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Juiz ajuda ex-interno do Iases a entrar na faculdade de Direito no ES

Juiz ajuda ex-interno do Iases a entrar na faculdade de Direito no ES

Após pedido, juiz disse que ajudaria interno a cursar Direito

Publicado em 24 de dezembro de 2018 às 01:15

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O jovem viu na terceira apreensão a chance de mudar seu futuro. (Marcelo Prest)

A promessa do juiz despertou um sonho oculto: se concluísse o ensino médio e fizesse a prova do Exame Nacional do Ensino Médico (Enem), ele conseguiria uma vaga em uma faculdade para que o jovem, na época com 17 anos, pudesse fazer um curso de Direito.

João Pedro – nome fictício – saiu da sala sem acreditar no que ouvira. “Podia ser apenas mais uma ‘fala de político’”, pensou. Mas, no fundo, uma pergunta não calava: “E se for verdade”. Ele era um dos quase mil jovens internados em uma das unidades do Instituto de Atendimento Socioeducativo (Iases), no Estado.

Era a terceira medida socioeducativa que cumpria. As duas primeiras foram em liberdade, mas a última, mais grave, resultara em sua apreensão. Cometera um ato infracional análogo ao homicídio. Sabia que iria passar de seis meses a três anos internado. E já tinha percebido que, naquele local, o melhor era tentar reverter a situação a seu favor, e aproveitar o que tinham a oferecer.

Mas não era fácil. “É um conflito diário. Pensava: fico e tento mudar, entrar nesse sistema, ou fujo. E o que não faltam são conselhos para fugir”, conta João Pedro.

Pesaram muito em sua decisão os encontros com os pais, que mesmo separados, não deixavam de visitá-lo. Mas no dia do seu aniversário, ver a mãe, mesmo operada dos dois pés, enfrentar uma longa viagem e caminhar por uma estrada de chão com um bolinho para comemorar com ele, o afetou. “Chorei muito naquele dia. Foi quando comecei a pensar que tinha que mudar, dar o melhor de mim para não decepcioná-los.”

Além dos cursos profissionalizantes que eram oferecidos, lançou mão da Educação de Jovens e Adultos (Eja) para concluir o ensino médio, que abandonara no primeiro ano. “A equipe técnica e os professores me apoiaram e fiz o Enem. Tive uma boa pontuação, 889 pontos, e consegui passar em duas faculdades”, conta o jovem, emocionado.

O retorno

Era a hora de cobrar a promessa do juiz da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Vitória, Vladson Couto Bittencourt, a quem o pedido do jovem também tinha surpreendido. Nos últimos oito anos, o juiz relata que tem procurado incentivar os jovens internados a terem sonhos mais altos e a longo prazo. “Nas reuniões que faço com eles percebo que há adolescentes que não sabem nem o que é uma faculdade”.

Por isso, o impressionou o pedido de João Pedro. “Era a primeira vez que um adolescente me relatava que gostaria de fazer Direito e me pedia ajuda para fazer uma faculdade porque sua família não tinha recursos”, relata.

Nos meses que se seguiram, o bom desempenho escolar do adolescente indicava que ele conseguiria vencer os obstáculos. “O que me surpreendeu novamente foram as notas dele no Enem, principalmente a de redação”, conta Vladson.

Em uma nova inspeção, o jovem veio com outra novidade: uma carta onde relatava toda a sua história e informava que tinha conseguido concluir o ensino médio e passar em duas faculdades. O juiz então arregaçou as mangas em busca de vagas nas particulares.

As respostas demoraram, o jovem teve a sua medida socioeducativa extinta (cumprida) com um ano e oito meses e foi liberado. “Nossa angústia era grande, queria que ele tivesse saído já com uma vaga definida”, conta o juiz, que chegou a pagar a matrícula de João Pedro em uma faculdade que tinha oferecido 50% de desconto. “Quando fiz a promessa, estava disposto a pagar o curso inteiro caso não conseguisse uma bolsa.”

Em menos de dois meses a situação virou quando uma outra faculdade ofereceu bolsa integral. “O reitor ficou surpreso com as notas dele em redação e com o seu desempenho no Enem”, conta o juiz, sem esconder o orgulho do jovem que ainda acompanha, monitorando até o seu desenvolvimento em sala de aula.

Mudança

Para o defensor público Renzo Gama Soares, que coordena o Núcleo da Infância da Defensoria Pública, o adolescente João Pedro representa alguns dos casos bem sucedidos de jovens que deixam as unidades de internação do Iases e conseguem seguir com suas vidas, sem reincidência na criminalidade. “Não temos dados, mas os que reincidem são poucos em relação aos que deixam as unidades, embora se fale mais dos que voltam à criminalidade”, pondera.

No caso de João Pedro, ele avalia que contribuiu para o seu desenvolvimento o fato de ter uma escolaridade mais avançada do que a maioria dos jovens internados, que estão no 6º ano. Com o apoio da família, conseguiu romper os vínculos com o tráfico, mudou de cidade e recomeçou sua vida. “São fatores essenciais para o jovem mudar o rumo de sua história”, destaca.

Já faz um ano que João Pedro deixou a unidade e está cursando a faculdade. Desde então, o juiz tem contado a história dele em todas as inspeções para outros adolescentes. “Fico sempre na esperança de que outro adolescente levante a mão e faça o mesmo pedido. Mas até hoje isso não aconteceu”, lamenta.

"A minha apreensão foi a minha liberdade"

Aos 19 anos, João Pedro – nome fictício –, não tem dúvidas: “Minha apreensão foi a minha liberdade”. Ele deixou uma das unidades de internação do Instituto de Atendimento Socioeducativo (Iases) há quase um ano, mas, nas suas contas, a mudança que vivenciou e que o levou à sonhada faculdade começou no dia em que foi apreendido.

Uma trajetória que transformou por completo a sua vida em menos de dois anos, impactou a vida de sua família e também os membros do Judiciário que acompanharam o seu dia a dia.

Qual foi a etapa mais difícil?

Receber a medida de internação, saber que ficaria internado por um período de seis meses a três anos. O mundo desabou na minha cabeça. Meu pais estavam separados, eu apreendido, tinha abandonado a escola, estava sem perspectiva de vida, sem renda, num local nada agradável e com medo de ser morto. Como respondia por ato infracional análogo a homicídios, imaginava ainda que poderia haver retaliação, algum tipo de vingança.

E o que fez?

Chorei muito. Fiquei revoltado, pensei em fugir, em não perder tempo ali. Foi complicado aceitar que teria que ficar naquele local. Quando me apresentaram o manual da unidade, li tudo. Fiquei pensando se era verdade o que diziam, se tinha chance de usar aquela situação como oportunidade. Porém, o que pesava era ver os meus pais, em dia de trabalho, irem me visitar. E mesmo chovendo, enfrentavam estrada de chão, uma viagem longa de sua cidade até outra na Grande Vitória. Foi quando comecei a pensar que tinha que mudar, agarrar a oportunidade, dar o melhor de mim para não decepcioná-los.

E o que te levou à internação?

Aos 14 anos, logo após a separação dos meus pais, numa fase de rebeldia, me envolvi com companhias complicadas e que resultaram na minha primeira medida socioeducativa por assalto à mão armada. Aos 17 anos, fui apreendido novamente pelo mesmo motivo. Depois teve uma outra situação de ato análogo à homicídio que resultou em minha internação.

E o sonho da faculdade?

Cheguei à unidade quase no final do ano de 2016 e consegui terminar o primeiro ano do ensino médio, pelo Eja. No ano seguinte, fiz o segundo e o terceiro anos. A defasagem dos alunos nas unidades é tão grande que no terceiro ano só tinha eu na sala, o que muito me ajudou. Nesse intervalo teve uma inspeção na unidade, feita pelo juiz Vladson e foi quando ele perguntou quem dentre nós gostaria de fazer uma faculdade. Fui o único a levantar a mão e pedir ajuda. Ele se empolgou e falou que seu eu fizesse o Enem e fosse bem, ele conseguiria uma vaga em uma faculdade, ou pagaria do seu próprio bolso. Saí de lá sem acreditar muito. Parecia “conversa de político”. Mas no fundo, ficou a dúvida animadora. E se for verdade?

Decidiu fazer o Enem?

Sim, comecei a estudar muito. Os professores e a equipe técnica me ajudaram, me estimularam a focar na redação. Fiz a prova e consegui uma boa pontuação, 889 pontos. Fiz ainda dois vestibulares e passei em Direito. Aí ocorreu a nova inspeção e chegou o dia de mostrar o resultado para o juiz. Li uma carta para ele contando a minha história e falando dos resultados. Era algo novo também para ele, que garantiu que cumpriria a promessa.

Você acabou tendo a sua medida socieducativa extinta (cumprida) antes de obter a vaga.

Sim. Fui para casa e comecei a procurar emprego, mas não conseguia nada. Fui ao setor de egressos do sistema e comecei a fazer todos os cursos que ofereciam. Não queria perder nenhuma oportunidade. Meus pais se casaram novamente e estávamos morando em outra cidade. Cortei os laços com as amizades anteriores, mas não queria ficar à toa. Fiz uma seleção para um curso técnico público e passei entre os dez primeiros. Mas sonhava com a faculdade. Uns dois meses depois o juiz me ligou e fomos a uma reunião com um reitor. Ele concedeu uma bolsa integral. Não dá nem para descrever a minha alegria. Minha família fez uma festa. Ia começar a viver meu sonho.

E os planos para o futuro?

Quero terminar o curso técnico, a faculdade, fazer a prova da OAB, advogar por uns anos e depois fazer um concurso para a Defensoria ou Ministério Público. Mas o meu foco é a magistratura. Quero a cadeira do doutor Vladson (risos). Vejo as pessoas falando que não há jeito para os adolescentes infratores e entendo, é difícil acreditar em mudança com tantos roubando e matando. Mas elas acontecem. E quero ajudar outros, como o juiz está me ajudando.

O que aprendeu com sua trajetória?

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Não posso falar que a unidade de internação é o melhor lugar do mundo, não é. Pelo contrário, é complicado e conflitante, mas se a pessoa se permitir mudar, funciona. Lá recebi apoio e oportunidades. Hoje não tenho dúvidas de que a minha apreensão foi a minha liberdade.

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