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Homofobia como crime só vale em novos casos

Homofobia como crime só vale em novos casos

Decisão do Supremo Tribunal Federal não será retroativa

Publicado em 15 de junho de 2019 às 02:47

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Sandro Bastos de Souza, professor concursado. (Vitor Jubini)

Quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito pela orientação sexual de uma pessoa agora é criminoso e pode ficar de um a cinco anos preso, além de pagar multa. Entretanto a nova punição para crime de homofobia – que iguala as condições da prática ao racismo, na Justiça – só será aplicada a casos que acontecerem a partir de agora, com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de criminalizar a discriminação de cunho sexual.

Isso porque a decisão não será retroativa, ou seja, LGBTI+ que já entraram na Justiça por algum episódio de difamação, injúria, discriminação ou tratamento desigual terão que continuar com a mesma ação.

De acordo com o defensor público Victor Oliveira isso gera um debate muito profundo. Mas, na prática, isso significa que homofobia só será crime após a publicação do acórdão da Corte que tipifica a prática, o que acontece depois da votação favorável à criminalização – finalizada na última quinta-feira, por oito votos a três.

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Eu não aguentava mais. Não conseguia nem conversar, só chorava. Então decidi tomar uma providência e entrei na Justiça

Sandro Bastos de Souza, professor concursado
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“Ainda terá que ter um estudo sobre isso, para que os juristas apliquem de forma correta a lei, mas o que está certo é que o que aconteceu antes não poderá ser tipificado como homofobia, então os processos que já estão correndo vão continuar do jeito que estão”, diz ele, que há algumas semanas entrou na Justiça com o caso de um professor que alega ser alvo de homofobia no trabalho, na Secretaria de Educação da Prefeitura de Vila Velha (PMVV).

Sandro Bastos de Souza, de 50 anos, garante que há mais de um mês está até sem entrar no seu local de trabalho por conta de homofobia. Ele, que é concursado na PMVV há cerca de sete anos, há três meses começou a conviver com comentários e conversas via WhatsApp de colegas que fizeram de chacota sua orientação sexual.

“Saí de férias, aproveitei os dias de folga e quando voltei minha mesa, que eu trabalhava, estava já ocupada por outra pessoa. Fui colocado à disposição da PMVV porque a pasta entendeu que meu trabalho estava excedente por lá e agora estou sem trabalho”, comenta ele, que há cerca de quatro semanas está realocado em outro órgão para que sua “falta” não seja caracterizada como abandono de emprego, como explica o defensor Victor.

“Eu não aguentava mais. Não conseguia nem conversar, só chorava. Então decidi tomar uma providência. Pensei: ‘Se estou passando por isso é porque a homofobia institucional está ficando muito séria e tenho que ver como posso combatê-la”, completa o servidor.

De acordo com o defensor, é difícil provar esse tipo de assédio, mas Sandro possui conversas de WhatsApp e cartão de ponto que podem indicar irregularidades. “O cartão de ponto está há mais de 30 dias como ‘trabalho externo’, o que mostra que ele realmente não está indo à secretaria, e em uma conversa, especificamente, pode-se entender que ele foi vetado de algumas atividades da secretaria depois que ele alega que determinados colegas descobriram que ele tinha um relacionamento homoafetivo”, garante Victor.

Segundo o defensor, o caso de Sandro foi enquadrado como racismo sob a alegação de discriminação, que é considerada crime no Brasil. “Mas há um vácuo. Se fosse enquadrado como homofobia, a tipificação faria com que houvesse investigação, em caso de queixa, e fosse aberto inquérito, por exemplo”, conclui.

Procurada, a PMVV diz que não procedem as acusações do professor, já que a prefeitura respeita toda e qualquer orientação sexual de seus servidores. “Na Secretaria de Educação trabalham servidores de diferentes orientações sexuais que jamais sofreram discriminação. Cabe ao acusador apresentar as eventuais provas sobre os fatos alegados, para que a pasta tome as devidas providências”, diz trecho final da nota enviada à reportagem.

ENTENDA

Ação no Supremo

Omissão

O STF iniciou em fevereiro o julgamento de duas ações que apontavam omissão do Congresso em editar uma lei para criminalizar a homofobia.

Criminalização

Em maio, o STF fez a quinta sessão sobre a criminalização de homofobia e transfobia. As ações pediam que se tornassem crime todas as formas de ofensas agressões e discriminações motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero.

Senado

Na véspera do julgamento, o Senado aprovou na CCJ projeto que inclui os crimes de discriminação ou preconceito de orientação sexual ou identidade de gênero na Lei 7.716/89, que tipifica os crimes de racismo. O STF decidiu por continuar o julgamento, que terminou ontem.

Votos no STF

A favor

Celso de Mello, Luiz Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia.

Contra

Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

O que muda

Qualquer ofensa a gays ou transexuais será considerada crime na Justiça e tratada da mesma forma que o racismo. Neste caso, a pena varia de um a cinco anos de reclusão e, ainda, o autor não terá direito à fiança, nem seu crime irá prescrever.

PRÁTICA JULGADA COMO RACISMO

Ministro Celso de Mello, relator do processo no Supremo Tribunal Federal. (Valter Campanato/Agência Brasil)

 

Até que o Congresso Nacional legisle sobre o tema e crie uma lei própria, a Justiça vai punir o homofóbico da mesma forma que pune o racista atualmente. Isso significa que quem praticar a homofobia poderá ficar preso por até cinco anos e ainda pagar multa, dependendo do que fizer contra a vítima. Na prática, a tipificação permitirá que os crimes contra LGBTI+ sejam investigados e julgados por esse motivo, mas especialistas entendem que população merece uma lei específica.

Relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello destaca que a homofobia representa uma forma contemporânea do racismo e que, pela omissão do Congresso, a Corte teria que decidir sobre o tema. “O direito das minorias deve compor a agenda desta Corte, incubida de zelar pela Constituição e pelos direitos dos grupos minoritários”, disse.

Para a advogada presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-ES, Flávia Brandão, a criminalização facilita a resolução do processo e permite que o homossexual, travesti ou transexual vá se queixar da homofobia na delegacia. Ela explica que, depois disso, a polícia abre inquérito e investiga o crime com uma tipificação adequada. “Isso não abrevia, não faz entender que qualquer ato pode ser criminalizado, porque nem tudo é, mas agora a gente pode tipificar”, reitera. Para ela, há também um valor simbólico na conquista. “Penso até que isso poderia diminuir os casos de discriminação e acho que é um avanço social muito grande a criminalização vinda do Supremo”, conclui.

LEI NÃO RESOLVE

De acordo com o conselheiro de Estado para Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos LGBTs do Espírito Santo, Aubrey Effgen, só a lei não resolve. “Não abole o preconceito. Pessoas negras têm a mesma lei há 30 anos e o racismo ainda existe. O mesmo vale para os LGBTI+. O que muda é a tipificação que nos dá instrumento legal que ajuda nos processos judiciais”, defende.

Para ele, o próximo passo é continuar lutando até que cada LGBTI+ “possa ter orgulho de quem é”, em suas próprias palavras.

“Com a criminalização, fica mais fácil enquadrar a prática do preconceito contra LGBTI+, mas não muda a mente das pessoas. É com educação que vencemos a incompreensão e o ódio ao diferente”, conclui.

VISIBILIDADE

 

Para o defensor público Victor Oliveira, um dos pontos principais de se criar uma lei específica é o fato de ela dar visibilidade à população LGBTI+. De acordo com ele, agora já poderão haver investigações, processos criminais e instauração de inquérito. No entanto, ainda haverá a falta da legislação própria.

Ele explica que atualmente alguns casos já conseguem ser enquadrados sob discriminação, que é crime, mas ele entende que a população homossexual é supervulnerável, o que pede uma atenção especial.

“É uma população que é desigual na vida real, nas relações interpessoais e no trabalho. Já tem uma série de dificuldades. Atualmente, a legislação pontualmente faz uma proteção à orientação sexual, mas não havia nada muito claro”, relata.

Segundo o defensor e Aubrey, as questões de trabalho refletem a falta de amparo. O ativista confidencia que há muita homofobia em ambientes profissionais e que a criminalização pode coibir essa prática. “Trabalho digno sem discriminação tem que ser garantido para os LGBTI+”, completa Aubrey.

CRIMINALIZAÇÃO É EQUÍVOCO, DIZ BOLSONARO

 

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou na manhã de ontem, em café da manhã com jornalistas em Brasília, que o Supremo Tribunal Federal (STF) “cometeu um equívoco” ao legislar e criminalizar a homofobia na última quinta-feira, dia 13.

Segundo ele, agora ficará mais difícil para LGBTI+ conseguirem trabalho. Isso porque, para o presidente, o empregador terá receio de contratar gays com medo de cometer algum crime. “Isso prejudica o próprio homossexual. Não tem na testa que ele é gay”, disse.

Bolsonaro também garante que “não custa nada” para o STF ter um ministro evangélico e voltou a defender a medida como já havia feito antes. “Tem que ter equilíbrio”, justificou, alegando que “especialmente agora” ele pretende indicar um representante evangélico à Corte. Em seguida, também confirmou que há “uma possibilidade grande” de que o indicado seja o atual ministro da Justiça, Sergio Moro.

RELIGIÃO

 

Antes das afirmações de Bolsonaro, o ministro Celso de Mello, o relator de uma das ações julgadas pelo STF, lembrou que a decisão não interfere nem compromete a liberdade religiosa.

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Dessa forma, o decano assegurou liberdade para líderes religiosos argumentarem em seus discursos que condutas homoafetivas não estão de acordo com suas crenças, “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio”.

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