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Gastos com saúde por ordem judicial superam os R$ 600 milhões no ES

Gastos com saúde por ordem judicial superam os R$ 600 milhões no ES

Valor desembolsado pelo governo entre 2015 e 2018 corresponde a um quarto do orçamento previsto para a área da saúde do Estado neste ano

Publicado em 14 de maio de 2019 às 02:04

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Gerliana entrou na Justiça para tentar garantir remédio à base de canabidiol para o filho Pedro Henrique, 15. (Fernando Madeira)

Quando a população não tem acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) pela porta das unidades de saúde, farmácias e hospitais, é na Justiça que tenta assegurar seus direitos. Somente na esfera estadual houve crescimento de quase 68% nos gastos com a judicialização da saúde, o equivalente a mais de R$ 630 milhões entre 2015 e 2018. Esse valor corresponde a um quarto do Orçamento (R$ 2,5 bilhões) para a saúde do Estado em 2019.

E, ao contrário do que se possa imaginar, a demanda que mais cresceu nos últimos quatro anos no Estado não foi por remédios, mas por consultas com especialistas, como neuropediatra, oftalmologista e psiquiatra. Uma das explicações para o agravamento do problema foi a redução na oferta desse serviço. Além disso, falhas na atenção básica, problemas de gestão e falta de leitos também estão contribuindo para o aumento das ações judiciais contra Estado e municípios, segundo apontam especialistas e o próprio governo.

INTERNAÇÃO

Entre 2015 e 2018, em torno de 40% dos recursos foram usados para a aquisição de leitos na rede complementar, muitas vezes com custo mais alto do que seria em um hospital da rede. Na sequência, estava a demanda por medicamentos, entre os quais remédios que ainda não estão na lista de padronizados do SUS, ou que deveriam ser fornecidos pelos municípios.

Professora da FDV e pesquisadora na área da Saúde, a doutora em Bioética Elda Bussinguer identifica uma série de fatores para esse crescimento, de problemas na gestão a estratégias da indústria farmacêutica que estimulam a prescrição de medicamentos que não são, efetivamente, necessários ao tratamento, mas sim “objeto de desejo”.

“Em tese, as pessoas vão recorrer ao Judiciário por necessidade. Mas há um processo de medicalização da saúde, e a classe médica prescreve remédios independentemente do custo. Às vezes tem similar, de valor muito mais baixo e com o mesmo princípio ativo, que não é receitado. O mercado produz desejos – para o médico, que receita; para o paciente, que quer usar – que às vezes parecem necessidades, mas que não vão garantir o direito à saúde do cidadão, e sim a saúde financeira dessas empresas”, observa.

Mas, para Elda, o problema vai além. A ineficiência de gestão pública também leva ao aumento da judicialização. “Nesse fenômeno, a responsabilidade é compartilhada pelo poder público, classe médica e a indústria. E quem sempre sai perdendo é o cidadão”, destaca.

FILA

A dona de casa Gerliana Ferreira de Souza, 38 anos, é uma das milhares de pessoas na fila da Justiça para tentar garantir mais qualidade de vida para o filho Pedro Henrique, 15, que sofre de epilepsia refratária (convulsões por repetição). Já houve dias em que o adolescente teve 120 crises. Uma medicação à base de canabidiol (um dos princípios ativos da maconha) ameniza o quadro, mas, apesar de decisão judicial favorável, ela ainda não recebeu o remédio.

“Nem um outro medicamento deu resultado para o meu filho. Já com o canabidiol, que experimentou por 15 dias, é diferente. A situação dele é muito triste. E o pior é saber que tem solução, que tem remédio para ele levar uma vida normal, e não conseguir”, desabafa. O Estado informa, porém, que a nova decisão judicial determinou suspensão da compra por não haver comprovação de o paciente ter usado remédios fornecidos pelo SUS antes de solicitar medicação fora da lista.

O secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, aponta que, dentro da judicialização, tem de tudo, “dos absurdos às necessidades reais”. Ele diz que é preciso eliminar as distorções, ao mesmo tempo em que a gestão tem que ser aprimorada para que as pessoas não precisem mais recorrer à Justiça para garantir a assistência em saúde.

ATENÇÃO PRIMÁRIA

Um primeiro passo, na avaliação do secretário, é qualificar mais a atenção primária, nos municípios, onde boa parte dos profissionais não é concursada. De 750 equipes, 509 ingressaram nas redes por meio do programa Mais Médicos.

“E o que a gente observa é que muitos na atenção primária não são resolutivos, o que leva a entupir a fila de espera na atenção secundária (ambulatórios de especialidades, exames, PAs e UPAs). Esses médicos acabam se tornando encaminhadores de pacientes porque não têm a segurança em suas práticas. Atenção primária nesse modelo não dá para defender”, aponta.

Nésio pondera que, se nessa etapa de atendimento houvesse um profissional vinculado a um processo de formação de especialista em medicina comunitária, a resolutividade seria de 80% a 95% nos postos de saúde.

No entanto, dados gerenciais da gestão anterior revelam que esse índice é de apenas 42% no Estado. “A cada 17 pacientes, 10 eram encaminhados. Então, se a gente não atuar nessa ponta, a fila de espera por exames, por exemplo, sempre vai ser alta”, avalia.

200 MIL CONSULTAS A MENOS COM ESPECIALISTAS

As demandas por internação e medicamentos ainda lideram as ações na Justiça contra o Estado, porém gradativamente cresce o número de solicitações por consultas com especialistas. Nos últimos quatro anos, esse tipo de pedido subiu nada menos que 287%.

Em 2015, as consultas representavam 421 ações judiciais e, no ano passado, saltaram para 1.629. No mesmo período, segundo dados do governo federal, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) diminuiu em 200 mil a oferta de consultas. “Isso é redução do acesso e, assim, mais pessoas acabam recorrendo à Justiça”, analisa o secretário estadual de Saúde Nésio Fernandes.

As principais especialidades para as quais foram apresentadas ações na Justiça, segundo a Sesa, foram em neuropediatria, psiquiatria, neurocirurgia, oftalmologia, hematologia pediátrica, geneticista, cabeça e pescoço, e otorrinolaringologista.

Para atacar a fila de espera por especialistas, uma das iniciativas será a realização de mutirões para fazer o atendimento. Mas, além disso, Nésio promete também acabar com a burocracia. Ele falou que está em discussão uma nova organização de trabalho, de Estado e municípios, para reduzir o tempo entre a consulta na unidade básica até a realização de nova consulta ou procedimentos na atenção secundária, de responsabilidade da rede estadual.

FILA

A longa fila de espera não se limita às consultas. Somente para cirurgias, há 18 mil pessoas, segundo a Sesa. E, para esse tipo de procedimento, também houve um significativo crescimento no número de ações, em torno de 90% – o segundo maior indicador dos últimos quatro anos.

Neste caso, o problema já começa a ser enfrentado com a realização de mutirões. Do total, 3.747 foram selecionados para intervenções ginecológicas, cirurgias de varizes para mulheres e homens, de reconstrução mamária e procedimentos na visão. Apesar de o anúncio ter sido feito ontem, os atendimentos já foram iniciados e seguem a ordem da fila de espera.

DECRETO

Do ponto de vista de gestão, uma das áreas que o secretário pretende melhorar para reduzir a judicialização, há um foco também na prescrição de medicamentos. Projeto de lei aprovado no mês passado prevê maior controle do que é solicitado por médicos e dentistas, que terão de justificar o motivo para solicitarem remédios fora da lista do SUS. Do contrário, podem ser punidos.

Um decreto detalhando as penalidades ainda será publicado até junho. A medida, alvo de críticas da classe médica, é apontada pelo governo como um mecanismo para evitar gastos desnecessários aos cofres públicos, caso não seja comprovado que o medicamento fora da lista pode oferecer benefícios ao paciente.

