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Pai de vítima morta na greve da PM: 'perdi o gosto pela vida'

Pai de vítima morta na greve da PM: "perdi o gosto pela vida"

Após morte de filho, família quer se mudar

Publicado em 19 de janeiro de 2019 às 03:17

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População protestou e queimou pneus em frente ao Quartel, em Maruípe. . (Fernando Madeira)

“Minha filha de 11 anos chama pelo irmão todos os dias. O quarto do meu filho está aqui, a cama está intacta. Mas ele não volta.” O lamento de dor vem de um pai que perdeu o gosto pela vida desde que o filho, de 17 anos, foi executado a tiros durante a greve da Polícia Militar, em 2017, em um município da Grande Vitória.

Fábio (nome fictício) lembra que, naquela noite, Luiz (nome fictício) pediu que a mãe fizesse macarrão para a janta, porque iria na esquina, mas não demoraria. Já de madrugada, a família preocupada – os tiroteios eram constantes durante a greve – recebeu via mensagem de WhatsApp a notícia de que o rapaz estava morto. “Estava circulando nos grupos”, lembra o pai.

Exército fez vigilância no Estado. Um grupo esteve na Praia do Canto, Vitória. . (Carlos Alberto Silva)

Desde então, Fábio e a esposa tentam conviver dia após dia com a saudade que o menino deixou. “A gente perdeu todo o gosto da vida. Minha esposa entrou em depressão, foi uma transtorno muito grande”, conta. Os nomes foram alterados para preservar a identidade da vítima e de seus familiares.

A GAZETA entrou contato com outros 12 familiares de vítimas de assassinato durante a greve da PM. No entanto, nenhum deles aceitou dar entrevistas. Muitos têm medo de falar sobre o assunto.

Mulheres dos PMs bloquearam saída dos militares no Quartel da corporação. (Fernando Madeira)

DOR

Para Fábio, a dor de ter perdido o filho durante a greve da polícia militar voltou à tona quando se iniciou o processo de aprovação da lei que deu anistia aos PMs envolvidos na paralisação – fato concretizado na quarta-feira da última semana. Revoltado, o pai tem dificuldade para entender o perdão total aos militares.

“Como que a polícia entra em greve, um monte de gente morre e não acontece nada? E a vida do meu filho, vai trazer quando? Isso não é resposta que se dê à sociedade.”

Por conta disso, Fábio pensa em se mudar do local onde mora com a família. Para ele, a presença da polícia deixou de representar segurança e passou a representar medo. “No morro, a polícia só sobe dando tiro. Hoje eu tenho medo quando vejo uma viatura”, diz.

Fábio não está sozinho na vontade de se mudar. O professor de Direito e pesquisador da Ufes Paulo Velten, que analisou as mortes ocorridas durante a greve, afirma que é comum que famílias que tiveram parentes vítimas de violência deixem o bairro e, às vezes, até a cidade, em busca de paz. “Há um êxodo provocado pela morte dos filhos. Uma mulher que tem um filho morto ali não fica naquele lugar. Ela teme pelos seus outros filhos. Durante a pesquisa encontramos várias famílias que tinham dois ou três filhos mortos”, disse.

PREMONIÇÃO

Junto com a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Estado (OAB-ES) ele entrevistou várias mães que tiveram os filhos assassinados durante o período da greve da PM. Segundo o pesquisador, as mortes não foram aleatórias. “Vimos organização naquelas mortes. Não foi briga simples de gangues. Foram pessoas escolhidas para morrer.”

Em comum, ele conta que as mães e pais das vítimas relataram um sentimento de “premonição” antes das mortes. “Todas as mães falam ‘eu sabia que ia acontecer alguma coisa’. É uma desesperança muito grande que as leva para um lado religioso”, afirma.

As vítimas foram, em sua maioria, negros, pobres e moradores de bairros onde a violência é constante. Paulo ainda chama a atenção para outro ponto. Dentre os adolescentes mortos no período, a maioria havia passado pelo sistema socioeducativo do Estado. O resultado das entrevistas é o documentário ”Sem saída”, lançado no ano passado.

INQUÉRITOS

O Ministério Público afirma ter recebido 454 inquéritos dos crimes de roubo e furto da época da greve da PM. Deles, 108 foram arquivados e outras 240 denúncias foram apresentadas à Justiça. Dos seis latrocínios (roubo seguido de morte) registrados durante a greve, em quatro os responsáveis foram denunciados à Justiça.

ARMA DE FOGO CAUSOU 83% DOS HOMICÍDIOS

Cápsula de arma de fogo: morte tem perfil de execução. (Fernando Madeira)

Cerca de 83% dos casos de mortes ocorridas durante o período da greve da Polícia Militar foram provocados por armas de fogo. Nos demais casos, foram utilizadas armas brancas.

Segundo o delegado José Lopes, chefe do Departamento Especializado de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), as mortes têm perfil de execução e não de contextos de confronto. “Como não havia Polícia Militar nas ruas, o caos começou a se instalar e muitos criminosos aproveitaram para pegar os desafetos”, explica.

O pesquisador e professor de Direito da Ufes Paulo Velten teve acesso a laudos periciais que confirmam esse fato. “Vimos muitos casos de tiros na nuca, na cabeça ou no peito. Alguns até com armas grandes como fuzil”, diz.

As balas acertaram principalmente homens jovens, negros ou pardos, moradores das periferias. Mais de 90% das vítimas de crimes dolosos durante o mês de fevereiro são homens, 218 no total. Dezessete mulheres morreram.

Dentre as faixas etárias, se destacam aqueles entre 15 e 19 anos – 62 mortos – e 20 e 29 anos – 73 mortos. Há 10 vítimas menores de 14 anos. Dentre eles se destaca Adriano Martins, de 7 anos, atingido por uma bala perdida enquanto brincava na rua em Guarapari.

PM'S SÃO INVESTIGADOS POR MORTES

A Polícia Civil afirma que há militares sob investigação nos inquéritos que apuram os responsáveis pelas mortes ocorridas fevereiro de 2017, durante a greve da PM.

De acordo com o delegado José Lopes, chefe do Departamento Especializado de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), há ocorrências em Vitória e na Serra. No entanto, nos 141 inquéritos já concluídos no Espírito Santo nenhum policial militar foi indiciado.

“A população fala (sobre os militares), mas de forma genérica. Nós precisamos de provas”, afirma o delegado. Segundo ele, não há interesse da PC em “esconder” possíveis mortes cometidas por militares. “A gente não passa a mão na cabeça de ninguém. Recentemente, um senhor foi morto em Cariacica e indiciamos dois militares pelo crime”, disse.

Ele afirma que nada justifica que membros das forças de segurança matem pessoas indiscriminadamente. “Eu fui PM no Rio de Janeiro e já passei por muitas coisas pelas quais eles passam. Não justifica nenhum PM fazer barbaridades nas ruas”, concluiu.

ANISTIA

Na última quarta-feira, o governador sancionou a lei que permite anistia aos policiais militares punidos ou processados administrativamente por envolvimento na greve da PM de 2017. O projeto de lei complementar foi elaborado pelo governo Casagrande e concedeu perdão a 2.622 militares que respondem a procedimentos na corporação e aos 23 que foram expulsos.

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E esses ainda contarão com pagamento retroativo ao período em que estiveram afastados – e portanto, sem receber – contemplando salário, auxílio-alimentação, auxílio-fardamento, férias e 13º. Serão R$ 839,148,80 no total.

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