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'Estamos abalando o privilégio branco e discutindo relações de poder'

"Estamos abalando o privilégio branco e discutindo relações de poder"

Doutor em Educação, professor Gustavo Forde afirma que o Estado convive com o racismo institucionalizado - inclusive nas escolas - e que é preciso reeducar brancos e negros para mudar a realidade

Publicado em 28 de abril de 2019 às 01:02

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Militante do movimento negro e pesquisador das relações étnico-raciais e de estudos afro-brasileiros, o doutor em Educação Gustavo Forde quer trazer luz a um protagonismo negro que tem, cada vez mais, se difundido no Espírito Santo. Em março deste ano, ele lançou o livro “Vozes Negras na história da educação: racismo, educação e movimento negro no Espírito Santo (1978-2002)”.

Data: 06/11/2019 - ES - Vitória - Gustavo Forde, entrevistado sobre o mês da consciência negra - Editoria: Cidades
Data: 06/11/2019 - ES - Vitória - Gustavo Forde, entrevistado sobre o mês da consciência negra - Editoria: Cidades . (Vitor Jubini)

A obra traz discussões sobre quais transformações foram provocadas pelo movimento negro, de que forma o Estado brasileiro tem institucionalizado o racismo em todas as esferas e como mudar essa realidade através da educação. “Reeducar brancos e negros é fundamental para retirar o negro do lugar de menor valor social”, explica.

Como se deu o processo de produção do livro “Vozes Negras na História da Educação”?

O livro é um trabalho essencialmente coletivo, resultado de uma pesquisa de análise histórica, realizado no Núcleo Capixaba de Pesquisa em História da Educação. A pesquisa foi coordenada pela professora doutora Regina Simões, minha orientadora.

O senhor comentou que o livro visa contribuir para o preenchimento de lacunas historiográficas com relação a presença da população negra na educação capixaba. Quais lacunas foram identificadas?

Quando nós estudamos história da educação no Espírito Santo, existe uma invisibilização, um certo silenciamento, um apagamento no que diz respeito a população negra. Quando olhamos no cenário nacional, a história da educação e a história do movimento negro ou da população negra na educação, alguns estados já tem produções bastante significativas como São Paulo e Minas Gerais, por exemplo.

No Espírito Santo, nós também abrimos uma grande lacuna historiográfica no que diz respeito ao exame e a constituição desse percurso histórico da organização do povo negro. Aonde nós estávamos? Desde quando nós estamos nas escolas? Passamos a pensar a constituição da educação escolar a partir da presença da população negra: os currículos e os materiais didáticos garantem essa presença ou não? Por quê e como?

Um outro aspecto foi que a partir de 2003, nós temos uma Lei Federal que torna obrigatório o ensino de cultura africana e afro-brasileira. Essa lei tem um percurso histórico protagonizado pelo movimento negro no Estado. A partir daí, fizemos essa interseção: pensar a história da educação no Estado a partir do protagonismo do movimento negro.

Data: 06/11/2019 - ES - Vitória - Gustavo Forde, entrevistado sobre o mês da consciência negra - Editoria: Cidades - Foto: Vitor Jubini - GZ
Data: 06/11/2019 - ES - Vitória - Gustavo Forde, entrevistado sobre o mês da consciência negra - Editoria: Cidades - Foto: Vitor Jubini - GZ. (Vitor Jubini)

A pesquisa apontou a relação do movimento negro com a pauta da educação no Estado?

O livro demonstra que, para o movimento negro, existem dois princípios que a educação escolar precisa incorporar: a negritude e o combate ao racismo. A negritude, não do ponto de vista de criar um gueto, mas na perspectiva de problematizar a ideia de humanidade. Nesse caso, a humanidade a partir do humanismo europeu.

Por que o humanismo europeu?

O europeu transformou a ideia de humanidade com a ideia de europeidade. Portanto, são humanos aqueles que são europeus. Aqueles que não são europeus são selvagens e monstros. Isso justifica todo o processo colonial e, ainda hoje, justifica o destrato, a desqualificação e a desumanização dos negros dentro dessa ideia de humano universal que seria o europeu. Quando alguém joga a banana para o outro, chamando de macaco, não é um gesto qualquer. Ele está dizendo: você não é humano. Pelo menos, não é humano como eu sou humano. É a mesma doutrina racial do século XIX, que é a desumanização dos negros e africanos.

Isso remonta a uma realidade identificada no século XIX. E como está o Brasil hoje em relação à pauta do racismo?

Eu não tenho nenhum medo de dizer isso: o Estado brasileiro convive com o racismo institucionalizado. O que justifica um painel de mães na escola que não tem mãe preta? O que justifica, em um atendimento médico, as mulheres negras não receberam a mesma dosagem de analgesia para aliviar a dor porque alguns médicos acham que a mulher negra é mais forte? De pessoas que acreditam que existem corpos de menor valor social e de menor dignidade social? Talvez isso explique a falta de coleta de lixo em bairros de maioria negra. Porque em bairros de maioria branca tem quadra pra cachorro e em bairros de maioria negra não tem nem praça para a pessoa humana? Quem faz essas políticas são as instituições.