Pesquisadora em saúde, a professora Elda Bussinguer defende que haja maior controle, mas ressalta que não se pode retirar a autonomia médica. “O profissional tem que prescrever dentro de uma lógica igualitária, de forma a garantir a todos o acesso, e não apenas a um. Mas a responsabilidade não é só do médico. O governo precisa olhar para as suas fragilidades e ver que há problema de gestão”, pondera.

Outro projeto aprovado foi a criação do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde (ICEPi) - a Escola de Medicina do Estado. Por meio dessa unidade, o secretário acredita que seja possível, por exemplo, melhorar a atenção primária, um dos gargalos da saúde apontados por ele.

“A estratégia será a de formação de médicos de família e comunidade e as prefeituras, em convênio com o Estado, ao mesmo tempo que vão formar profissionais poderão promover instruções em serviço. De maneira que, ao final de quatro anos, os municípios terão grande quantidade de médicos especialistas, resolutivos.”

CIDADES SOFREM COM PROBLEMA

Presidente do Colegiado de Secretários Municipais de Saúde do Espírito Santo (Cosems-ES), André Fagundes reconhece que alguns municípios têm dificuldades na cobertura de atenção primária, porém ressalta que as prefeituras também são penalizadas com judicialização, o que, segundo ele, compromete a ampliação de serviços.

“O município também sofre porque recebe demandas da Justiça que não são de sua competência, como exames e consultas de média complexidade. Ao ser responsabilizado, há municípios comprometendo de 20 a 30% do orçamento previsto para o ano inteiro somente para atender as decisões judiciais”, revela.

ESTADOS QUEREM A UNIÃO ARQUE COM AÇÕES

Estado não quer ser responsabilizado por remédios de alto custo na Farmácia Cidadã. (Caíque Verli)

 

A judicialização é um fenômeno que não está restrito ao Estado, tanto que entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Na próxima semana, a Corte vai começar a decidir sobre aspectos que geram muitas discussões no âmbito estadual. Um dos pontos em análise diz respeito à responsabilidade da União nas causas referentes a medicamentos de alto custo. Se o Judiciário atender ao que os governadores querem, os pacientes terão que ingressar com ações contra o governo federal.

Na última quinta-feira (9), um grupo de governadores esteve reunido com o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para apresentar suas preocupações em relação ao aumento substancial das judicializações e para que haja uma normatização sobre pontos conflituosos.

“A preocupação de todos é o esvaziamento de recursos no orçamento da Saúde com a judicialização”, destacou Erfen José Ribeiro Santos, chefe da Procuradoria do Estado em Brasília, e que representou o governador Renato Casagrande na audiência.

Entre as ações que estão tramitando no STF está a que trata sobre a responsabilidade solidária dos entes (União, Estados e municípios) na prestação de assistência à saúde.

“Os medicamentos de alto custo, por exemplo, são de responsabilidade da União mas, muitas vezes, é o Estado que arca com essa despesa. Então, quando o STF balizar essa questão, o que se espera é que deixe claro a quem compete o fornecimento”, explica o procurador.

Medicamento de alto custo é aquele destinado a doenças raras e, por isso, utilizado por um número reduzido de pessoas. Por essa característica, esses remédios não são adquiridos regulamente.

ACOMPANHAMENTO

Integrante da Associação de Fibrose Cística do Espírito Santo (Afices), Letícia Lengruber acompanha de perto a discussão porque sabe que a decisão se reflete diretamente na vida das pessoas com doenças raras. Sua preocupação é sobre como será custeado o tratamento dos pacientes, já que é muito caro. Hoje, segundo ela, dos 20 medicamentos que mais oneram os cofres do Ministério da Saúde, 19 são para agravos raros.

