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Capixaba relata ter sido abusada aos 13 anos por João de Deus

Capixaba relata ter sido abusada aos 13 anos por João de Deus

Segundo vítima, caso aconteceu na casa do médium, em Abadiânia, Goiás. Ela afirma que foi ao local com a família depois que a mãe recebeu diagnóstico de câncer

Publicado em 14 de dezembro de 2018 às 17:41

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Ele pediu para segurar o pênis dele e me perguntava se eu queria a cura da minha mãe

Funcionária pública, de 36 anos
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O relato acima, cruel, retrata o medo de uma menina de apenas 13 anos de idade - que brincava de boneca na rua e nunca tinha visto um homem nu - de perder a mãe diagnosticada com câncer de mama em 1992. Na casa onde o médium João de Deus atende pessoas do mundo todo, ela passou por uma situação que nunca esqueceu, mas guardou em segredo. Para a própria mãe, só contou no ano em que ela faleceu, 2001. Vergonha, medo e falta de entendimento a levaram ao silêncio, quebrado nos últimos dias, após outras mulheres denunciarem abusos do médium. O número de denúncias já passa de 300

Aos 36 anos, a funcionária pública capixaba, que não será identificada, conta o dia de horror que viveu e as consequências do abuso que afirma ter sofrido. Nesta quinta-feira (13), ela deu uma declaração a uma promotora do Ministério Público sobre o caso e espera que João de Deus seja preso. O médium teve prisão decretada nesta sexta-feira (14).

De acordo com o Código Penal Brasileiro, no capítulo referente aos crimes contra a liberdade sexual, o ato de estupro não é entendido apenas como 'conjunção carnal', mas como qualquer prática de ato libidinoso realizada contra a vontade da vítima, sob violência ou ameaça. No caso do ato ter sido praticado com menor de 14 anos, além de a pena se agravar (8 a 15 anos de reclusão), não importa o consentimento da vítima para que o crime ocorra.

Veja a entrevista abaixo.

Como tudo aconteceu?

Eu comecei a frequentar a casa (de João de Deus) entre 1992 para 1993, quando a minha mãe foi diagnosticada com um câncer de mama e eu comecei a ir na casa acompanhando a minha mãe. Isso eu tinha 11, 12 anos. Passado alguns anos, eu sempre acompanhava a minhã mãe nas correntes de oração e, em um desses anos, já com 13 anos, ao passar pela corrente em que ele recebia as pessoas, ele solicitou que eu fosse ficar em uma sala em que ficavam os médiuns que davam força para ele trabalhar. Então eu fui. Fiquei sentada nessa corrente umas duas horas. No final dos trabalhos da casa no período da manhã, ele solicitou que todos aqueles médiuns que estavam na sala passassem por ele. Eu fui depois que terminaram os trabalhos. Passei junto com a minha mãe. Ele falou para a minha mãe que queria fazer uma oração especial. Logo ele chamou. Quando a minha mãe foi entrar, ele falou: 'A senhora, não. Só ela'.

Respira fundo...

Então eu entrei, e ele perguntou o que eu estava fazendo ali. Falei que eu estava buscando a benção da cura da minha mãe, que estava com câncer de mama. Ele disse que nós íamos fazer uma oração por ela. 

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Ele disse que tudo que ele fizesse seria uma oração para a minha mãe. Então ele me virou de costas. Pediu para eu abaixar a minha bermuda. Eu abaixei a minha bermuda. Ele puxou a minha mão direita para trás já para segurar o órgão genital dele que estava ereto

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Uma pausa. 

Falar disso... É. Mexe com as feridas que ficaram tanto tempo guardadas. Ele pediu para segurar o pênis dele e me perguntava: 'Você quer a cura da sua mãe?'. Eu falava: 'Sim, quero muito'. 'Então onde você quer que coloque isso?'. Aí eu fui colocando em volta do meu quadril, porque eu não tinha nem noção do que era aquilo que estava na minha mão. Eu era uma menina, eu brincava de boneca na rua. Fui colocando, e ele falou: 'Só aí?'. Eu abria o olho tentando ver alguma coisa e ele me mandava fechar: 'Fecha o olho, senão a sua mãe não vai receber a cura'. Eu ia colocando no meu quadril, na minha cintura, ia rodeando no meu quadril com o pênis dele ereto na minha mão.

Teve uma hora que senti a minha mão melada. Ele muito nervoso, perguntava: 'Mas aonde que você quer?'. Eu chorava muito, não lembro direito se eu respondia. Mas eu lembro até hoje do cheiro, daquela sensação da mão molhada. Do meu nervoso, eu queria abrir o olho, queria gritar, mas a busca da cura da minha mãe era em primeiro lugar. Ele tentou por várias vezes, eu muito nervosa. Até que ele falou assim: 'Sai daqui, a sua mãe não vai ficar curada não' (aos gritos). 'Veste essa roupa, saí'. Muito nervosa, vesti a roupa, ele se recompôs, abriu a porta e mandou eu sair.

Reação da mãe.

