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'Discurso da identidade nacional não pode ser feito só por brancos'

"Discurso da identidade nacional não pode ser feito só por brancos"

Presença confirmada na Flic-ES, escritora mineira cuja obra é marcada pela crítica social e pela temática afrobrasileira fala sobre seu trabalho pelo fortalecimento da autoria negra no cenário da literatura do país

Publicado em 19 de maio de 2019 às 12:21

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“Escrevivência” foi um termo cunhado pela escritora Conceição Evaristo ainda na década de 1990, quando concluiu o mestrado em Literatura Comparada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). A palavra surgiu de uma junção dos verbos escrever, viver e ver (a si mesma, neste caso) e remete à escrita que surge do cotidiano, das recordações e da experiência de vida da escritora e, consequentemente, de seus semelhantes.

Nascida em dezembro de 1946 na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Conceição mudou-se para o Rio de Janeiro ainda na década de 1970. Por lá, acompanhou o crescimento do movimento negro, no qual não apenas teve a escrita acolhida e reconhecida, mas também passou a influenciar e a inspirar novos escritores.

Além do mestrado, concluiu também o doutorado na mesma área, e publicou romances, contos e poemas diversos. Em 2003, lançou o primeiro livro, o romance afrobrasileiro “Ponciá Vicêncio”, em que aborda temas como a discriminação de gênero e de classe. Em 2015, venceu o Prêmio Jabuti com “Olhos D’água”, que reúne 15 contos sobre as agruras diárias vividas pelos negros no Brasil.

Foi homenageada da Feira Literária Internacional de Cachoeira, na Bahia, no ano passado e, agora, aos 72 anos, acaba de ser escolhida como Personalidade Literária da próxima edição do Prêmio Jabuti. A autora vem ao Estado na próxima semana para a palestra “Vida e Escrita: a Escrevivência de Conceição Evaristo”, que encerra a 6ª edição da Feira Literária Capixaba (Flic-ES).

Hoje em dia fala-se muito sobre o resgate da ancestralidade, das raízes... A impressão é que há um discurso mais atento. Como a senhora encara o atual momento da literatura negra?

O que tem de novidade nesse momento, e eu digo que é uma novidade que sem sombra de dúvidas também fomos nós que forçamos a passagem, é a visibilidade dos nossos fazeres literários, dos nossos fazeres intelectuais. Mas vemos isso entre aspas, digamos assim, porque é um longo processo. Outro dia mesmo estava recordando a primeira romancista negra, Maria Firmina dos Reis... Hoje já temos uma produção maior. Mas a primeira vez de falar disso não foi na academia, foi nos anos 1980, dentro do movimento social negro, que está um passo à frente da própria academia. Por isso há essa visibilidade que estamos tendo agora, com nomes como Djamila Ribeiro, que é muito nova em relação a mim. A minha geração teve Sônia Nascimento, Lélia González e tantas outras, mas vemos como as mulheres custaram a chegar ao lugar de Abdias do Nascimento, por exemplo. Custaram muito mais para chegar à cena. Hoje, a própria mídia social, a própria internet nos dá mais possibilidades, mas nós trabalhamos desde sempre. Aliás, se tem uma coisa que sabemos fazer é isso: trabalhar.

A senhora já disse uma vez que muito da memória de escravidão foi contada dentro de sua própria casa, ainda na infância. Como isso impacta em sua obra?

Eu acredito que impacta porque é uma narrativa que vem de dentro. Acho que isso traz um outro sentido. São memórias, vivências que eu trago por herança. Mas isso traz também uma outra questão: para essa autoria negra, isso é um dado complicador, porque se você escolhe determinadas temáticas, isso reduz seu grupo inicial de recepção. Isso é algo que já venci. Hoje minha obra não é só o espaço social em que ela nasce, que é o movimento negro. Hoje outros escritores já ganharam novos espaços. Mas há um público que tem coragem de dizer que escrevemos só memória, que não fazemos literatura. Ora, existe um grande escritor brasileiro, Pedro Nava, memorialista. Por que algumas memórias podem ganhar status literário e outras não? Mesmo escrevendo memória, as coisas podem ter um grau de ficção. A memória recorda o que quer recordar. Entre alguns povos, algumas categorias sociais, a escrita, mesmo a da memória, é mais aceita, mais reconhecida do que por outros grupos, porque há memórias que incomodam. Se a comunidade indígena brasileira começar a falar de suas memórias, por exemplo, não sei até que ponto elas poderiam ser escutadas.

E qual a barreira para que as histórias sejam escutadas e compreendidas?

É uma perspectiva racista. O Estado brasileiro ainda tem dificuldade de reconhecer o sujeito indígena, levando em conta o exemplo que dei agora. Acham que eles não podem ter sua autonomia. Estamos assistindo a isso com a luta pela demarcação de terras que já são deles. A memória brasileira, sobretudo a memória da colonização brasileira, ainda é dolorida. É de dor, de violência. E dificilmente essa história é acessada.

A senhora costuma dizer que escrever e contar histórias é a melhor maneira de enfrentar um preconceito...

