> >
'Há muita discussão sobre os direitos de se armar, mas pouca sobre os deveres'

"Há muita discussão sobre os direitos de se armar, mas pouca sobre os deveres"

Diretor do Sindicato dos Policiais Federais, Fabricio Sabaini afirma que armar a população é terceirizar uma responsabilidade do Estado que ainda falta vontade política para combater o tráfico de armas

Publicado em 22 de junho de 2019 às 22:44

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura

“Há muita discussão sobre os direitos do cidadão de se armar, mas pouca sobre os deveres”, Fabrício Sabaini, Diretor do Sindicato dos Policiais Federais afirma que armar a população é terceirizar uma responsabilidade do Estado e que ainda falta vontade política para combater o tráfico do material.

Um dos assuntos mais debatidos no país nos últimos tempos, os decretos do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que flexibilizam o porte e a posse de armas no Brasil, divide opiniões. Derrubado no plenário do Senado por 47 votos a 28, o decreto ainda tem que passar pela Câmara, em regime de urgência, indo direto para o plenário. Especialista no assunto, o mestrando em Segurança Pública e Diretor do Sindicato dos Policiais Federais (SINPF-ES) Fabrício Sabaini acredita que há muita discussão em relação aos direitos de se armar, mas pouca discussão sobre os deveres.

Como tem sido a posição do Brasil no ranking de homicídios no mundo? A arma de fogo é o principal instrumento utilizado?

Estudos apontam que o Brasil alcançou a liderança no ranking de homicídios no mundo. Sua maioria absoluta é de morte praticada com armas de fogo. E essa é uma certeza científica e não uma hipótese. Todos esses óbitos passam por institutos médicos legais que caracterizam a causa da morte.

Qual sua opinião sobre a flexibilização do controle de armas de fogo para a população?

Minha abordagem sobre o assunto é muito científica e eu gosto de sair dessa questão ideológica de hipóteses. Há muita discussão em relação aos direitos de se armar, mas pouca discussão sobre os deveres. Não vejo vontade política de fiscalização de armas adquiridas, o que pode ocasionar um grande problema. Se for da forma que está previsto no decreto de armas, que não fala de um controle eficaz e periódico, a possibilidade de aumentar as mortes por armas de fogo é muito grande.

Por quais motivos?

Segundo o decreto, a pessoa fica dez anos com o registro da arma válido legalmente, sem precisar prestar conta. É um período muito grande para que não tenha um controle do Estado sobre a situação da arma. Quem tem um veículo ou imóvel, por exemplo, precisa pagar impostos e prestar contas anualmente. Mas quem tem arma de fogo, muitas vezes, não quer se submeter a um controle periódico. É muito fácil culpar as polícias, mas essa é uma decisão política.

A maior quantidade de perfurações de arma de fogo no Espírito Santo é causada por revólver calibre 38. A maior quantidade de armas apreendidas no estado ainda é o revólver 38. De 2016 e 2017, foram 1.221 casos de perfurações com revólver calibre 38 e 498 casos de perfurações com pistola calibre 380. Podemos afirmar, cientificamente, que o que tem causado mais perfurações de arma de fogo e, consequentemente, a arma com maior quantidade crimes letais é o revólver calibre 38.

A maior quantidade apreensões também é desse revólver. Aí quando vamos ver a idade das armas apreendidas, percebemos que são antigas, da década de 80. As armas são de uma época em que o controle da aquisição era menor. Você conseguia arma até em lojas de departamento. Você conseguia um registro da polícia com um controle muito pequeno. Vale lembrar que a maioria da armas apreendidas não possui numeração raspada. Posso presumir que essas armas foram adquiridas de forma legal. A quantidade de armas apreendidas e a idade delas mostram que a falta de controle no pós-venda desses revólveres, na década de 80, está ocasionando a maior quantidade de mortes por armas legais no Espírito Santo hoje.

Não estou falando que não exista tráfico internacional de armas ou que isso não deva ser combatido. Mas não são armas que vêm de fora que estão provocando mortes no Espírito Santo. Há um vínculo da falta de controle de armas como o revólver calibre 38 e com as mortes por arma de fogo. Muita gente argumenta que quem vai comprar a arma é gente de bem. Não posso falar que todas as armas adquiridas vão parar na criminalidade, mas a falta de um controle do pós-venda pode ocasionar o mesmo resultado como a que tivemos com a falta de controle nos anos 80.

Como é a fiscalização hoje?

A Polícia Civil não tem a gerência do Sistema Nacional de Armas e a Polícia Federal não tem efetivo suficiente nem pra dar conta dos registros de armas, quanto menos do controle. Sinto muita falta desse viés: controle, penalização de quem tem posse de arma e usa como se tivesse direito a porte. Deram direitos, mas não deram os deveres inerentes a esses direitos. Há também uma inefetividade das polícias na investigação. Se acontece um homicídio com uma arma e a polícia desvenda a autoria e a materialidade do crime, não é investigado como a pessoa adquiriu a arma. Deveria ter ao menos um questionamento de onde o criminoso adquiriu a arma e depois sim enviar o caso a uma delegacia especializada, para que não exista mais esse fluxo de armas.

Há quem acredite que a possibilidade de portar armas de fogo dará mais proteção contra a criminalidade.

Os estudos já apontam que uma pessoa armada tem maior probabilidade de morrer. O que decide o combate é o efeito surpresa. Se a pessoa tiver com uma arma cintura ela pode ser surpreendida e, mesmo armada, será rendida. O senador Marcos do Val, que é pró-armas assumidamente, sustentou no último debate que não é a pessoa que porta arma que vai reagir ao criminoso, mas sim uma terceira pessoa que flagrar a cena. É um argumento de hipóteses que fica difícil tratar de forma científica.