Eu chorando, a minha mãe me perguntou o que foi? Tadinha, ela perguntou: 'Revelou que eu vou morrer?'. Fiquei chorando, não falava nada. Lá eles serviam uma sopa. Minha mãe disse pra gente tomar, mas eu falava que não queria. Fui para a pousada, a minha mãe sem entender. Por muitos anos a minha mãe ficou sem entender o que tinha acontecido comigo. Eu sem saber direito o que era. Depois de alguns anos, que a gente vai ficando mais mocinha, que a gente vai entendendo o que era aquilo, eu ficava com muita vergonha. Sou filha única, meus pais sempre zelaram por uma educação tradicional, a gente não conversava nem de sexo. Nunca vi a minha mãe nem nua na minha frente. Aquilo pra mim era uma vergonha muito grande. 

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Antes de a minha mãe falecer, a gente estava conversando, no ano mesmo que ela piorou, em 2001, um dia a gente conversando que não tinha dado certo essas nossas idas lá em Abadiânia. O câncer tinha voltado e dado metástase. Então ela me perguntou por que eu deixei de ir, de acompanhá-la. Aí eu acabei contando para a minha mãe o que tinha acontecido. Nós duas choramos muito. E meu pai não podia saber, porque meu pai tinha muito zelo por mim. Meu pai ficou sem saber, e eu guardei esse segredo por muito tempo.

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Quando decidiu falar?

Até que veio essa matéria ao ar no programa do Bial, de sexta para sábado, foi que tudo veio à tona e eu falei: 'Caramba! Eu não sou a única. Tirou até um peso, porque, até então, eu achava que eu era a errada da situação, que ele viu alguma coisa diferente apenas em mim. Foi aí que a gente (ela e o marido) começou a procurar, a ter contato e decidir contar, porque outras pessoas, assim como eu, tenho certeza que já passaram por isso. Inclusive saíam muitas excursões aqui de Vitória pra Abadiânia. Iam muitas mocinhas como eu acompanhando as suas famílias. Tenho certeza que outras mulheres, que hoje devem ter a minha idade, também passaram por esse abuso, por esse assédio e estão com medo de falar. Mas a gente precisa falar para esse homem receber uma punição devida. Tem muita mulher calada, sofrendo. Graças a Deus eu dei a volta por cima, mas tenho certeza que muitas mulheres têm isso no seu interior com muitos bloqueios psicológicos. Então foi isso que registrei ontem, a minha declaração que, somada a outras tantas, será encaminhada para as providências cabíveis.

Você foi a primeira capixaba a fazer uma denúncia?

Sim. Até então, a doutora não tem conhecimento de outra.

O abuso aconteceu uma única vez?

Sim. Até porque eu não retornei mais.

A sua família continuou indo?

Meus pais continuaram indo em busca da cura, mas eu não ia mais. A minha família era católica e ia na esperança de ter a cura da minha mãe. Hoje, já com a evolução da Medicina, o diagnóstico de câncer é assustador, preocupante. Imagine lá em 92, quando o câncer ainda mais novo, tinha-se muito preconceito. A gente na ânsia de buscar, tudo que falavam, os meus pais buscavam para a cura. E Abadiânia foi uma coisa que o meu pai principalmente buscou com muita fé.

A sua mãe faleceu em 2001?

Sim. O meu pai veio a falecer em 2005 sem saber o que aconteceu. Minha família não tem como saber, porque éramos nós três. Eu filha única não tenho mais como compartilhar, a não ser com a Justiça e o meu esposo atual.

O fato de o seu pai não ficar sabendo deu mais força para você falar?

Exatamente. Vendo que há pessoas de várias idades e inúmeras vezes abusadas. Apesar de ser uma coisa que está guardada, machuca, é uma coisa nojenta de se falar, é constrangedor. Mas eu acredito na Justiça e creio que, juntas, todas essas mulheres relatando têm que ter uma punição para esse homem. Ele fica usando o nome de Deus em vão e brincando com a fé de milhares de pessoas que vão a Abadiânia em busca de uma cura. O trabalho lá, em si, é muito bonito, é muita oração. Nunca, ninguém que não passou, vai imaginar que uma sujeira dessa acontece.

Você era uma menina que brincava de boneca. Como você ficou?

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Hoje, ao falar disso, sinto aquela sensação de incerteza, de confusão mental. Só sei que eu chorava muito, porque eu não sabia o que era um pênis. Eu não sabia o que era aquilo na minha mão. Só lembro de tremer, tremer. Era uma tremura por dentro, um choro. Apavorada com o que era aquilo, porque eu nunca tinha visto. Eu chorava muito.

