> >
'A guerra é uma oportunidade de ver a condição humana em situações extremas'

"A guerra é uma oportunidade de ver a condição humana em situações extremas"

Autor do livro "Minha Guerra contra o Medo", o jornalista e comentarista da Rádio CBN fala das experiências na cobertura de conflitos mundiais e do desafio de lidar com o medo da morte

Publicado em 29 de junho de 2019 às 23:39

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura

Coberturas de guerras e outros eventos em 70 países, onde esteve por inúmeras vezes na mira de bombardeios, morteiros e tanques de guerra, são memórias que o jornalista e analista internacional da rádio CBN, Lourival Sant’Anna, conta em seu mais novo livro, “Minha Guerra contra o Medo”.

Na próxima quinta-feira, Lourival desembarca no Espírito Santo para participar, em Vitória, de um Talk Show da rádio CBN Vitória e debater com os capixabas o seu trabalho, além de lançar a sua mais nova produção.

No livro, Lourival detalha passos para vencer o medo. Entre as dicas, está o fato de aceitar “que a vida é regida pelo acaso” e que nem tudo está sob o nosso controle. Em entrevista ao jornal A Gazeta, Lourival Sant’Anna fala sobre a sua experiência como repórter em grandes conflitos em países como Afeganistão, Iraque, Líbano e Egito e de que como aprendeu a lidar com o medo da morte. “Tirei conclusões sobre como e por que o medo diminui de importância, em vez de crescer dentro de nós”, afirma o jornalista.

Quais os principais medos um repórter enfrenta ao fazer a cobertura de uma guerra?

Os maiores riscos são os bombardeios, porque eles atingem uma área extensa e não conseguimos sair do lugar na mesma velocidade em que as bombas caem. Estive sob bombardeio no Líbano em 2006, na Geórgia em 2008, na Líbia em 2011 e em Gaza em 2014. Em segundo lugar, são os disparos de morteiros de canhões. Um tanque disparou contra um carro em que eu estava em uma estrada na Líbia. O carro balançou com a passagem do morteiro, mas não foi atingido. No Iraque, um tanque americano virou o canhão para nosso carro, mas conseguimos fugir antes que disparasse. Os franco-atiradores também são uma ameaça que enfrentei várias vezes na Líbia. Existe também o risco de ser capturado. Fui preso pelo Exército russo na Ossétia do Sul em 2008. Mas depois de 3 horas de interrogatório entenderam que eu era mesmo um jornalista e não um espião militar. Me convidaram para dormir no alojamento dos oficiais e organizaram um comboio de veículos blindados para me levar para o outro lado do front, que atravessei a pé. Conto essas histórias em detalhes no livro.

No livro você cria passos para vencer o medo. Como funciona?

A partir dessas experiências, tirei conclusões sobre como e por que o medo diminui de importância, em vez de crescer dentro de nós. E proponho sete passos de como lidar com o medo, com base nessas constatações. Essas propostas se aplicam também às situações do dia a dia. O medo é a força dominante da nossa sociedade, que nos paralisa e nos faz continuar em situações que nos fazem sofrer, ou nos faz fugir quando deveríamos ficar e lidar. Os passos que eu proponho nos ajudam a identificar quando é hora de ficar e quando é hora de mudar. O fio condutor desses sete passos é sair do nosso mundo subjetivo, dos nossos dramas internos dos quais o medo se alimenta, e nos movermos para fora de nós mesmos, nos interessarmos pelo mundo, pela realidade, e pelas outras pessoas, por meio da empatia.

Qual o pior momento de todas as atuações em conflitos? E que aspectos positivos podemos encontrar nesses cenários catastróficos?

O pior momento é o medo de morrer, de não ver nunca mais nossa família. Nesse momento, eu me arrependo de ter ido e me recrimino por isso. Depois passa, vejo em perspectiva e percebo que saí melhor e mais forte com esse aprendizado. A gente se "desdramatiza" internamente e se torna mais leve quando entende que não tem controle sobre as coisas e nem sobre o futuro. A gente organiza e planeja tudo o que pode, mas precisa ter a consciência de que o imprevisto acontecerá. Descansar na incerteza, aceitar que a vida é regida pelo acaso diminui o medo e nos torna mais maduros e preparados para a realidade. A ilusão do controle alimenta o medo porque, quando descobrimos que as coisas saem do nosso controle, entramos em pânico e investimos ainda mais na tentativa de controlar tudo, nos tornamos mais rígidos e nos protegemos nas fantasias.

Qual a postura ideal de um jornalista diante de uma guerra? Para entender os dois lados do conflito.

