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As lições do professor ameaçado de morte que virou o jogo no ES

As lições do professor ameaçado de morte que virou o jogo no ES

No último dia de aula, antes da aposentadoria, a escola inteira parou para aplaudir e homenagear o professor conhecido como "Bigodinho", na Serra

Publicado em 9 de abril de 2019 às 16:33

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"Eu só ouço". Talvez seja difícil compreender como uma atitude tão simples pode transformar a vida de crianças e adolescentes. Mas essa foi a fórmula encontrada pelo professor de Geografia Nourival Cardozo Júnior, 56 anos, para entender e conquistar seus alunos.

Nesta segunda-feira (7), último dia na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Maria Penedo, em Valparaíso, na Serra, ele recebeu uma homenagem recheada de emoção que parou o colégio — com 541 estudantes no turno da tarde, muitos aplausos e trilha sonora. Diante de tanto carinho, o que mais esse professor tem?

Além de educador, ele virou um paizão. Com 34 anos de profissão, a maneira de ensinar mudou após ter sido ameaçado de morte por um aluno de 13 anos de idade, em 2007. "Ele apontou o dedinho pra mim com uma arminha, falando: 'Cuidado ao atravessar a rua porque a bala pode vir de qualquer lugar'".

Tempos depois, o garoto sofreu um atentado e o professor decidiu visitá-lo no hospital. Venceu o ódio com uma conversa.

Aspas de citação

Nessa visita, parei e sentei ao lado da cama para ouvir a história de vida dele. Muito, muito difícil. Saí dali pensando que estava lidando com um ser humano que é um gigante porque eu não aguentaria viver um décimo do que esse garoto vive em vida familiar

Nourival Cardozo
Aspas de citação

A partir do relato do menino que via o pai bater na mãe e jogar a comida do fogão de casa fora para que a família não se alimentasse, nasceu um projeto, chamado de Oficina de Afeto, no qual as crianças escrevem cartas relatando suas dores. Em seguida, Nourival as lê e depois conversa com o autor.

Inteligente, o professor também usa o conteúdo das aulas para cuidar das emoções dos alunos. Na entrevista, ele conta como foi a despedida, seu legado e de onde tira forças para ajudar tantas pessoas.

AS LIÇÕES DO PROFESSOR

Como foi essa despedida? O senhor está há quanto tempo nessa escola?

Eu ainda estou sob a emoção de ontem (segunda). Me emocionou porque trabalhei 14 anos naquela escola, logo depois que ela foi inaugurada, de 1990 a 1992. Hoje sou professor de filhos de ex-alunos daquela época e depois retornei em 2008. Nessa segunda etapa foram 11 anos. Então peguei toda uma geração de meninos. São cerca de 14 anos nessa escola. Ao todo, trabalhei 34 anos no Estado.

Quando o senhor decidiu se aposentar?

Os anos passam e a gente fica um pouco cansado. Vou fazer 57 anos. Eu quero dar um tempo para a minha família, para a minha esposa. São 30 anos de casado, tenho duas filhas professoras. Elas se encantaram por esse trabalho que a gente faz, a Oficina de Afeto, que é trabalhar com essa garotada ferida, machucada, que vai chegando às nossas escolas e também quero ter um tempo com o meu pai, ele tem 93 anos (emoção). O trabalho continua porque agora eu estou na Secretaria de Educação do município para fazer esse trabalho em várias escolas, atuando com professores para multiplicar essa ideia.

Como é a Oficina de Afeto?

Esse projeto começou no Manoel Lopes (colégio), em 2006, 2007. Tive uma experiência muito ruim. Fui ameaçado por um garoto, em 2007, literalmente de morte. Ele apontou o dedinho pra mim com uma arminha.

Ele apontou uma arma de verdade?

Não, com o dedo, falando cuidado ao atravessar a rua porque a bala pode vir de qualquer lugar. É curioso que um tempo antes esse garoto havia dito que me adorava, que eu era um professor que ele gostava muito. Percebi que ele não estava bem.

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Preferi não fazer boletim de ocorrência. Logo um tempo depois, ele sofreu um atentado e foi baleado. Eu fui visitá-lo no hospital

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Nessa visita, eu parei e sentei ao lado da cama para ouvir a história de vida dele. Muito, muito difícil. Saí dali pensando que estava lidando com um ser humano que é um gigante, porque eu não aguentaria viver um décimo do que esse garoto vive em vida familiar. Passei a respeitar aquele cara como um sobrevivente, como um ser humano forte, mas que foi embrutecido pela vida. Foi nascendo ali a chamada Oficina de Afeto. Hoje tem um site e a gente trabalha com essa multiplicação de profissionais que divulgam nas escolas aqui da Serra esse trabalho. Tem uma parte que é ouvindo os alunos.