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Meus pais até brigavam comigo porque eu não viajar com eles. Por ser filha única, tinha que ficar na casa de algum amigo quando eles iam viajar para lá. Eu não ia, criou um bloqueio. Não entendia por que comigo aquela sujeira. Eu via uma coisa suja, porque o cheiro... tá na lembrança, na memória, aquela sensação ruim foi o que ficou. Eu sabia que não era certo, porque estava escondido, a sala meio escura, eu de olho fechado, ele muito nervoso. Nunca fiquei sozinha com homem nenhum. Meu pai tinha muito resguardo comigo. Aquilo me marcou muito. Mas como o foco da nossa vida de 1992 a 2001 foi a cura da minha mãe, acho que preencheu essa lacuna, esse horror que aconteceu pela esperança de a minha mãe ficar boa. Consegui passar sem maiores traumas por isso porque a gente estava em uma luta incessante pela cura dela. Depois que ela parou de ir, ela começou a fazer tratamentos médicos porque o câncer voltou. Minha vida não foi fácil. Acho que não tive muito tempo de guardar isso pra mim de forma negativa.

 

Ela chegou a ser curada em algum momento?

Quando ela começou a ir, por uns dois anos, fazia-se o acompanhamento no hospital e houve sim uma estagnação da doença. O tratamento era só espiritual. Ela não chegou a tirar a mama, porque ia seguir só o caminho espiritual. Por dois anos, ela estava praticamente curada. Só que em um desses exames periódicos viram a metástase para a coluna e foi o que acometeu ela de morte. De fato, ela não estava curada, porque o câncer estava lá e tomou os órgãos dela. Ela morreu depois de sete anos da descoberta da doença.

Como você contou para o seu marido?

Foi no ano passado. A gente conversando sobre essas questões de abuso, a gente falando da crueldade de como acontece... Um dia eu falei com ele que isso deve ser horrível, porque tenho isso dentro de mim. Ele me perguntou como eu tinha isso dentro de mim. Fui começar a conversar com ele. Contei o que aconteceu, ele já conhecia o trabalho do João de Deus, que tem uma casa em Cariacica. A minha mãe chegou a frequentar essa casa. Ele vinha aqui com frequência. Ele falou: 'Nossa. Já levei os meus pais lá. Será que isso também acontecia aqui?'. Isso ficou adormecido. Quando foi na madrugada do programa (de Pedro Bial), ele me acordou. Eu meio que dormindo, meio que acordada, vi um pouco do relato da bailarina e acabei adormecendo. No sábado acordei e perguntei pra ele se era sonho ou verdade aquilo. Aí assistimos a reprise no programa na TV fechada. Falei: 'Não é possível que tem tanta mulher assim'. Aí começou a busca. Logo mandei o meu relato para a editora do programa do Bial. Se já apareceu uma, vai aparecer mais. Desde esse final de semana, a gente tem buscado contar a minha experiência com esse tal de João do capeta, porque ele não é de Deus, que Deus não autoriza esse tipo de coisa. Eu tenho certeza. Deus quer o nosso bem.

Essa sala que ele levou você bate com a descrição do banheiro que as mulheres falam?

A minha lembrança era como se fosse uma sala, com um sofá, tinha uns quadros de entidades, de Jesus. Não era iluminado. Não lembro do banheiro. Lembro que fiquei no meio dessa sala, como se fosse um quarto, e foi ali que aconteceu esse episódio. Ele não me deixava ficar com os olhos abertos e sempre com a minha mão segurando o pênis dele. Se você hoje, com 36 anos, eu ia reagir de outra forma. Mas eu não tinha reação. Eu queria a cura da minha mãe. Aquilo ali pra mim era a cura.

Como foi se relacionar com outros homens?

Falo que sou uma pessoa antes e depois de 2001. Até 2001, eu vivi em prol da minha mãe para buscar cura e tratamento. Depois de 2001, comecei a viver, a sair. Já tinha o meu emprego. Ela faleceu eu tinha 19 anos. Só com 21 anos que eu fui ter relação, até porque eu tinha muio receio, medo de ter aquela sensação que eu tive aos 13 anos. Foi depois de muito tempo de namoro, com uma pessoa que eu confiei. Depois disso, deixei esse episódio adormecido dentro de mim e não fiz disso um empecilho.

Qual será o próximo passo?

A doutora (promotora do MPES) ontem depois de colher a minha declaração, que ainda não é um depoimento, vai enviar para o órgão superior da Justiça, que vai juntar com os demais relatos para tomar as providência cabíveis. Se tiver outras mulheres, procurem a promotoria, procurem falar. Tenho certeza que não sou eu apenas no ES que fui abusada por esse monstro, porque nas excursões tinham moças como eu. A gente não pode se calar. Ele é um homem poderoso? É. Mas para Deus não é nada impossível. Quero que as mulheres tenham força, não é fácil. Tenho essa força toda porque para mim está bem resolvido dentro de mim, mas pode ser que para outras mulheres tenha sido mais doloroso do que pra mim. Acho que ele não ter conseguido finalizar o ato, não me deixou tantas sequelas.

O que você sente depois de tantas denúncias?

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É uma questão de alívio ver que outras mulheres estão denunciando esse monstro que usa o nome de Deus em vão. Peço só que as outras mulheres tenham essa mesma força. A vergonha é para ele. Que a gente tenha força para se unir e colocar esse homem onde ele tem que estar, que é na cadeia.

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