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Projeto de lei facilita internação voluntária de usuários de drogas

Projeto de lei facilita internação voluntária de usuários de drogas

Proposta foi aprovada pelo Senado e segue para sanção presidencial

Publicado em 17 de maio de 2019 às 02:23

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Homem fuma crack: com projeto, família não precisará de decisão judicial para internação involuntária. (Edson Chagas)

O Senado aprovou na quarta-feira (15) à noite um projeto de que facilita a internação involuntária dos usuários de drogas, ou seja, sem o consentimento deles. A proposta é polêmica e foi duramente criticada por especialistas ouvidos pela reportagem. Segundo eles, a lei legitima um processo de exclusão social que não é eficaz como forma de tratamento para dependência química. Além disso, ela ignora as estratégias de tratamento e leis já existentes sobre o assunto.

Como já foi aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto vai seguir para sanção do presidente Jair Bolsonaro.

Além da medida citada, o texto, que é um pacote que altera 13 outras leis, traz uma série de mudanças no Sistema Nacional de Política Públicas Sobre Drogas. Há ainda previsão de aumento da pena mínima de prisão de cinco para oito anos para o traficante que chefiar organização criminosa (leia as mudanças na página 7).

“Atualmente, a internação compulsória (involuntária) já existe e é usada, só que apenas mediante decisão judicial (com a mudança, isso deixa de ser necessário). É importante quando o sujeito apresenta risco imediato para si ou para terceiros, mas não podemos transformar isso em uma questão de cárcere privado”, afirma o médico e PHD em dependência química João Chequer.

A opinião é compartilhada pela psicóloga Keli Lopes da comissão de Saúde do Conselho Regional de Psicologia. “A internação tem que ser feita com muito cuidado e cautela. É preciso tentar todas as outras estratégias antes de internar. Se você banaliza a internação involuntária, ela vira regra e você retira do usuário a capacidade de decidir sobre a própria vida. Isso é grave”, diz.

Segundo ela, já existem evidências demonstrando que internar um dependente químico contra a vontade dele não aumenta necessariamente as chances de melhora. “O índice de reinternação é alto, o que já nos dá indício da baixa eficácia. Além disso, todo o movimento da luta antimanicomial prova que prender as pessoas à força é uma forma de exclusão. Não é tratamento”, diz.

A especialista enfatiza que o projeto não trata do problema como ele é: complexo e com muitas causas. “Há modelos de serviços que dão certo sim, que consideram a complexidade da questão, que não se resolve de uma hora para outra. Muitas vezes o uso de drogas é consequência de uma desigualdade social.”

O médico João Chequer também teme que o mecanismo seja utilizado como forma de exclusão. “A família não aguenta o dependente químico, acha que ele causa problemas. Ela vai poder conseguir um laudo e tirá-lo do convívio social. Fica a revelia da vontade do indivíduo”, diz.

Outra crítica dos especialistas é em relação ao fato de que o projeto só contempla, como forma de tratamento, a abstinência total da droga. Segundo eles, as políticas precisam ser voltadas para redução de danos, pois há pessoas que não conseguem ou não querem deixar o vício. Para essas pessoas, políticas que focam apenas em abstinência não são eficazes. “Essa perspectiva de abstinência já foi utilizada em diversos locais do mundo e é comprovado que ela não reduz o número de pessoas que consomem drogas. Os leitos de desintoxicação já existem e são usados quando necessários”, afirma o psicólogo Getúlio Souza.

POSIÇÃO DO PRESIDENTE

O secretário especial para a Câmara Federal, Carlos Manato (PSL), disse não ser possível antecipar a posição do presidente em relação ao projeto de lei. Ele afirmou que na quarta-feira, quando o texto foi aprovado no Senado, a prioridade do governo era a presença do ministro da Educação, Abraham Weintraub, na Câmara dos Deputados. A previsão é que a análise dos detalhes do projeto comece na próxima terça-feira. “De qualquer forma, o prazo é de 15 dias úteis para avaliação do projeto”, afirmou.

SAIBA MAIS

O que o projeto prevê

Tipos

O projeto considera dois tipos de internação de dependentes químicos em unidades de saúde e hospitais:

Voluntária: feita com consentimento do dependente;

Involuntária: quando a internação acontece sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou responsável ou de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com exceção de servidores da segurança pública.

Detalhes

Laudo

A internação involuntária deve ser realizada após laudo médico atestando a necessidade e será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada.

Outros tratamentos

Deve ficar comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas.

Duração

A internação involuntária terá prazo máximo de 90 dias e o término será determinado por médico. A família poderá solicitar a interrupção do tratamento.