Isso. Acredito nisso por diversas circunstâncias. O que eu conheço vem da minha convivência com escritoras e escritores negros que assumem explicitamente essa escrita comprometida com a realidade afrobrasileira. Nos colocamos e nos afirmamos de várias formas. A primeira é justamente essa: não apenas pensar, mas mostrar nossas realidades e vivências e também a maneira de se colocar no mundo, que é algo que pode ser aproveitado na composição da arte literária. Ficam sempre algumas questões a se pensar... O imaginário brasileiro não tem dificuldade alguma em aceitar a presença negra na dança, da culinária. Por que há dúvida quando se trata de história, da arte da palavra, quando se trata de aproveitar essa vivência negra? Por que há dúvida na hora de transformar essa vivência em literatura? Por que duvidar de uma autoria negra? A nacionalidade brasileira é muito diversa, todos nós sabemos disso. A literatura é um dos discursos que ajudam a trazer a identidade nacional. Esse discurso não pode ser único, não pode ser produzido apenas por homens brancos e mulheres brancas. Se o discurso literário fala da identidade nacional, vai caber o discurso autoral do negro, do índio, das mulheres, dos grupos sociais que hoje reivindicam essa possibilidade de fala, essa possibilidade de criação. Quanto mais múltiplo for esse campo, essa diversidade, mais completo vai ser o discurso.

Como encara a produção literária da nova geração?

Essa juventude vem com um esforço muito grande. Nossos passos vêm de longe. Tive mulheres que me receberam e prepararam nossos caminhos. Essas mulheres sempre estiveram em situação de vulnerabilidade, subalternizadas. As referências da minha geração ainda foram referências subalternizadas. Hoje as meninas olham e enxergam outras referências. Leem Maria Beatriz Nascimento, Miriam Alves, Sueli Carneiro. Fora da literatura, mas no campo da educação, temos Petronilha Gonçalves, Nilma Lino Gomes... Nós temos uma geração que já nasce e já parte de lugares onde há uma afirmativa negra mais concreta. Sem sombra de dúvidas, isso é muito bom para a autoestima de quem está começando. Não estou dizendo que minha geração não teve referências, mas elas não tinham a projeção intelectual que as meninas encontram hoje. Além de tudo, hoje temos mais alguma coisa a nosso favor. Essa mídia alternativa, que vale para o bem e para o mal, tem nos ajudado muito. Para nós, tem valido muito para o bem, porque é possível falar do movimento negro, da violência do racismo, da falsa democracia racial, da luta pelas ações afirmativas que começaram a ser discutidas ainda dentro do governo Fernando Henrique e viraram políticas públicas durante o governo Lula. Essas ações foram responsáveis por colocar o alunado negro nas universidades e isso gera novas demandas, novas pesquisas. Isso alimenta a auto-estima da juventude.

A senhora tenta sempre dar visibilidade às escritoras negras da nova geração... Quem tem acompanhado e indica?

Sim, eu gosto muito mesmo dessa diversidade da juventude. Gosto de lidar com pessoas mais jovens, mesmo lidando de longe. Gosto de contemplar. Acho que o mais jovem tem uma potência inovadora. Eu, por exemplo, acabo de fazer o prefácio de um livro de meninas do slam (eventos originados nas periferias e conhecidos como “batalhas de versos”). Eu digo meninas porque elas realmente têm idade para serem minhas netas. Eu acredito muito na força do slam, observo essa potencialidade da voz, do corpo. Não só elas, mas gosto muito da Lívia Natália, uma poetisa de Salvador – gosto muito do termo poetisa. Gosto muito da Ana Cruz também. Estas não são jovens em termos de idade, mas são mulheres que estão buscando se afirmar na cena literária. Ainda listo outras: Elizandra Souza, Priscila Preta, Roberta Estrela D’Alva... Todas são meninas que têm idade para ser minhas filhas e estão aí produzindo poesia, produzindo prosa, e gostaria muito de escrever sobre elas. Ah, tem a Jarid Arraes também! Queria ter esse tempo para parar e escrever justamente pela visibilidade.

A Flic-ES chega agora à sexta edição e sua vinda será um marco. Como será a palestra?

Eu penso em falar do que o título da mesa propõe mesmo: a escrevivência. Falar um pouco do que é a escrevivência, a partir de que esse título é concebido, o fundo histórico que tem esse termo, porque ele procura ser uma reversão de todo o processo pelo qual passamos. Quando falo em escrevivência, falo que as histórias não são para ninar a casa-grande, mas sim para acordá-la dos sonos injustos. E ao final eu sempre gosto de abrir a conversa, mesmo que o tempo fique muito limitado.

Flic-ES chega à 6ª edição em 2019

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A Feira Literária Capixaba (Flic-ES) chega neste ano à 6ª edição, realizada entre os dias 22 e 26 de maio, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Além de Conceição Evaristo, outra presença confirmada é a do atual presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, com a palestra “Democracia é diálogo”. José Arrabal, Bernadette Lyra, Manoela Ferrari e Júlia Almeida também completam a lista. Confira a programação completa do evento.

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