Exemplos.

Eu trabalho o conteúdo. Por exemplo: relevo. Quando acabo de trabalhar relevo, que é uma unidade clássica da Geografia, vou para o quadro e faço exercícios com eles sobre a temática explorando a condição sócio-emocional deles. Por exemplo: quais as montanhas mais difíceis que você tem que escalar na sua vida? Eles desenham e escrevem sobre o assunto.

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Pego as formas de relevo e comparo com a condição emocional deles. A montanha é uma barreira difícil, um problema na vida. A planície é um tempo de tranquilidade que eles vivem em família

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A depressão, o nome da forma de relevo é depressão. Vou perder a oportunidade de explorar com esse monte de menino se cortando na escola? A gente faz esse trabalho e o resultado está fora de controle, multiplica, eles vêm atrás de mim, querem conversar comigo. Tiro um tempo do meu planejamento para conversar com eles. Percebo que essa escuta resolve muitos dos meus problemas em sala de aula. O que eu tenho que resolver em sala de aula eu resolvo ouvindo depois o garoto.

Sobre o menino que ameaçou o senhor, ele tinha quantos anos?

Acho que 13 anos.

O senhor pode contar algum problema que ele tinha?

Ele era muito desafiador, agressivo. A história de vida dele é de violência doméstica do pai com a mãe, batia na mãe. Me chocou mais quando ele falou que o pai pegava a comida que estava em cima do fogão e jogava fora, para eles não comerem. Uma história bem dolorosa de se ouvir. Ele estava sobre uma cama, operado, inicialmente não queria contar essa história, e ele chorou. Voltou a ser aquele garotinho que ele deveria ser. Mas o mais interessante foi que aquela conversa mudou a minha concepção de escola, educação, sala de aula e relação humana dentro da escola. Hoje eu prego que só o afeto pode salvar a docência dos professores. Não tem outro caminho. Não estou falando em passar a mão na cabeça de aluno e aprovar quem não sabe. Quando você dá afeto, o ouvido, a atenção necessária, você ganha o aluno. É uma questão social.

No projeto os alunos escrevem cartas?

Nossa. É muita carta que eles escrevem (risos). Quando alguém vem conversar comigo, eu falo que não tenho condições de guardar todos os relatos, aí peço para escrever. 

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O aluno escreve tudo que está sentido, depois leio e bato um papo

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Tem aluno que escreve no mesmo dia. Tenho centenas de cartas e, para variar, eles me entregaram um cesto que deve ter mais de 500 cartas.

Entregaram ontem?

Me entregaram ontem. O que mais me emocionou foram as perguntas que eles fizeram quando me abraçavam. 'Aposenta não, professor. Quem vai ouvir a gente?'; 'Professor, posso conversar com o senhor amanhã?' ou 'Quando o senhor vai voltar aqui?' (risos).

Como foi a homenagem?

Eles juntavam duas, três turmas, levavam para sala de informática e faziam a homenagem. Liam cartas com cada depoimento. Uma menina me entregou um cordão que era do pai dela. Ela disse que, depois que o pai morreu*, eu fui essa pessoa que supriu esse vazio nela. Então ela estava me entregando esse colar em homenagem a esse novo pai que ela fez na escola. Foi minha aluna por quatro anos. Falei que ela estava se desfazendo do colar que era uma preciosidade para ela. Ela respondeu: não professor, estou te entregando. Eu falei: 'Hoje acaba o seu luto', e ela respondeu que sim. Essa homenagem final foi surpresa. Eles me levaram para uma sala de aula para ficar no lugar de um professor. Tô vendo gente saindo e entrando. Imaginei que fosse mais uma turma preparando alguma festinha. Depois a coordenadora chegou falando que teria que levar a minha turma para uma prova de Matemática, uma olimpíada. Eles foram saindo, eu fiquei na minha. Quando eu saí, o corredor lotado, entupido de menino. Falei: 'O que é isso?'. Eles começaram a me aplaudir, entrei no corredor e desabei. Fui chorando até a quadra (risos). 

