiente, onde se apresentam as primeiras diferenças, que surge a necessidade de aprender que o mundo é um pouco maior que o que vemos em nossos quintais.
A gente cresce ouvindo que todo mundo é igual e acaba colocando todo mundo na mesma panela. Mas não, não somos todos iguais. Somos iguais nas nossas diferenças. Trabalhar isso é fundamental, afirmou a professora Lívia Costa Araújo.
De acordo com a coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab) da Ufes, Patrícia Rufino, a família é peça fundamental na hora de trabalhar temas como esse. Por mais que a escola tente construir esse processo, precisa haver um comprometimento da família. A dificuldade em processos como esses é entender que existe um componente social que se produz e reproduz na sociedade e não se encontra apenas na escola, é algo além, afirmou.
DESCONSTRUÇÃO
Segundo a psicóloga especialista em crianças e adolescentes Bianca Comério, comportamentos de julgar e reconhecer o que é feio ou bonito passam por uma questão social, de observação.
Há uma construção social que não vem só da família. É importante trabalhar a desconstrução e reconhecimento desde cedo para a criança se reconhecer, e reconhecer o outro, disse.
Sobre trabalhar temas como identidade e discriminação com crianças, a psicóloga destaca que é uma forma produzir adultos mais conscientes.
A criança, quando ainda é muito pequena, é capaz de aprender novas coisas, e reproduz esse aprendizados na vida adulta. São estereótipos enraizados, que se não forem questionados na sala de aula e dentro da família, não nos permitirá cobrar uma postura diferente diante do outro, afirmou.
Ainda segundo a psicóloga, a escola é um local onde temas como o racismo podem ser trabalhados de forma mais direta.
A escola é um espaço para essa desconstrução. É um lugar onde você aprende sobre a interação com o outro, finalizou.
ENSINO DA CULTURA AFRICANA NA ESCOLA É LEI
Trabalhar e combater o racismo em sala de aula é obrigação do educador, conforme previsto na lei 10.639/2003 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que obriga o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira no país.
Para a escritora e professora da Ufes Kiusam de Oliveira, a internet é uma ferramenta capaz de auxiliar o educador a encontrar bibliografias de qualidade para trabalhar o assunto.
Se há 10 anos a falta de literatura infantil e juvenil que retratasse histórias e personagens negros era algo real, hoje tal afirmação me soa como comodismo. Em tempos de internet, as buscas por diversos assuntos tornou-se algo muito simples para nós, inclusive para encontrar autores e livros afrorreferenciados, afirmou.
Para facilitar a busca dos educadores, Kiusam sugere obras literárias como Histórias de Princesas (2009), O Mundo no Black Power de Tayó (2013) e O Mar que Banha a Ilha de Goré (2015).
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