Preso observa conferência de organizadores estrangeiros em torneio de xadrez
Preso observa conferência de organizadores estrangeiros em torneio de xadrez. Crédito: Fernando Madeira

Presos do ES usam internet para jogar xadrez com detentos estrangeiros

Capixabas, que cumprem pena em Viana por crimes como tráfico de drogas e homicídio, disputaram partidas com detentos de outros seis países

Publicado em 24/08/2019 às 23h31

Nas cadeias do Estado, presos planejam estratégias de ataque, caminhos para superar defesas e para vencer adversários. Buscam o xeque-mate, só que literalmente. É que tabuleiros de xadrez estão à disposição dos detentos, dentro das celas. Enquanto disputam partidas trancados nos cubículos, eles têm descoberto que o jogo é muito mais do que mover torres e cavalos, mas um manancial de oportunidades e de metáforas para as próprias vidas.

Nos dias 5 e 6 de agosto, a popularidade e a inserção do xadrez nos presídios do Espírito Santo possibilitou algo até então inédito. Presos, em pleno cumprimento de pena, jogaram um torneio de xadrez pela internet com detentos de outros seis países: Armênia, Bielorússia, Estados Unidos, Inglaterra, Itália e Rússia. Cada equipe foi representada por quatro jogadores.

Os quatro brasileiros são capixabas e cumprem pena no Estado por crimes como tráfico de drogas e homicídio. Três na Penitenciária de Segurança Média I e o outro na Penitenciária Agrícola do Espírito Santo. A localização de ambas no mesmo Complexo Penitenciário de Viana foi um dos critérios para a seleção. Evitou-se o deslocamento de presos de outras regiões. 

Uma estrutura especial com acesso à internet funcionou em uma sala do complexo para que os presos fossem conectados aos detentos estrangeiros por meio de uma das principais plataformas de xadrez virtual do mundo. Tudo foi acompanhado por profissionais do sistema penitenciário e por um árbitro instrutor do esporte.

Confirmando a longa tradição enxadrística, a Rússia venceu o torneio. O Brasil ficou na sexta posição, à frente da Inglaterra. O resultado foi considerado muito satisfatório por ter sido a primeira vez dos quatro capixabas jogando xadrez a partir de computadores. Mover as peças com o mouse e controlar o tempo são complicadores extras para quem não tem a prática. 

Foi sobre os ingleses o melhor resultado dos presos brasileiros, com todos os quatro jogadores conseguindo vitórias. Uma delas foi a do detento Deyvid Michel Alves, de 30 anos, de Vila Velha.

Graças à partida a seguir, jogada por ele com as peças brancas, poderá dizer que representou o Brasil em um esporte e superou um britânico (aperte o play para ver os lances da partida):

Preso desde 2012, Deyvid aprendeu a jogar na cadeia e, no time brasileiro, era quem tinha a habilidade mais refinada. "A cada jogo que a gente joga o nosso nível vai elevando. A gente vai aprendendo com quem sabe mais do que a gente. O jogo ajuda na disciplina, na educação. Vou estar levando isso para fora. Antes de fazer alguma coisa, você tem que pensar duas vezes. É como no xadrez", metaforiza o enxadrista que está prestes a deixar a prisão.

De fato, há uma regra bastante básica no xadrez. É a que obriga o jogador a só tocar uma peça quando tem certeza sobre qual movimento fará. Portanto, é necessário, antes de qualquer investida, analisar prós e contras de cada decisão a ser tomada. Uma competência útil à vida, inclusive a de quem cometeu ou cometerá crimes.

"O xadrez tem como benefício a tomada de decisão. O principal impacto na vida dos detentos é pensar nas decisões que eles vão ter após o presídio. Vão começar a ter uma visão de mundo diferente, talvez que não tiveram antes e que os levou a estarem aqui", avaliou Lindomar Tonini, presidente da Federação Espirito-Santense de Xadrez.

 Tonini, árbitro de xadrez, explica sobre o torneiro para detentos. Crédito: Fernando Madeira
Tonini, árbitro de xadrez, explica sobre o torneiro para detentos. Crédito: Fernando Madeira

Tonini atuou como árbitro do torneio e, antes, ofereceu um treinamento específico de 8 horas para os detentos locais. "Sexto lugar é um excelente resultado. Foi a primeira vez que todos eles jogaram uma competição, e pela internet. Isso é inédito no Brasil para o xadrez", completou.

Prova do resultado positivo é o fato de a última colocada no torneio, a Inglaterra, ser um país que leva a sério o ensino de xadrez nas prisões. É de um voluntário britânico, Carl Portman, um dos principais livros sobre o tema. Em "Chess Behind Bars" ("Xadrez Atrás das Grades", em tradução livre), ele conta sua experiência apresentando o jogo a presidiários.

PONTOS PARA O PAÍS

Felipe Bernardino, de 23 anos, conquistou pontos para o Brasil na competição. Preso pouco depois de chegar à maioridade e condenado por tráfico de drogas, calcula que deixará a prisão dentro de dois anos. No encarceramento, aprendeu como aperfeiçoar o movimento das peças, que aprendera ainda na infância.

Felipe Bernardino, 23 anos, aperfeiçoou seu conhecimento no jogo de xadrez na cadeia. Crédito: Fernando Madeira
Felipe Bernardino, 23 anos, aperfeiçoou seu conhecimento no jogo de xadrez na cadeia. Crédito: Fernando Madeira

Hoje, orgulha-se de saber praticar o esporte e lamenta não ter se aperfeiçoado antes.