*Ao conversar novamente com a aluna, o professor soube que o pai a abandonou. Ele morreu afetivamente para ela, não fisicamente.

Levaram pessoas importantes para o senhor?

Minha primeira diretora de 1985 estava lá, ex-alunos daquela época foram à escola. Cara, não tem condição um negócio desse. É para matar um velho (risos). Minha esposa foi, toda linda, produzida. Foram as minhas filhas. Lindo demais. Não vou esquecer nunca. Vai ficar para sempre na minha memória. Dá vontade voltar para a escola e nem aposentar mais.

O que o senhor acha que deixa para os outros professores?

O legado de uma relação mais afetiva com os meninos.

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Esta geração está muito triste, ela não está feliz. Eles estão chegando na escola com um buraco enorme no peito

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Não sei como explicar isso, talvez envolva as fragilidades nas relações familiares. Noto também uma fome desesperadora que eles têm da figura paterna. Há um vazio. Eles colocaram um cartaz que me derrubou: 'Pai de multidões'. Eles fizeram um cartaz bem grande, cheio de bigodinhos - eles me chamam de bigodinho -, começaram a cantar um louvor e eu chorei muito, porque eles falaram que eu era pai de multidões e estava deixando um legado.

A outra menina falou que era o fim de uma era. Que legado é esse? É o legado do afeto. Desenvolvi um processo de exercitar a minha atenção, os meus sentidos e uma escuta totalmente afetiva para resolver conflito dentro da escola. A coisa foi caminhando. Eu não tenho um projeto escrito com referenciais teóricos, metodologia. Não tem nada disso. Tem uma vivência, uma essência que rola quando eu chego no pátio da escola. Começo a viver essa experiência de empatia e de me colocar à disposição deles. O legado que eu deixo para os meus colegas é que o afeto é a solução, a salvação para a docência hoje.

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Não é a tecnologia, não é a sofisticação. São as relações afetivas que precisam ser reconstituídas no chão da escola. O afeto é o meu maior legado

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São tantas histórias. Como o senhor se reconstrói?

Isso é uma questão bem pessoal de crença e fé. Venho de uma família muito religiosa e a minha avó (se emociona) era uma mulher bíblica. Eu sempre me perguntava por que essa mulher gosta tanto desse livro. O tempo passou, vivi a minha vida, fui para a militância, entrei de cabeça. Comecei a dar aulas em muitas escolas, achando que ia mudar o mundo, no final da ditadura militar. Até que eu quase perdi a minha filha mais nova. Ela ficou na UTI com falência respiratória. Aí minha avó falou comigo que a saída que tinha era eu me reencontrar com o meu Criador. Falei: 'Tá bom, vó. Então pede a Ele para me devolver a minha menina porque eu preciso dela'. E a minha menina está comigo. Já é casada, inclusive é professora.

Comecei a entender ali que a vida não é só correr atrás das coisas. Procurei fortalecer a minha vida espiritual. Eu sou cristão, tenho uma comunhão muito pessoal minha com a divindade. Pego as cartas todas e, depois que eu leio, faço uma oração, entregando todos esses problemas para Ele. Falo: 'Senhor, não tenho saúde para aguentar o sofrimento deles. Então me ajuda. Pega isso, vai adiante de mim e ajuda essa garotada'. Tenho também a minha companheira que a gente lê as cartas juntos, ela me ajuda a entender as coisas. Mas o ideal é que toda escola fosse uma comunidade de afeto, onde os professores pudessem ler juntos essas cartas, pensando em como ajudar esse garoto. Porque se eu não fizer uma intervenção, o que vai dar esse menino? São questões óbvias que todo educador tinha que fazer. Mas a gente não faz, porque a gente está tão preso ao conteúdo que a gente não para pensar em uma docência mais um humana.

Na pessoa que está ali.

Você conhece a história de meninos que tinham tudo a perder e transformaram a história da humanidade. Hoje (terça), eu fui dar uma palestra na Rede Aica, em Central Carapina, eu vi a salinha onde o Jeremias (do The Voice Kids) ensaia. O Jeremias saiu daqui e está mexendo com o país inteiro. Aí ei volto para a minha sala de aula. Os meus meninos perdidos podem se achar, se reencontrar e seguir em frente. Vou superando tudo isso. Não tenho nenhum problema de saúde. Nunca precisei de psicológico, de fazer análise. Atribuo isso a minha relação vertical. Eu só ouço, o resto Ele faz.

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