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Após tentarem o suicídio, eles deram uma nova chance à vida

Após tentarem o suicídio, eles deram uma nova chance à vida

Depois de muita dor, a luta por um recomeço, planos e sonhos

Publicado em 11 de novembro de 2018 às 00:33

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O cotidiano de José Netto, de 47 anos, é de dedicação e cuidado com os animais do abrigo que mantém com a esposa em Carapebus, na Serra. O espaço simples mantido com recursos próprios e por meio de doações é refúgio para cavalos, cães e gatos que, além do alimento, recebem amor, afeto e carinho.

Parece a descrição de um ambiente alegre e entusiasmado, e é. Além de acolher aqueles que abandonados não tinham “voz” para pedir ajuda, o abrigo é local de superação e reafirmação da história do homem que quis pôr fim a própria existência. Netto, como é conhecido, está entre as 1.999 pessoas que tentaram suicídio em 2017, no Espírito Santo, segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa). Mas ele também é uma das pessoas que se deram uma nova chance e agora se cuida e faz acompanhamento para ficar bem.

O dia em que atentou contra sua vida se desenhou por meio dos acontecimentos de sua vida pessoal e profissional. Faltou dinheiro para comprar ração para os animais e sustentar a família. Aflições que, sem soluções visíveis a curto prazo, fizeram com que desenvolvesse depressão.

“As contas não fechavam. Estava sempre vendo minha esposa triste. Ou a gente alimentava os animais ou se alimentava. Faltou comida. Então, a gente comprava uma latinha de salsicha, um miojo para poder sobrar dinheiro para comprar ração para eles”, relembrou Netto.

Após o período difícil, ele quer seguir em frente: “quero voltar a sair e fazer coisas que me faziam bem. Voltei a fazer planos para o meu futuro”, disse.

Problemas financeiros, como a dificuldade de manter a família e a si próprio, é um dos motivos que, em um processo lento e gradual, resulta em grande parte de atos suicidas no mundo. É o que explica o psiquiatra Ítalo Campos: “A gente sabe que a quebra econômica corresponde a quebra de imagem dessas pessoas e promove um dificuldade de ordem emocional e psíquica.”

Mas com variadas motivações, o suicídio é segunda maior causa de mortes de jovens entre 15 e 29 anos em todo o planeta, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), e é a quarta maior da mesma faixa etária no Brasil.

No Brasil o índice foi de 5,8 por 100 mil habitantes em 2016 e no Espírito Santo 4,4. Nesse cenário os homens concluem mais seus atos por meios mais agressivos, enquanto as mulheres lideram as tentativas.

TRÊS TENTATIVAS

Jéssika Pimenta Lé Amorim tem apenas 21 anos. Está no início da fase adulta. É casada e possui diversos sonhos e planos de vida, e tentou suicídio três vezes. Está em tratamento contra a depressão e busca em sua atividade como manicure uma forma de ressignificar sua vida.

“O meu trabalho me faz sentir viva. Às vezes faço unhas de graça porque é algo que me dá prazer”. Ela conta que nunca quis morrer, e sim viver de forma feliz, longe dos medos e aflições do passado.

11/11/2018 - Jéssika Pimenta Amorim tentou suicídio três vezes devido a depressão. Recuperada da doença, Jéssika encara a vida com felicidade . (Bernardo Coutinho)

O pai morreu quando ela tinha 5 anos de idade. A menina tímida cresceu em torno das dificuldades psíquicas que os términos dos relacionamentos da mãe a causavam. Angústias que acreditava que teriam fim ao se casar e ter filhos. Entrando, descobriu que não poderia engravidar e adoeceu. As tentativas de suicídio eram para tentar acabar com a dor que sentia por não poder mais construir sua família da forma que sonhou ainda quando criança.

“Não queria tirar minha vida e sim minha dor. Não consigo explicar como seria essa dor, essa ansiedade. Era uma coisa que parece que machucava o coração. Dava tremedeira, não dava vontade de comer. Já fiquei quatro dias sem tomar banho, só deitada na cama”, relembra. “Já comprei uma boneca para falar que era minha filha por não poder ter uma”, completou.

VIDA QUE SEGUE

O tempo passou e Jéssika segue em busca da realização de seus sonhos. Não se relaciona com alguns familiares que disseram que “depressão é coisa de gente à toa”. Hoje, se dedica à atividade como manicure e pretende adotar uma criança. “Às vezes acho que não vai dar certo, mas meu marido me ajuda e seguimos em frente”, disse.

Netto também segue o tratamento contra a depressão, mas às vezes o passado o assombra. Ficou três meses internado em uma clínica psiquiátrica, e voltou a fazer as coisas que mais gosta na vida: cuidar dos animais e se encontrar com colecionadores de carros antigos.

“O que é preciso fazer é resgatar o valor da vida”

O alto índice de suicídio no mundo provoca reflexões que nos tiram o conforto. O que leva uma pessoa a pôr fim a sua própria vida? O que aconteceu com suas relações sociais? Isso poderia ser evitado? Onde estavam todos que nada fizeram para ajudar? São perguntas que nos afligem, mas, diante delas, conseguimos compreender as respostas que surgem, mesmo que às vezes sejam poucas. “O que é preciso fazer é resgatar o valor da vida”, defende a filósofa Viviane Mosé.

Especialistas da área da saúde mental, psicólogos, sociólogos e filósofos tentam indicar algumas causas do adoecimento psíquico que levam ao suicídio, como problemas financeiros, e falta de relacionamentos saudáveis, entre outros fatores que levam ao desenvolvimento da depressão. Eles destacam que nosso desafio é lidar com o sofrimento, inevitável em nossas vidas. De aprender a conviver na sociedade de relacionamentos líquidos e fluidos, que com toda suas rápidas transformações nos levam a momentos de ansiedade, angústias e incertezas.

Viviane Mosé indica que a primeira coisa a ser analisada no alto índice de suicídio mundial é a falência do processo civilizatório. Desaprendemos a viver e queremos nos encaixar na cultura vigente, que exige pressa e rapidez. Deixamos de preparar o café para o papo furado com os amigos, dançar, se divertir e construir laços presenciais.

"Muitos sentem que não conseguem se encaixar na roda da civilização, quando na verdade essa é uma 'roda torta'", diz Viviane Mosé. (Fred Loureiro Secom)

“Muitos tiram sua própria vida porque não conseguem se encaixar na roda da civilização, quando na verdade essa é uma ‘roda torta’, que está em crise”, pontua Viviane.

FELICIDADE PAGA

A dificuldade financeira é um dos fatores que levam à depressão e possíveis tentativas e atos suicidas. O psiquiatra Ítalo Campos explica que, para os seres humanos, que sempre carregam uma falta, é preciso haver complemento existencial. Surgem novidades, novos produtos a cada dia e nossa capacidade de compra e de ser feliz está toda hora sendo posta à prova.

“A gente sabe que a quebra econômica, que corresponde à quebra de imagem dessas pessoas, promove uma dificuldade de ordem emocional e psíquica. A ansiedade promove suicídios lentos e não tão explícitos”, conclui o psiquiatra.

Para Viviane Mosé, para quem tem uma família constituída, é preciso fortalecer a existência dos filhos nesse momento. Um pai que tira a própria vida esquece o que realmente importa. “Nunca pais devem se matar porque não conseguem sustentar seus filhos. Nada pior para eles. Os pais para a gente são nossa referência de vida. Vê-los lutando sem dinheiro, por exemplo, te fortalece a lutar pela sua vida”, salienta.

SAÚDE PÚBLICA

Segundo a psicóloga Keli Lopes Santos, os números de tentativas e atos de suicídio não correspondem à realidade no Brasil e no Espírito Santo – os índices podem ser ainda maiores. É que muitos casos não são notificados, o que prejudica a elaboração de políticas públicas de atenção à saúde mental.

Ítalo Campos salienta as dificuldades para se conseguir atendimento psicológico e psiquiátrico no Brasil. No Espírito Santo, a espera para marcar a consulta com um psiquiatra pode levar três meses.

“A assistência a saúde mental no Brasil é ridícula. O índice de suicídio mostra como nossa sociedade está angustiada pelos fenômenos psicossociais que estamos passando, mas não temos espaços de prevenção que deveríamos ter”, disse.

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