"Comecei a praticar de verdade no sistema penitenciário, jogando dia a dia. Aí a cada dia que ia jogando, ia aprendendo mais. Quanto mais você joga com alguém mais forte, mais você vai aprendendo. Ajuda a abrir a mente, ajuda na disciplina, ajuda em vários aspectos. É jogo de paciência. Se não fosse pela falta de paciência, talvez eu não estivesse aqui", refletiu Bernardino, condenado por tráfico de drogas.

Eis a partida de Felipe contra o preso britânico (aperte o play para ver os lances da partida):

Mesmo diante dos quatro norte-americanos, o desempenho dos detentos de Viana foi considerado bom. No duelo Estados Unidos contra Brasil, o placar ficou em 2,5 a 1,5 para os estrangeiros. O time de lá foi selecionado dentro de 100 dos participantes do programa de xadrez de uma das principais cadeias do país, em Chicago, Estado de Ilinois. A habilidade foi o principal critério de escolha. 

POR DENTRO DO SISTEMA

Em geral, o sistema penitenciário brasileiro é fonte de problemas. A ideia de permitir que presos joguem xadrez entre si e pela internet passa pelo interesse do aparato estatal em manter o sistema penitenciário "calmo" e, ainda, oferecer oportunidades a quem, mais cedo ou mais tarde, voltará ao convívio social.

"O impacto é só positivo tanto para a unidade prisional quanto para os internos e para a própria sociedade. Projetos que envolvem raciocínio lógico e conhecimento ajudam a acalmar o sistema. A pessoa fica mais focada e, quando ela sair, já vai estar mais preparada para ser reinserida, seja no mercado de trabalho ou em outras oportunidades", afirmou a subsecretária de Ressocialização da Secretaria de Justiça (Sejus), Roberta Ferraz.

Roberta Ferraz, subsecretária de Ressocialização da Sejus, explica sobre projeto de xadrez para detentos . Crédito: Fernando Madeira
Roberta Ferraz, subsecretária de Ressocialização da Sejus, explica sobre projeto de xadrez para detentos . Crédito: Fernando Madeira

PROJETO

No Espírito Santo, o projeto "Xadrez Que Liberta" existe oficialmente desde 2008 e cria condições para que voluntários, inspetores do sistema e detentos aprendem e repassem conhecimento sobre o jogo dentro das unidades prisionais. Hoje, 88 detentos do Estado participam do projeto. Eles podem sair da cela por uma ou duas vezes na semana para jogar entre si por algum período.

É graças à cultura do xadrez dentro do sistema que Walber de Souza Miguel, 27 anos, conheceu o jogo e vem se aprimorando. Selecionado para o torneio internacional, contou que ele e outros internos passam boa parte do dia com os olhos voltados aos tabuleiros. "Em algumas unidades, não tinha tanto acesso ao xadrez quanto aqui. Aqui, tem bastante, jogamos bastante tempo", disse ele, preso em 2014 por homicídio.

"O Brasil não tem pena de morte, não tem prisão perpétua. Todas as pessoas que hoje cumprem pena vão voltar para a sociedade. Então cabe ao governo e à própria sociedade se fazerem a pergunta: como elas vão voltar? Como contribuir para o retorno? É pensando em frente de trabalho, em projetos, em forma de qualificação técnica, capacitação profissional que ajudam a inserir. Projetos como o de xadrez auxiliam nesse retorno", afirmou a subsecretária Roberta Ferraz.

AMERICANOS FALAM DOS BRASILEIROS

Os presos norte-americanos que participaram da competição cumprem pena em Cook County Jail, uma das maiores cadeias dos Estados Unidos, no condado de Cook, em Chicago, Estado de Ilinois.

Presos de Chicago, EUA, enfrentaram detentos de Viana em torneio de xadrez. Crédito: Divulgação / Cook County Sheriffs Office
Presos de Chicago, EUA, enfrentaram detentos de Viana em torneio de xadrez. Crédito: Divulgação / Cook County Sheriffs Office

O ineditismo da competição entre presidiários realizada no início do mês foi reportado pela imprensa de Chicago. Ao jornal Chicago Tribune, um dos detentos, de 33 anos, comentou seu jogo contra um dos presos do Espírito Santo.

"Eu cometi alguns erros. Tentei conseguir uma vantagem sacrificando uma peça, mas ele previu a ideia e não funcionou. Por isso, eu tive que mudar todo o meu jogo", comentou o americano. A partida dele terminou empatada.

Ele e os demais norte-americanos na competição integram um projeto de popularização do xadrez em presídios iniciado em 2012 por ninguém menos que Anatoly Karpov, grande mestre do esporte e campeão mundial entre 1975 e 1985 e, mais tarde, entre 1993 e 1999.

O xerife do condado de Cook, Thomas J. Dart, classificou o torneio como histórico. Ele falou após a competição, durante conferência com os demais organizadores.

"Somos muito gratos pela participação destes seis países para tornar este evento verdadeiramente histórico e incrivelmente competitivo. O xadrez incute habilidades importantes, como paciência e estratégias de pensamento. Elas ajudam os indivíduos a lidar com as prisões e a reentrar na sociedade", comentou.

A partir do projeto de Karpov, celebridades do esporte são convidadas para eventos na cadeia em Chicago:

No mesmo local, há, ainda, uma iniciativa que permitiu que pais, presos, jogassem xadrez pela internet com seus filhos. A ideia era apresentar as crianças ao tabuleiro e, principalmente, reduzir o trauma emocional reforçando o vínculo delas com os pais. 

Antes do torneio deste mês, houve um intercâmbio anterior entre presidiários do Espírito Santo e de Chicago. Foi em 2017. Detentos dos dois países se enfrentaram, em uma competição menor, que terminou com larga vantagem para os norte-americanos.

Na ocasião, o evento também ganhou destaque nas páginas de publicações especializadas e nas da Federação Internacional de Xadrez (Fide), a Fifa do tabuleiro. 

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