De alto custo é diferente dos medicamentos não padronizados, que são aqueles que não integram a lista oficial do SUS. Mas, pelo fato de constantemente serem prescritos por médicos, também estão na pauta de discussão do STF. Neste caso, a expectativa dos governadores é que haja um posicionamento se, de fato, a administração pública deve se responsabilizar por essa despesa.

No ano passado, 18 remédios que não estavam na relação do SUS entraram na lista dos mais pedidos em ações contra o Estado.

Segundo a assessoria do STF, o ministro Dias Toffoli ponderou que o Judiciário precisa refletir sobre suas decisões. “Tem que se autoconter um pouco mais. Temos o limite do possível. A União, os Estados e os municípios têm dificuldades fiscais. A ideia é estabelecer parâmetros nas ações para termos segurança jurídica”, afirmou.

JUDICIÁRIO QUER USAR CONCILIAÇÃO

Para tentar minimizar os gastos públicos decorrentes das ações judiciais, o Poder Judiciário está discutindo a possibilidade de implementar duas novas instâncias na apreciação dos casos: a mediação e a conciliação.

Coordenadora do Comitê Executivo Estadual do Fórum Nacional de Saúde do Espírito Santo, a desembargadora Elisabeth Lordes disse, em evento no Conselho Regional de Medicina (CRM), que abordou o crescimento dos casos de judicialização no Estado, que a mediação pode ser implantada para que se busque um acordo entre as partes antes mesmo do pedido virar uma ação judicial.

“Já para os processos existentes, a proposta é que haja uma fase de conciliação”, afirmou a desembargadora.

Elisabeth Lordes explica que o projeto ainda não foi implementado, e está numa etapa de discussão com a Coordenadora do Núcleo de Mediação e Conciliação do Tribunal de Justiça, bem como com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa).

Entre as medidas para reduzir as ações, também está a ampliação do Nat-Jus, um núcleo do Judiciário composto por equipe de médicos e farmacêuticos que orientam as decisões judiciais. As ações contra o Estado, entre 2015 e 2018, foram representadas em sua maioria pela Defensoria Pública, seguida por representação própria, advogados e Ministério Público.

MEDICAMENTOS MAIS JUDICIALIZADOS EM 2018

Fora da lista do sus

18 remédios

Duloxetina - para tratamento de transtorno depressivo e fibromialgia;

Hilano - para aplicação intra-articular;

Lisdexanfetamina - para transtorno de déficit de atenção;

Empagliflozina - para diabetes tipo 2;

Pregabalina - para tratamento de dor neuropática; e terapias de crises epiléticas

Trazodona - para depressão; dor crônica

Venlafaxina - depressão e ansiedade

Escitalopram - para tratamento de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC); depressão

Rosuvastatina - tratamento de dislipidemia (colesterol, triglicerídeos)

Paliperidona

Aripiprazol - tratamento de esquizofrenia; depressão;

Ácido Zoledrônico - tratamento de metástases ósseas; reduzir a quantidade de cálcio no sangue de pacientes com hipercalcemia;

Bortezomibe - para tratamento de mieloma múltiplo;

Sertralina - para depressão, TOC, transtorno do pânico; ansiedade; fobia social; Tensão Pré-Menstrual.

Desvenlafaxina - para depressão;

Bevacizumabe - tratamento de câncer colorretal;

Levetiracetam - para crises convulsivas

Alprazolam - para transtornos de ansiedade;

De responsabilidade do Estado

5 remédios

Enoxaparia - para tratamento de trombose venosa profunda;

Risperidona - para esquizofrenia, psicoses agudas, transtorno bipolar;

Quetiapina - para esquizofrenia, transtorno bipolar;

Rivaroxabana - para prevenção de tromboembolismo venoso;

Topiramato - para epilepsia;

De responsabilidade dos municípios

2 remédios

Gliclazida - para diabetes tipo 2;

Clonazepam - para prevenção de convulsões.

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Fonte: Sesa e pesquisa AG

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