É a mesma postura que todo jornalista e todo ser humano deveria ter em qualquer situação: a consciência de que nada sabemos, de que estamos aqui para aprender. Acordar todos os dias e se lembrar de que é um dia novo, que nunca vivemos antes. Nenhuma experiência se repete. Não dar tanta importância para nossas certezas. Entender o valor das nossas dúvidas, das nossas perguntas. Ser movido pela curiosidade. Todas as pessoas têm as suas razões para agir como agem. Todos têm sua história. Em vez de julgar, tentar entender. O que não significa concordar, justificar ou apoiar.

O que só um repórter de guerra visualiza que não é mostrado pela imprensa em geral?

A guerra é uma oportunidade de ver a condição humana em suas situações extremas, de generosidade, desapego, amor à liberdade, luta pela dignidade, e também ódio, ressentimento, desejo de vingança. Aí descobrimos a força do ser humano, os conteúdos mais fortes e mais desconhecidos que trazemos dentro de nós. No plano político, social e histórico, a guerra catalisa os processos. Para entender um país, uma sociedade, é preciso estar com ela no momento da guerra, que imprime uma marca muito forte e determinante sobre ela. Nunca se volta a ser o que se era antes depois de uma guerra.

Como conviver com as lembranças dos conflitos? Você criou algum método para que não se abalasse psicologicamente e ter um pouco de frieza diante dos cenários?

Sim, eu falo sobre isso no livro também. Presenciar uma cena chocante como repórter é diferente de presenciá-la como ser humano. Claro que o repórter continua sendo um ser humano, mas o olhar dele é muito diferente. Eu faço terapia, e lá trabalho essas questões. Quando tenho acesso à internet, faço sessões também durante as coberturas de guerra, e isso ajuda bastante. Mais recentemente tenho feito meditação também, que no meu caso foi um complemento muito valioso.

Você já cobriu guerras e eventos em inúmeros países. O que está sempre em busca? De novas histórias? O que foi mais marcante?

Agora já são 70 países depois do meu trabalho de 50 dias na África. Sou movido pela curiosidade. Ela me leva a voltar aos países que já conheço, para acompanhar as mudanças e descobrir novas facetas que não conheci. Muitas vezes ao voltar, mudo completamente minha visão de um país. E, claro, a curiosidade me leva também a conhecer novos países. Isso é inesgotável. Não consigo escolher uma experiência que tenha sido mais marcante. São muitos aprendizados, muitas descobertas.

Como analisa a atual situação do Brasil e como o Brasil é visto lá fora?

O Brasil é um enigma: como um país com tantas potencialidades, tanto talento humano e tantas riquezas naturais, pode continuar tão pobre, violento, desorganizado e injusto?

Em guerras, geralmente há ausência total da democracia. Não estamos em guerra, mas temos a nossa democracia ameaçada?

Existem dois conceitos de democracia: a institucional e a cotidiana. Nossa democracia institucional está em construção e não acho que esteja ameaçada. Vive os sobressaltos, os questionamentos que ocorrem em todos os países democráticos. O escândalo em torno das mensagens entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores é um caso típico. Poderia acontecer em qualquer democracia avançada. Tanto o fato em si quanto sua divulgação e todos os questionamentos, críticas e justificativas. Nossa democracia cotidiana está muito fragilizada pelas injustiças e desigualdades sociais e pelos desrespeitos à liberdade das pessoas de serem o que são, de fazerem o que querem de seu corpo. Há muitos dogmas e influências perversas que nos desviam do respeito pelas diferenças, e também que nos impedem de organizar nossa economia e nosso Estado de maneira nos tornarmos um país mais produtivo, mas competitivo, que gere mais riqueza, e que essa riqueza possa ser um pouco mais bem distribuída. Infelizmente muitos discursos supostamente a favor da justiça social perpetuam a pobreza e a desigualdade. O Brasil tem muito o que aprender e aprimorar.

Quais ensinamentos de todas as experiências você deixa para as pessoas? Principalmente, para enfrentar esses cenários de guerra nas cidades brasileiras.

É impossível ser feliz isoladamente, quando ao nosso redor existem pessoas sofrendo. Vivemos em sociedade. Temos que nos preocupar com o bem-estar dos outros. Não existem soluções individuais para problemas coletivos. A empatia, importar-se com o outro, é um dos sete passos que proponho para lidar com o medo. E é o tema do meu novo projeto, "Lições da África, que acabo de realizar.

Talk Show CBN

Local: Auditório da Rede Gazeta.

Quando: 4 de julho, às 9h

Como participar: Vagas limitadas.

Este vídeo pode te interessar

Inscrições gratuitas: cbnvitoria.com.br/talkshow

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais