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US$ 20 milhões a receber de Dubai. O golpe mais bizarro via Instagram

US$ 20 milhões a receber de Dubai. O golpe mais bizarro via Instagram

Uma árabe poderosa, uma morte repentina e uma conversa fiada no Instagram. Por 8 dias, testei a paciência de alguém interessado em documentos pessoais ou dinheiro fácil

Publicado em 17 de dezembro de 2018 às 14:10

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Entre uma curtida e outra em fotos das vidas alheias, a notificação da minha caixa de mensagem fez o polegar respirar. Será um vídeo engraçado ou um amigo apresentando mais uma de suas inatingíveis - porém bem intencionadas - metas amorosas? Para minha surpresa, um golpe. Uma tentativa de golpe contra mim. Alguém claramente interessado em roubar minhas informações pessoais ou em me tomar algum dinheiro.

A apresentação se dá em nome de uma "diretora financeira" de um banco de Dubai. Mesmo assim, convencionemos tratar o interlocutor ou interlocutora como o golpista, no masculino. A narrativa se desenvolve em torno de uma morte, mas não há motivo para consternação. São tantas as lacunas da história contada que é difícil acreditar que alguém seja capaz de se convencer a respeito.

Em síntese: um homem com o mesmo sobrenome que o meu, Valfré, e sem herdeiros morreu em Dubai. Em casos assim, diz o golpista, o banco se apropria da herança do defunto. A "diretora" não acha justo que esse seja o fim de tanto dinheiro de uma pessoa física. Então, faz uma busca aleatória no Instagram, até que me encontra. Se o sobrenome é igual, posso me passar por parente, diz ela. Propõe uma transação abaixo de todas as suspeitas: eu me passo por parente do Mr. John e aceito dividir 50% da bolada.

A "diretora financeira" fala em US$ 20.000.000,00. Assim, redondinhos, escritos com todos esses zeros. Dez milhões para cada. Penso: "é verdade esse bilete".

A TEORIA DE VEITCH

Tenho duas opções: uma é ignorar solenemente o golpista e bloqueá-lo. A outra é buscar inspiração no escritor e comediante britânico James Veitch e tentar fazer com que outras pessoas não caiam na mesma cascata.

Veitch passou a responder spams com ofertas e chances absurdas que recebia por e-mail. Ele acredita que, fazendo isso, gasta o tempo de golpistas e evita que outras pessoas sejam vítimas das enganações. Prolongava conversas por semanas com pessoas mal intencionadas para que as investidas golpistas chegassem a lugar algum. 

A paciência rendeu a ele um livro a respeito e algumas apresentações no TED Talks, o conjunto de conferências sobre ideias variadas que "valem a pena ser disseminadas".

O caminho pela opção veitchiana requer alguns cuidados extras. Uma segunda conta de e-mail é fundamental, uma vez que o endereço pode virar alvo de novos spams. Além disso, aciono editores do jornal, um especialista em segurança da informação e um policial civil.

Crimes eletrônicos podem ser sofisticados e enganar, sobretudo, pessoas menos familiarizadas com os riscos da internet. Portanto, é melhor não fazer isso em casa - embora Veitch recomende o contrário. Um descuido pode trazer sérias dores de cabeça.

Entre a primeira e a última mensagem da conversa com o golpista do Instagram passaram-se oito dias. Não é possível saber se o bate-papo prolixo evitou outras vítimas, mas algumas horas da pessoa mal intencionada por trás de um perfil falso foram saborosamente desperdiçadas.

A primeira etapa do diálogo foi a seguinte, mantidos os erros gramaticais e de digitação:

Além de um bom coração, ele também escreve em português perfeitamente mesmo sendo "kwaitiano". Só que não.

O golpista se passa por Maha Khaled Saleh Al-Ghunaim. A verdadeira é nascida no Kwait e é uma executiva respeitada. Fundou, em 1998, o Global Investment House, uma importante firma de investimentos no Oriente Médio e no exterior. Segundo o Arabian Business, Al-Ghunaim lidera outras empresas de alto padrão no Oriente Médio.

"Eu comecei de baixo, aprendi como as coisas são feitas e gradualmente fui subindo a escada", disse ela ao jornal árabe, que a registrou como uma dos 100 mais poderosas árabes de 2018. O perfil dela na Bloomberg também não deixa dúvidas de que ela jamais arriscaria uma vida de sucesso nos negócios por um golpe mal produzido no Instagram.

A farsa da conversa sobre os US$ 20 milhões não resiste a uma simples busca reversa no Google. A foto usada no perfil falso que se passa por ela no Instagram é da Forbes. A famosa revista americana considerou Maha Al-Ghunaim uma das 100 mulheres mais poderosas do mundo inteirinho, em 2010.

Após as primeiras mensagens, o golpista prossegue. Apesar das elevadas doses de ironia, quem estava por trás do disfarce segue com a conversa sem sentido. Insiste com a ficção.

Em crimes como esse, golpistas costumam oferecer uma vantagem alta, mas pedem algo em troca. E é com essa contrapartida que eles realmente lucram. Às vezes, pedem uma quantia em dinheiro. Pequena, se comparada com a fortuna que a vítima (não) receberá.

Ainda não sabemos o que será pedido em troca. Nesta outra etapa do diálogo, o golpe começa a ficar ainda mais claro.

Eu preciso enviar um e-mail para que a resposta venha com um passo a passo até a fortuna da qual "poderei desfrutar". Antes, pergunto se o "dinheiro" oferecido poderá ser usado para qualquer coisa. Para qualquer coisa mesmo.

O passo a passo é cômico. É um grande texto que tenta convencer sobre não haver nada errado ou criminoso na transação. Ao mesmo tempo, deixa muito claro que não posso revelar a negociação para ninguém, em hipótese alguma. "Me custaria a minha reputação que me levou anos para construir o que é mais importante para mim (sic)", diz a mensagem.

O mais interessante é o que foi pedido em troca. A lista, escrita em caixa alta, foi a seguinte:

1. NOME COMPLETO

2. DATA DE NASCIMENTO

3. OCUPAÇÃO

4. ENDEREÇO

5. CONTATO

6. NÚMERO DE TELEFONE

7. CARTÃO DE IDENTIDADE DIGITALIZADO (FRONTAL E TRASEIRO)

RISCOS

Pedi ao especialista em segurança da informação Gilberto Sudré para dar exemplos de problemas que alguém teria se entregasse dados pessoais como esses a um estelionatário. "Com estes dados, o golpista pode abrir um crediário em seu nome, comprar produtos e até conseguir um cartão de crédito como se fosse você", exemplificou. Ou seja, finalmente, entende-se a malícia por trás da história fantasiosa.

Não enviei os documentos solicitados, obviamente. Em vez disso, fiz algumas perguntas. O propósito, afinal, é ganhar tempo. Ou melhor, perder o tempo do golpista: "Antes quero saber o que pode acontecer com você e comigo se essa transação for descoberta. Alguém pode ser preso? A Lava Jato pode nos descobrir?".

Horas depois, o golpista envia nova mensagem, não mais por e-mail, mas novamente pelo aplicativo:

 

Passo a dizer que enviei todos os documentos solicitados, obviamente sem enviá-los. E sempre usando gírias e expressões populares no Kwait (#sqn). Oito dias desde a primeira abordagem, alguém é vencido pelo cansaço:

Outras mensagens foram enviadas na tentativa de retomar a "transação". Em vão. O perfil @maha_ghunaim45, no Instagram, é bem ativo. As novas mensagens eram rapidamente visualizadas, mas jamais respondidas. O dono da conta deve ter optado por alguém que não o trollasse.

NÃO CUSTA LEMBRAR

Apresentamos o caso ao policial civil Eduardo Pinheiro Monteiro, especialista em crimes cibernéticos. Ele destacou que golpes como esses são bem comuns e que desconfiar sobre facilidades vantajosas é sempre fundamental.

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"As pessoas devem sempre desconfiar de facilidades ou ofertas vantajosas que caem do céu. Cautela e desconfiança são as palavras chave para não cair nessas armadilhas que geralmente visam obter vantagem financeira ou dados pessoais para uso indevido em outros golpes. No menor sinal de desconfiança o internauta não deve agir por impulso e fornecer dinheiro ou dados pessoais, mas deve procurar duas ou mais pessoas de confiança para ajudar na tomada de decisão, que na maioria das vezes deve ser procurar uma Delegacia de Polícia para comunicar a tentativa do crime", explicou o policial.

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