GASTO DE R$ 41 MILHÕES NA COMPRA DE LEITOS

O Himaba, em Vila Velha, é um dos hospitais públicos com leitos de saúde mental, diz a Secretaria de Saúde. (Fernando Madeira)

 

O projeto de lei que amplia o acesso às internações compulsórias dos dependentes químicos, se sancionado, já encontra um cenário desfavorável no Estado. Com déficit de leitos apropriados à esse tipo de situação, o Espírito Santo gastou cerca de R$ 41 milhões só em 2018 com a compra de leitos em clínicas privada, muitas vezes para suprir demandas judiciais.

A defensora pública Geana Cruz, que atua em Vila Velha, recebe frequentemente familiares pedindo que a Justiça obrigue um parente que tem dependência de drogas a se internar. Atualmente, esses pedidos são feitos com base em uma lei de 2001 que trata de transtornos psiquiátricos. “O número de leitos psiquiátricos é insuficiente comparado com a demanda de internações. Então, o Estado tem sempre que comprar vagas em clínicas privadas. Alguém está lucrando com isso”, afirma.

No sistema da Defensoria, no ano passado, foram atendidas 326 pessoas com essa demanda. Esse número, no entanto, pode ser muito maior já que ele não contabiliza as reinternações nem os pedidos feitos em municípios sem sistema eletrônico disponível. “O aumento da procura é crescente. Temos um Estado com índice grande de dependência química e que não entendeu que temos que investir na atenção psicossocial”, diz.

Segundo ela, os governos gastam muito em internações, mas os investimentos públicos nas redes básicas ainda é muito baixo. “Enquanto não tiver estrutura na rede de atenção psicossocial, vai ter muita internação e muito dinheiro indo pro ralo”, atesta.

Outra preocupação da defensora é com a fiscalização dos locais onde esses pacientes serão alocados. Como, pelo projeto, a internação involuntária passa necessariamente por um juiz, ela acredita que será preciso redobrar a fiscalização. “Se as internações forem feitas de qualquer jeito, as pessoas vão acabar presas em clínicas e sabemos que em alguns casos esses locais são violadores de direitos”, diz.

ESTADO

 

A Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) afirmou por meio de nota que segue a política nacional, que visa garantir o cuidado às pessoas com transtornos mentais e necessidades decorrentes de drogas em “serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, com uma lógica de internações de curta permanência, incentivando a internação em hospitais gerais, e constituição de uma rede de serviços que permitam a atenção e tratamento do paciente em seu município, como Centro de Apoio Psicossocial (Caps).”

A Secretaria conta hoje com leitos de Saúde Mental, no Hospital de Atenção Clínica – HEAC, no Centro de Atendimento Psiquiátrico Aristides Alexandre Campos – CAPAAC, no Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves – HIMABA, e em 05 Hospitais filantrópicos.

O órgão reforçou que a internação é medida excepcional e que está condicionada a um laudo médico que exponha os motivos da medida. “O tempo de internações para estes pacientes sempre foi orientado pela Sesa, com no máximo 90 dias, conforme Portaria Estadual.”

ENTRADA EM COMUNIDADES TERAPÊUTICAS CONTINUA SENDO VOLUNTÁRIA

Além de prever internações involuntárias, o projeto inclui Comunidades Terapêuticas Acolhedoras no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). De acordo com o texto, a permanência dos usuários de drogas nesses estabelecimentos de tratamento poderá ocorrer apenas de forma voluntária. Para ingressar nessas casas, o paciente terá de formalizar por escrito seu desejo de se internar e poderá sair quando quiser.

A proposta estabelece que esses locais devem servir de “etapa transitória para a reintegração social e econômica do usuário de drogas”. Em geral, no Brasil, essas comunidades têm fundo religioso.

Segundo a psicóloga Keli Lopes, da Comissão de Saúde do Conselho Regional de Psicologia, essas comunidades existem porque nunca foi implementado o serviço de acolhimento residencial transitório, previsto na rede de atenção psicossocial. “O projeto, ao invés de fortalecer a rede, incentivar a implementação do serviço, ele fortalece a comunidade terapêutica que não é serviço de Saúde, tem pouca ou nenhuma fiscalização do poder público e algumas já foram alvo de denúncias seríssimas de violações de direitos de quem está internado”, afirma.

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Como parte de sua Política Nacional de Drogas, que prevê a abstinência como objetivo no tratamento da dependência química, o governo de Jair Bolsonaro decidiu financiar uma em cada quatro comunidades terapêuticas existentes no país, destinando dinheiro público a esses espaços de cunho essencialmente religioso, voltados ao abrigamento de dependentes.

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