Esse assunto é tratado cheio de hipóteses para muita gente. É um tema tão apaixonante que é difícil convencer outras pessoas. Na verdade, o que as pessoas realmente querem é segurança e não armas. Elas falam das armas porque acham que assim vão se sentir mais seguras. Percebemos isso até mesmo na “arquitetura do medo”, com casas cada vez mais gradeadas e pessoas enclausuradas.

Há também quem defenda que o crime ocorreria de qualquer forma, com armas brancas por exemplo, mesmo sem a flexibilização das armas de fogo.

Esse argumento de que se houvesse menos uso de armas de fogo, haveria o mesmo número de mortes, não condiz com a realidade. Dados de homicídios e crimes letais intencionais entre 2009 a 2017 mostram uma variação em torno de 200 mortes que não são por armas de fogo no Estado. Nos lugares onde diminui a quantidade homicídios por arma de fogo, não altera o índice de mortes por outros tipos de armas.

Qual o papel institucional da segurança pública em meio a essa discussão?

O Estado teve o monopólio da força para que as pessoas ao invés de se preocuparem em proteger-se, preocupassem em produzir. A partir do momento que entra num aspecto “todos contra todos”, o Estado pode vir a perder a produtividade do cidadão. Olha quanta verba se gasta em segurança pública e privada que poderia estar sendo aplicada em produção. Há casos de empresas indo embora do Brasil por falta segurança pública, por estarem cansados de serem assaltados. É pela garantia de segurança que pagamos impostos. Dar armas ao cidadão é terceirizar uma responsabilidade do Estado. Ter arma não é barato. E a parcela sociedade que não tem meios para comprar armas? Não terá segurança? É uma certa injustiça achar que quem tem arma está seguro. E quem não tem condição?

Os casos de disparos acidentais ou por intolerância podem aumentar?

Isso eu posso afirmar como uma hipótese bastante provável. O índice de suicídio nos Estados Unidos é muito grande. Muito por conta, entre vários motivos, da disponibilidade da arma de fogo no país. Temos na Polícia Federal, e isso posso falar com certeza, um grande índice suicídio de policiais. Os números são absurdos se comparados ao restante da sociedade, que não possue armas. E isso vale para a atividade policial como um todo. Muito disso por conta disponibilidade da arma. Há quem diga: “mas as pessoas se matariam da mesma forma”. Olha, a pessoa pode até tentar, mas desconheço algo tão efetivo quanto um tiro cabeça. Estudos mostram que muitas vezes a pessoa tenta tirar a própria vida uma vez e se não conseguir, ela dificilmente tenta de novo, pois agiu em um momento fraqueza.

Sabemos que a maioria das mortes é provocada por armas registradas e extraviadas. Mas, nos últimos meses, vimos apreensões na Grande Vitória até de armas de guerra. Consegue entender como esse tipo de armamento chegam no Espírito Santo?

Pelo tráfico internacional de armas. Não são armas vendidas por um civil. Pode até haver agentes de segurança pública no meio, mas acredito que não são os principais fornecedores. Geralmente os caminhos são os mesmos: a fronteira do sudoeste do Paraná com Paraguai. Ciudad del Este, vizinha a Foz do Iguaçu, é uma rota forte.

A Secretaria de Segurança coloca sempre as fronteiras como pauta, mas a maioria das armas apreendidas não é internacional. De 2010 a 2017 foram 15.036 revólveres e 4.038 pistolas apreendidas no Espírito Santo. Esses dados, da própria Sesp, dizem que no mesmo período foram 57 fuzis apreendidos, que seriam do tráfico internacional. E digo de novo, isso não quer dizer que o tráfico internacional não deva ser investigado. Mas é importante falar que falta efetivo e falta foco na segurança pública quando se trata de tráfico de armas.

Da mesma forma há hoje uma delegacia sobre drogas das policiais Civil e Federal, deveria haver delegacia específica para tirar armas do mercado, tanto o revólver calibre 38, quanto armas de guerra. Parte muito de uma vontade política para que isso aconteça. É preciso uma estrutura policial não só no que diz respeito a armas, mas toda gama do crime.

Hoje, qualquer PM que pega um assaltante com celular roubado, por exemplo, fica três, quatro horas na delegacia. Não tem muito sentido. É uma rotina tão burocratizada, ineficiente, ineficaz que não inibe o crime. Muitas vezes o criminoso nem é preso. Ou quem é preso em flagrante normalmente é um preso eventual e não um chefe de organização. Isso só entope as delegacias e não resolve. Os métodos de investigação precisam ser alterados e não parar nesse processo quase judicializado. Os grandes casos de sucesso de investigação no Brasil são feitos de forma desburocrática, com trâmites mais rápidos e foco.

De que forma as apreensões de armas refletem nos índices de homicídios e como a bonificação aos PMs por arma ilegal apreendida no ES impactou na quantidade de crimes letais?

Tem uma relação direta entre a bonificação e a quantidade de armas apreendidas. E isso tem impacto na letalidade do Espírito Santo, fato que foi comprovado. Em 2015, quando não havia a bonificação, menos armas foram apreendidas e aumentou a criminalidade. Já nos anos seguintes, com a bonificação e maior apreensão de armas, esses índices diminuíram.

Este vídeo pode te interessar

 

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais