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Mães, filhos doentes e o abandono dos pais. O desabafo de um defensor

Mães, filhos doentes e o abandono dos pais. O desabafo de um defensor

Carlos Eduardo Rios do Amaral conta casos impressionantes e como os filhos reagem a essa ausência paterna

Publicado em 20 de fevereiro de 2019 às 13:20

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O resumo de um dia como muitos de trabalho. Nesta segunda-feira (18), o defensor público Carlos Eduardo Rios do Amaral, 44 anos, decidiu dividir com os amigos em uma rede social um pouco da dor de mães e crianças que ele acompanha diariamente na 1º Vara da Infância e Juventude de Vila Velha, onde é titular há seis anos. A postagem destaca o abandono dos filhos pelos pais quando os homens descobrem que as crianças têm doenças raras e a situação das mães, que já é difícil, se torna ainda mais complexa. Sem dinheiro, sozinhas e com filhos doentes.

"Hoje foi um daqueles dias, na Defensoria Pública, que só apareceu Mães de crianças (muito) doentes, casos mesmo de doenças raras, que consome a vida e esperança desses pequenos pacientes a cada dia. Um detalhe com relação a essas Mães: todas foram abandonadas pelos maridos quando descobriram que o filho ou filha nasceriam com essas doenças ou condição especial. Todas essas Mães tiveram que renunciar ao emprego ou a uma jornada maior e mais vantajosa de trabalho. O divórcio interrompeu abruptamente ou dificultou a possibilidade de continuação de tratamento desses pequenos. Muitas choravam no elevador, a caminho de meu gabinete, ao saber que seriam atendidas prontamente. Mas há uma coisa em comum entre todas essas mulheres-Mães: nenhuma perdeu a esperança e a fé, nem a ternura, em lutar pelo filho."

A partir desse relato, nesta quarta-feira (20), o Gazeta Online conversou com o defensor, que contou outros casos tocantes sobre a ausência desses pais e o amor das mães.

Qual história mais marcou o senhor?

Eu tenho um caso que chamou muito a minha atenção. Era uma criança especial que, desde pequena, o pai adorava moto e fazia aquele barulho com a moto. E essa criança logo no início da vida precisou ser hospitalizada, porque ela já perdeu os movimentos das pernas, dos braços. Ela ficou durante muito tempo hospitalizada e, na frente do hospital, tinha uma residência, onde morava um rapaz. Toda vez que ele saía de casa, esse rapaz fazia o mesmo barulho com a moto.

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Essa criança já abandonada pelo pai, pedia para chegar da janela, tendo a certeza que era o pai. Isso acontecia todos os dias. A alegria desse menino era ouvir o barulho da moto, porque ele tinha certeza que o pai estava ali perto. Poucos anos depois, essa criança morreu. Isso quebra o coração da gente.

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Algumas crianças chegam a confundir o senhor com o pai?

Muitas crianças quando chegam no meu gabinete me confundem com o pai. Além de digitar o caso, eu tenho que pegar a criança no colo, beijar, abraçar. Não tem como. 

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Eles sentem muito essa falta paterna. Muitas vezes, a mãe fala que o filho está achando que eu sou o pai dele, porque não conheceu o pai. Isso deixa a gente muito sensibilizado.

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Há pais até que trabalham na área de saúde, como enfermeiros, que abandonam filhos doentes?

É inacreditável. Pais que trabalham na área diretamente ligada à atividade fim do hospital e que não procuram a filha mais. Temos casos de crianças deficientes que o pai se divorcia, mora no mesmo bairro e, por uma questão de trabalho ou ir na padaria, passa na rua que essa criança está pegando sol na calçada de casa na cadeira de rodas, ele passa do outro lado da calçada para não encontrar o filho. O pai dá tchau, como se estivesse cumprimentando um conhecido.

A questão financeira também é complexa.

É outro drama dessas mulheres. Muitas vezes, o salário de registro no contracheque não corresponde à realidade salarial desse pai. Os pais têm uma renda de 3 a 5 mil reais, mas na carteira só tem um salário mínimo. Na hora de ir para a vara de família, o pai fala que o salário é menor, e a pensão é de 25% a 30% de salário mínimo. Muitas vezes, esses pais vão fazendo filhos com outras esposas, conseguem provar na Justiça que têm uma prole numerosa e fatiam essa porcentagem, quando, muitas vezes, não pagam a pensão de nenhum deles. Imagine o tamanho do baque financeiro.

E como ficam essas mães?

As mães desfalecem praticamente. São extremamente equilibradas, dóceis. As mães de crianças portadoras de necessidades especiais e doenças raras são calejadas pela vida. Há mães com filhos de cadeira de rodas, em razão da dificuldade financeira, precisaram morar em local de morro, no segundo ou terceiro andar de um puxadinho. Então você imagina o quanto guerreira essa mãe é, quais são as dificuldades do dia a dia. Às vezes, o Mão na Roda (transporte para cadeirantes) não passa ali. Ela precisa descer. Você pergunta se ela faz esse percurso todo dia, com um sorriso no rosto e os olhos cheio de lágrimas, ela responde que sim, todos os dias.

É uma lição a cada dia.

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O maior presente para mim, que Deus me deu, foi poder conviver com essas mães que não desistem dos seus filhos. Às vezes, a gente sai de casa preocupado com algum problema financeiro, preocupado em trocar de carro porque está velho... Aí todo dia quando dá meu horário de ir embora e eu vejo que consigo coçar o meu nariz, abrir uma torneira, eu agradeço a Deus. Todos os dias a gente vê que a gente não dá valor às coisas simples da vida.

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E todo os dias quanto essas mães lutam por isso, uma fisioterapia, por exemplo. Vocês noticiaram que aquela ginasta conseguiu mexer o tronco. É uma grande vitória. Atendo várias Laíses por dia que sonham em piscar o olho, abrir a boquinha. É muito gratificante você poder ver essas guerreiras.

Violência doméstica.

Muitas dessas mães são vítimas de violência doméstica. De tudo que eu te falei, você ainda ter que levar porrada todo dia, ter que fazer o almoço com pressa, senão você pode ter o nariz ou o dente quebrado. Muitas vezes vou pesquisar o processo dessa criança, quando jogo o nome da mãe, encontro oito medidas protetivas de urgência. Com muita vergonha, ela conta que ele parou de bater ou se separou dele. É difícil.

Como o senhor faz para se desligar?

Eu preciso caminhar muito. Caminho praticamente 10 quilômetros por dia no calçadão, gosto muito de observar a natureza, os animais. Tenho muito amor por essas crianças. É muito difícil de me desligar. Sempre gosto de imaginar que vou encontrar essas crianças na piscina de bolinha do shopping, eu gosto de fingir, de imaginar isso. Até mesmo por uma questão espiritual, eu sou católico, gosto de imaginar que se um dia eu chegar no Céu vou encontrar essas crianças brincando, correndo, jogando bola. 

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Me apego ao plano espiritual, acreditando que vai ter uma multidão de crianças no Céu que não serão doentes. Todas serão sadias, para descansar essa dor que elas têm aqui.

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Mais um caso.  

Ontem eu tive que atender uma mãe que os dois filhos têm um gravíssimo problema visual. Ela precisa fazer um tratamento que só em Belo Horizonte se faz. A rede pública do Estado não fornece. Precisou judicializar para garantir o direito à saúde para uma coisa de complexidade, mas que não há outra alternativa de tratamento. Quando ela conseguiu o custeio do tratamento fora do município, no momento que o Estado perguntou se era na rede pública, ela respondeu que não. O único hospital que faz isso no Brasil é particular. Imediatamente o Estado cancelou esse direito a tratamento em Belo Horizonte.

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E esse é um dos casos que o divórcio, a ruptura do casamento dessa mãe dificultou a continuação do tratamento. Agora ela não tem mais possibilidade nenhuma de garantir esse tratamento com recursos próprios. Ela precisa da intervenção da Justiça. Pedir à Justiça para que o Estado pague o tratamento em Belo Horizonte como questões relativas à hospedagem, passagens e alimentação. 

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