Em sua tese, o senhor identificou a origem desse pensamento no Brasil?

O livro mostra que tem um percurso histórico datado dos séculos XVIII e XIX, quando o chamado racismo científico está muito presente na época da formação dos estados nacionais, e a ideia de nação brasileira vai ser formada a partir do racismo. A raça e o racismo foram elementos fundantes da nossa nação. Nesse período, até o final do século XX, nessa formação do estado nacional, os homens de ciências, influenciados pelas teorias racistas europeias, discutiam questões como raça superior e raça inferior, em que o negro é o inferior e o branco é o superior. Daí, o pensamento era de que a mistura das raças poderia degradar a raça branca porque a raça negra é uma raça degenerada. Isso estava influenciando os documentos prescritores da nossa educação.

De que forma acontecia essa influência nos documentos?

Havia todo um movimento de branqueamento da nação: o físico e o cultural. E nós vamos demonstrando como nesse branqueamento cultural, a escola vai ter um papel fundamental no movimento de eliminar os elementos africanos e os elementos indígenas da nacionalidade brasileira. Por isso que a gente não estuda nada sobre a África nas escolas hoje. A gente estuda revolução francesa, história da França, Portugal, Espanha… Aprendemos a reconhecer a diversidade na Europa, mas nós somos educados a imaginar que todos africanos são negros. E isso passa pela escola, passa pela educação. Diante disso, nós vamos discutir toda essa teoria racista e como isso impactou a educação oficial e como chega nas escolas.

E, na avaliação do senhor, o que deve ser feito para que essa realidade seja transformada?

A palavra hoje é reexistência e resistência. A educação tem o poder de trazer essas questões à tona. Quando o movimento negro elege a educação como pauta importante visa, primeiro: retirar o negro do lugar de ser humano de menor valor social. A educação não é simplesmente ter acesso à escola, o objetivo é retirar o negro desse lugar. Como isso pode acontecer? Reeducando brancos e reeducando negros. Reeducando brancos para que eles não se sintam superior por serem brancos, porque isso é patológico; reeducando negros para que não se sintam inferiores. Reeducar brancos e negros é fundamental para retirar o negro do lugar de menor valor social.

Outro passo é oportunizar espaços de socialização e educativos a partir de uma outra referência de humanidade. A nossa humanidade não pode ser pensada, confundida com europeidade. A história da humanidade não é a história da Europa. Ser humano não significa ser branco. Romper com esse humanismo europeu que apresenta o branco como espelho da humanidade.

Por que isso é importante?

Para que brancos, negros, ciganos, africanos e asiáticos possam socializar compreendendo que a história da humanidade não é a história da Europa. À medida que a sociedade conhece a história de África e a história afro-brasileira, terá oportunidade de se reconhecer nessa história e valorizar todos aqueles que pertencem a ela. Ao lutar para transformar a educação, o pano de fundo é transformar as relações sociais e a própria sociedade.

As vozes negras estão mais altas hoje?

A branquitude opera o Estado, não só as vozes, mas a branquitude como grupo de identidade. O movimento negro tem trazido muitas estratégias e se nós chegamos até aqui é porque muito já foi feito. As políticas de cotas raciais, por exemplo, são fruto dessas vozes negras, resultado da interlocução com o Estado. Costumo analisar que a força dessa onda conservadora no Brasil é proporcional ao avanço que nós negros tivemos na última década. O filho da empregada hoje anda de avião do lado da patroa, a universidade que mudou de cara. Hoje, o jovem negro denuncia o racismo. Nós estamos abalando o privilégio branco e discutindo relações de poder. Por exemplo: a juventude negra soltou o pixaim para o alto e isso não volta mais. Hoje temos outro cenário.

Dados da Polícia Civil do Estado indicam que acusados e vítimas de crimes praticados na Grande Vitória são homens negros, com idade entre 13 e 26 anos. E, na maioria dos casos, os envolvidos são formados em uma família desestruturada.

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Acho que é importante trazermos o conceito de racismo institucional. Ele desloca o debate do racismo interpessoal para pensar como as instituições brasileiras se constituíram a partir de uma lógica de funcionamento racista. As instituições e o Estado brasileiro se constituíram a partir do racismo. O racismo institucional imobiliza um conjunto de políticas públicas em benefício da população negra. Eu gosto de dizer que as famílias negras foram desestruturadas pelo Estado brasileiro. Os africanos para cá trazidos não tiveram oportunidade de constituir um núcleo familiar. Esse núcleo é muito recente na nossa história, data dos anos 60, 70, diferente dos italianos e alemães, por exemplo. Nós negros, aqui chegando, uma das estratégias do estado escravocrata foi destruir os laços familiares. A criminalização e o encarceramento em massa dos jovens negros é outro debate que vem acompanhado ao nível de vulnerabilização da juventude negra.

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